Opinião

Se mora no Brasil, provavelmente notou um recente aumento na presença de pedintes nas ruas como resultado da crise. Em geral, costumo evitar dar-lhes muita atenção, mas na semana passada tive uma interação um tanto incomum com um senhor pedindo esmola. “Não tem problema caso você não carregue dinheiro na carteira, pode me fazer um PIX se preferir”.
Caso não lhe seja familiar, o PIX é uma modalidade de pagamento grátis instantâneo recentemente implementado no Brasil para facilitar pagamentos e transferências cotidianas. Fui pego de surpresa, dado que a última vez em que ouvi sobre uma situação semelhante havia sido em uma conversa com um amigo chinês que mora em Shanghai, onde pedintes utilizam QR Codes para receber esmola via WeChat. Levando-se em consideração o quão recente havia sido essa conversa, jamais imaginei que algo similar ocorreria no Brasil em tão pouco tempo.
Este episódio prendeu-se à minha cabeça até o momento em que finalmente descobri a razão por trás de tamanha surpresa: para receber uma transferência é necessária uma conta bancária e, até há pouco tempo, não apenas era necessário enfrentar alguma burocracia para abrir uma conta, como também era preciso despender mensalmente recursos para pagar os seus custos de operação, o que me parecem, de certa forma, incompatíveis com as circunstâncias às quais grande parte dos pedintes geralmente está exposta.
As contas bancárias tornaram-se muito mais acessíveis ao longo dos últimos anos, tendo disparado o número de pessoas bancarizadas ao redor do mundo. No entanto, uma vez que o acesso a uma conta geralmente requer também acesso à internet, países subdesenvolvidos costumam apresentar, em média, uma parcela da população financeiramente incluída relativamente baixa. De acordo com o World Bank, por exemplo, o Sudão do Sul, a República Central Africana, o Afeganistão e o Níger mal alcançam a marca de 20% de pessoas com conta bancária aberta em 2017. Apesar disso, mesmo sendo pequeno, este valor é substancialmente superior ao alcançado no início da década passada, em que menos de 10% da população de qualquer um destes países possuía acesso a uma conta bancária.
A inclusão financeira é um caminho sem volta. Com cartões de crédito substituindo dinheiro em espécie, transações financeiras tornando-se cada vez mais simples e mais pessoas conseguindo acesso à internet e a serviços financeiros, uma imensa gama de oportunidades tem surgido para que novas companhias criem soluções financeiras totalmente baseadas em tecnologia nunca pensadas antes. Essas empresas se chamam fintechs.
Um substituto aos serviços bancários
O termo “fintech” é consideravelmente amplo e engloba uma série de tipos de empresas focadas na criação, expansão e otimização de serviços financeiros através da tecnologia. Diversos são os tipos de empresas presentes neste segmento, sendo infinitas as formas de classificá-las de acordo com a solução oferecida. Você pode encontrar abaixo um resumo dos principais tipos de fintech atualmente existentes.
Algumas empresas não se encaixam em nenhuma das categorias acima, mas ainda são a minoria dentro do universo de fintechs existentes. Devido ao quão rapidamente este segmento tem crescido ao longo dos últimos anos, não surpreendentemente novas categorias devem surgir em breve.
Entre as mais recentemente criadas, duas merecem destaque: a de crediário e a de antecipação de salários. A primeira pode lhe ser familiar, uma vez que a opção de financiamento está disponível para praticamente qualquer tipo de compra em determinados países, mas não em outros. Em meados deste ano, por exemplo, a Apple anunciou uma parceria com o Goldman Sachs para dar aos seus clientes a possibilidade de utilizarem o Apple Pay para parcelarem as suas compras. A segunda categoria, no entanto, é relativamente nova no mercado e permite que funcionários tenham acesso antecipado ao seu salário proporcionalmente ao número de dias trabalhados naquele mês até então. Estes dois segmentos devem conquistar seu próprio espaço dentro do mercado de fintechs num futuro próximo.
