Opinião
Essência versus aparência

Eu gosto muito das árvores. Era com esta frase que terminávamos todas as redações (atualmente julgo que se diz composição) sobre as árvores quando éramos alunos do ensino primário, aliás a frase “Eu gosto muito de” era a última frase em todas as redações.
O estacionamento do belíssimo edifício onde trabalhei até recentemente possui árvores que, de todas as coisas boas que fazem pelo nosso bem-estar, ainda proporcionam também a sombra. Algum tempo atrás deparei-me com uma dessas árvores completamente despida de folhas, mas completamente coberta de fruto, que são as bagas de sementes que darão continuidade à espécie.
Confesso que, sem as folhas verdes e flores coloridas, e apenas com o tronco e as bagas castanhas, é um cenário escuro e nada apelativo, pelo contrário, é um pouco desolador. Contudo, se da parte da aparência as árvores carregadas de folhas verdes e de flores coloridas constituem um encanto para a vista e para a decoração, apenas isso não serve para a continuação da espécie, não serve como resultado.
Mas a árvore que vi e tal como as outras estavam despidas, sem beleza, mas continham a semente da sua continuidade, apresentam resultado, essência, embora de aparência e beleza não tenham muita coisa.
Vivemos na era do marketing comercial, social e político em que se deve dar visibilidade, se se quiser atingir a audiência. Também ao nível pessoal, o marketing e a imagem são ferramentas que podem fazer a diferença, ou seja, podem até tentar cobrir alguma insuficiência ao nível do conteúdo (competências, conhecimento) de muitas pessoas. O contrário também é verdadeiro, pessoas competentes, mas que não tenham um bom marketing pessoal e profissional, dificilmente consegue atingir um determinado patamar de um colega com menos competências, mas com um bom marketing e imagem.
Ao nível organizacional também se passa algo semelhante; há lugares onde é apelativo trabalhar. Recordo-me de empresas tecnológicas que até ofereciam massagens e snacks aos colaboradores e eram consideradas as melhores empresas para trabalhar.
Todavia, em menos de cinco anos foram estas empresas que cortaram estes benefícios e despediram em massa. Só uma das gigantes despediu 12 mil colaboradores. Tudo isso numa época em que as instituições afirmam serem as pessoas o melhor ativo que possuem.
É claro que a empresa deve adaptar a força de trabalho, tal como a tecnologia e os procedimentos de acordo com as demandas do mercado e, se for necessário, pode legitimamente despedir, salvaguardando os direitos dos colaboradores dispensados.
Mas também conhecemos histórias de pequenas e microempresas que, apesar da crise, os patrões não despediram, outros aumentaram os salários, outros deram prémios e outros benefícios.
Sem pretender fazer comparações, estas últimas microempresas carregam a semente de um bom relacionamento com os colaboradores, apesar de não parecerem tão apetecíveis para se trabalhar.
O mesmo se passa ao nível da liderança: podemos ter uma liderança embelezada, colorida, apetecível, mas fechada sobre si mesma e que não carrega a semente da renovação geracional de novos líderes. Criar líderes resilientes implica, às vezes, confrontar ideias, negociar, ceder, engolir em seco, etc. Mas atualmente em que todos estamos sensíveis demais e com medo do confronto de ideias, ou seja, tudo tem de ser aceite sem argumentar sob pena de ser acusado de negacionista, questiono que líderes estaremos produzindo para um futuro que não tem tempo de esperar para o amanhã.
Estaremos produzindo uma liderança de aparência e não de essência? Mas não é possível ter a essência na aparência? Sim, é possível, mas para isso a aparência não poderá sobrepor-se à essência, pois a mencionada árvore, a esta altura, começa a ter folhas verdes, o que torna a aparência mais apetecível, enquanto ainda mantém as bagas de cor castanha com as ditas sementes, necessárias à continuidade.
A árvore, apesar de despida de beleza, possui as sementes da sua continuidade e, certamente terminarei a minha carreira e ela continuará produzindo.
Termino este artigo como comecei. Eu gosto muito das árvores.
*O artigo reflete apenas a opinião do autor e não envolve nenhuma instituição.