Opinião
Direito Sucessório “pré-histórico”

Há dez anos, quando comecei a trabalhar em matérias sucessórias, era pouco frequente – raro, até – ter uma reunião com alguém que pretendesse regular a respetiva sucessão.
Aliás, sugerir-se a eventual outorga de um testamento era reflexo imediato de um incómodo na sala, interpretado, certamente, como um prenúncio de morte. A explicação, a meu ver, só poderia ser cultural, até porque com clientes estrangeiros a prática era bem diferente, diria mesmo oposta.
Os tempos mudaram, as mentalidades também. É fácil atribuirmos algumas transformações à pandemia, desconhecendo eu se, de facto, há alguma ligação direta entre as consequências vividas do Covid e a situação atual, mas é notória a crescente preocupação no planeamento sucessório: com cada vez mais frequência, as pessoas procuram advogados com a intenção de, ainda em vida, evitar conflitos que venham a surgir pela partilha das suas heranças, quer seja através de doações (normalmente com reservas de usufruto), quer, fundamentalmente, mediante disposições testamentárias.
Com tal alteração, a sociedade está, então, mais atenta às normas que regulam estas matérias, surgindo vozes mais críticas a um ramo de direito que teve a sua última alteração significativa em 1977, com uma reforma que veio a atribuir direitos sucessórios ao cônjuge sobrevivo – ao contrário do que se verificava desde 1966 – e que, por isso, está hoje desfasado da vida de uma sociedade que se alterou de forma notória nas últimas décadas. Frequentemente, apenas na fase de planeamento sucessório são desfeitas ideias enraizadas a quem dá por garantida uma evolução do direito que está longe de se verificar: é com surpresa que, muitas vezes, é-se confrontado com o facto de o unido de facto não estar, legalmente, equiparado ao cônjuge sobrevivo ou que a quota disponível é, na maior parte dos casos, a parcela mais pequena da herança, prevalecendo normas imperativas que limitam a liberdade de testar, para impor a continuidade dos patrimónios na mesma família consanguínea, que, não raras vezes, perdeu a união que outrora as caracterizava.
Foi há cerca de um ano que o caso de uma mulher que queria ter um filho do marido que já havia falecido encheu as manchetes dos jornais, atribuindo uma dimensão nacional ao tema que criou uma enorme onda de solidariedade, levando a que, eventualmente mais cedo do que o previsto, se legislasse sobre tal matéria, respondendo afirmativamente ao que, rapidamente, parecera tornar-se uma exigência da sociedade. Mas, ignorando as repercussões que uma conceção post mortem teria no Direito das Sucessões, optou-se por mantê-lo inalterado, o que impede, agora, que, em qualquer circunstância, um descendente direto tenha legitimidade a ser chamado à herança do pai, trazendo problemas de difícil resolução, que têm de ser pensados, pois carecem de uma resposta atualizada.
Numa sociedade de “segundos casamentos”, famílias alargadas, enteados, filhos concebidos após a morte, maiores acompanhados, apadrinhamentos civis e adoções, é urgente que o Direito “descristalize”, passando a responder a situações que, nestas matérias, avançaram mais rápido do que decretos, regulamentos e portarias.
Filipa Oliveira é advogada associada na Pinto Ribeiro Avogados, coordenadora do Departamento de Família e Sucessões, e conta com mais de dez anos de experiência no ramo. Durante sua carreira, tem representado uma diversidade de clientes, desde particulares até grupos familiares, numa ampla variedade de questões legais. A sua especialização abarca desde a elaboração de convenções antenupciais até à condução de processos de divórcio e à regulação das responsabilidades parentais em assuntos familiares.
No campo sucessório, destaca-se a sua experiência no domínio das partilhas judiciais e extrajudiciais, assim como na elaboração de testamentos e planeamento sucessório, quer a nível nacional, quer internacional. Para além da prática jurídica, é ainda oradora requisitada em programas de formação contínua promovidos pelo Centro de Estudos Judiciários. Partilha o seu conhecimento especializado na área da jurisdição de Família e Crianças, participando em conferências sobre Direito da Família, Direito das Sucessões e Direito Processual Civil, e contribuindo com artigos de opinião para jornais.