O mercado de fintechs tem atraído atenção ímpar dos investidores há mais de uma década, tendo recebido dez vezes mais investimentos em 2020 comparado a 2012. As fintechs tornaram-se um tanto representativas no mercado de venture capital em volume total transacionado, deals concluídos e qualidade das empresas, sendo hoje o segmento mais representativo tanto em quantidade quanto em valor total de unicórnios, comparado aos demais segmentos, de acordo com a CB Insights.
Os EUA lideram a lista de unicórnios e abrigam aproximadamente metade dos cerca de 160 unicórnios do mundo de fintechs, seguidos pelo Reino Unido, com pouco mais de 11% dos unicórnios, e da China, com aproximadamente 6%. O Brasil empata com o Canadá na 7.ª posição, com quatro start-ups nacionalmente conhecidas: Nubank, Banco C6, Creditas e EBANX.
Farinha do mesmo saco
Na medida em que as empresas crescem, sua capacidade de desenvolver ou adquirir soluções para melhor servirem os seus clientes naturalmente também cresce. Investir em logística própria ou em suporte ao consumidor são algumas das iniciativas mais comuns que as companhias tomam para amadurecerem o relacionamento com os clientes. No entanto, alguns anos já se passaram desde que o desenvolvimento de soluções financeiras ou a aquisição de fintechs sinérgicas para estreitar a relação com clientes se tornou recorrente.
No início deste ano, por exemplo, o Walmart anunciou a criação de uma fintech com a Ribbit Capital para oferecer soluções financeiras aos seus consumidores. A empresa pretende tornar-se ainda mais presente na vida dos clientes e entregará uma solução que “terá ainda mais participação com relação aos consumidores e ao capital deles, não apenas como e onde eles o gastam, mas também como e onde eles o administram”, de acordo com Greg McBride, analista financeiro do Bankrate.
No ano passado, a Via Varejo adquiriu o BanQi e a Magalu adquiriu a Hub Fintech por R$290 milhões, ambas procurando aproveitar suas imensas bases de clientes para oferecer soluções financeiras complementares ao seu core business. Também recentemente, a Ame adquiriu a Nexoos a fim de penetrar o mercado de crédito B2B sem necessariamente passar por meses de burocracia até que o Banco Central emitisse a licença de permissão para operações de empréstimo.
Por fim, a criação do WhatsApp Pay talvez seja um dos mais conhecidos casos de uma organização de grande porte criando sua própria fintech para expandir seu escopo de serviços através da oferta de serviços financeiros adicionais aos seus consumidores. Com mais de metade dos brasileiros atualmente utilizando a aplicação, a companhia possui em suas mãos um enorme potencial para explorar sua solução financeira no país.
Oferecer soluções financeiras complementares aos consumidores é uma tendência que organizações de grande porte de segmentos específicos como retalho, saúde e até mesmo bancário dificilmente conseguirão evitar. Alinhado a isso, algumas das nossas investidas já oferecem, de certa forma, soluções sinérgicas a determinados tipos de serviço. A Future Family, por exemplo, concede crédito para pagamento de procedimentos de congelamento de óvulos e fertilização in vitro, permitindo que uma maior quantidade de pessoas tenha acesso a estes tratamentos sem necessariamente precisar de lidar com pagamentos à vista de valores proibitivos. A PayKey chegou ao Brasil poucos meses após o WhatsApp Pay e já começou a ajudar seu primeiro parceiro local a aproximar-se dos seus clientes através do fornecimento de um teclado virtual capaz de realizar transações financeiras a partir de qualquer aplicação. Por último, o Banco BS2 adquiriu a Weel para se consolidar como o primeiro neobank B2B do Brasil e a JLL adquiriu a Skyline para garantir vantagem competitiva na criação e análise de oportunidades dentro do mercado imobiliário.
Mais recentemente, o oposto também passou a ocorrer, com fintechs criando serviços que, de alguma forma, se confundem com soluções criadas pela indústria. A Future Family, por exemplo, poderia ser classificada como uma healthtech, uma vez que sua solução permite que os pacientes tenham acesso a tratamentos que eles outrora naturalmente não teriam. A Skyline também poderia ser considerada uma start-up do ramo imobiliário, dado seu foco nesta indústria especificamente. As possibilidades de integração entre fintechs e a indústria são infinitas, ao ponto de já começar a tornar-se pouco claro se algumas operações se aproximam mais de fintechs ou de modelos próprios da indústria.
O laboratório brasileiro
Nos últimos dez anos, o número de deals envolvendo fintechs brasileiras aumentou significativamente, com o volume total de recursos levantados por essas empresas crescendo exponencialmente no país. São Paulo, a maior cidade do Brasil, alcançou recentemente a 4.ª posição na lista de maiores ecossistemas para fintechs, atrás apenas de São Francisco, Londres e Nova Iorque, e à frente de cidades como Tel Aviv, Berlin, Boston e Los Angeles.
Esse fato não deveria ser surpreendente, dado o quão amigável o Brasil se tornou para fintechs que buscam explorar um mercado grande e sofisticado, mas ao mesmo tempo não proibitivamente competitivo. Ao oferecer um ambiente financeiro atrativo, o país torna-se o local perfeito para expansão de fintechs extremamente sofisticadas criadas tradicionalmente nos EUA, em Israel e em outros locais mundialmente reconhecidos pela intensa atividade no mercado de venture capital e na indústria. A solidez do mercado financeiro brasileiro é consequência de anos consecutivos de inflação descontrolada vividos décadas atrás e que deixaram um legado de refinamento financeiro que perdura até os dias de hoje.
Apesar de possuir um sistema financeiro mais evoluído até mesmo que os de países de primeiro mundo, o Brasil ainda abriga uma quantidade proporcionalmente pequena de fintechs por habitante quando comparado a outros países no topo da lista, estando na 14.ª posição na comparação dos maiores ecossistemas financeiros, mas tendo conquistado posições mais altas, ano após ano, na medida em que mais start-ups do tipo surgem no mercado local
Além de tal potencial e da quantidade de oportunidades a serem exploradas localmente, a adesão à tecnologia já está culturalmente enraizada no Brasil. Apesar do seu frágil desenvolvimento socioeconómico, o país conta com aproximadamente dois dispositivos digitais por habitante, o que vai totalmente a favor das start-ups que procuram oferecer novas soluções tecnológicas localmente.
A menina dos olhos dos investidores
As fintechs têm inquestionavelmente atraído atenção relevante dos investidores e gradualmente conquistado a reputação de um dos tipos de empresa mais promissores dentro do mercado de venture capital. Em meio aos segmentos de VC mais relevantes, as fintechs estão apenas atrás de Inteligência Artificial e Machine Learning na evolução do valor total de deals concluídos de 2012 a 2020.
Com tamanha consistência no desempenho, tudo indica que o 2.º lugar no ranking será mantido com facilidade pelo setor no curto prazo. Além disso, a falta de serviços financeiros sofisticados claramente ainda afeta uma quantidade considerável de países, independentemente do quão tecnologicamente desenvolvidos eles sejam. O uso de soluções tecnológicas desenvolvidas no campo da medicina, análise de dados e diversos outros é muito mais divulgado do que para serviços financeiros. Por sorte, essa realidade tem-se transformado, com oportunidades ilimitadas neste segmento a serem exploradas. Por fim, vale lembrar que a maioria dos serviços fornecidos por fintechs dependem do acesso ao mundo digital. Neste sentido, as tendências de inclusão digital e bancária têm jogado a favor do desenvolvimento de serviços financeiros mais avançados. Estamos atualmente vivendo o que parece ser a próxima grande tendência no mundo financeiro e, olhando para frente, o caminho parece estar livre de obstáculos por muitos quilómetros.