Entrevista/ “Continuamos a preferir a personalização à escalabilidade”

Mário de Sousa, cofundador e administrador da Portocargo

Habituada a fomentar o fluxo de exportações das empresas portuguesas, a Portocargo deparou-se este ano com um novo desafio: auxiliar na frente logística de combate ao Covid-19, para que os materiais essenciais não faltassem aos hospitais. O Link To Leaders falou com o administrador da empresa, que celebra este ano 30 anos, sobre os últimos meses e os projetos para o futuro.

Especializada no transporte de mercadorias e comércio internacional e com uma rede de parcerias em mais de 90 países, a Portocargo registou, nos últimos meses, um aumento na procura de serviços para transporte de material de proteção individual, equipamento médico e cirúrgico proveniente da China, obrigando a reajustar a sua atividade.

A missão foi cumprida e, nestes primeiros sete meses do ano, o seu volume de negócios apresentou um crescimento de dois dígitos. Estes resultados foram também reflexo da sua expertise no mercado chinês, onde conta com parcerias há quase três décadas e que representa 70% do seu volume de negócios no mercado asiático.

A Portocargo está muito centrada em operações de transporte marítimo, área responsável por cerca de 65% do volume de negócios, sem descurar o aéreo, o multimodal e o rodoviário, que representam 30% das receitas, e os serviços aduaneiros, que valem cerca de 5%. E “quer continuar a ter um papel de relevo na internacionalização do tecido empresarial português”.

A Portocargo deparou-se nos últimos meses com um dos maiores desafios logísticos da era moderna. Como se adaptou aos novos tempos da pandemia de Covid-19?
Pela especificidade da atividade Transitária e de Logística Internacional, a Portocargo estava já capacitada e familiarizada com a execução de processos à distância. A pandemia da Covid-19 criou fortes constrangimentos às deslocações internacionais, tornando essencial a cooperação global entre a rede de parceiros (Agentes), permitindo que cada stakeholder solucionasse os desafios que as diferentes realidades locais foram exigindo. Neste sentido, a digitalização assumiu um papel de grande relevo.

Durante este período, coordenámos operações de enorme escala, cujo valor por operação superou o milhão de euros, sem estarmos fisicamente presentes no local de partida, mas em rede e comunicação constante. A infraestrutura tecnológica de que dispomos e a sólida rede de parcerias que montámos ao longo destas três décadas de atividade foram verdadeiramente essenciais para garantir o sucesso destas missões logísticas.

“Hoje, 73% da carteira de clientes da Portocargo está connosco há mais de uma década e conservamos ainda vários clientes que são nossos parceiros desde que iniciamos a atividade em 1990”.

Que balanço faz destes 30 anos de existência?
O balanço é francamente positivo. Temos uma trajetória de vida empresarial, da qual muito nos orgulhamos, que nos permitiu aumentar o número de colaboradores e incrementar o volume de negócios. Mas mais importante do que isso é perceber o impacto que temos junto dos nossos clientes, a forma como os ajudamos a crescer, a chegar a novos mercados. Hoje, 73% da carteira de clientes da Portocargo está connosco há mais de uma década e conservamos ainda vários clientes que são nossos parceiros desde que iniciamos a atividade em 1990.

Não há melhor cartão de visita do que este. Perceber que, anualmente, os nossos parceiros renovam a confiança nos nossos serviços e nas nossas equipas. Orgulho-me também de nos termos sabido manter fiéis à nossa identidade. O crescimento que felizmente registamos não implicou uma alteração do nosso modelo de negócio ou da oferta de valor que garantimos aos nossos stakeholders.

Continuamos a preferir a personalização à escalabilidade. Queremos continuar a ser uma empresa que se destaca pela diferenciação que oferece a cada solução criada, correspondendo às necessidades específicas de cada missão. Crescer, aumentar o número de mercados onde atuamos e o número de operações realizadas e, simultaneamente, ser capaz de salvaguardar este mindset é um equilíbrio difícil e pelo qual nos regozijamos.

Quais os marcos/desafios mais simbólicos neste já longo percurso?
Em 30 anos, foram muitos os desafios que tivemos de superar. Por uma questão de proximidade temporal, e por se ter tratado de uma circunstância sem precedentes, destacaria as operações realizadas nos passados meses de março, abril e maio, realçando a primeira, através da qual trouxemos para o país, a bordo do segundo maior avião de carga do mundo (Antonov NA-124), 80 toneladas de material médico e de proteção que eram absolutamente essenciais para as unidades de saúde nacionais.

Normalmente, as operações que realizamos são decisivas para um negócio, ou para uma empresa. Mas aquelas circunstâncias foram verdadeiramente especiais, porque estávamos a falar de equipamentos essenciais para salvar vidas.

No contexto de resposta da logística à pandemia, de que forma o conhecimento da empresa no mercado oriental foi preponderante para o crescimento da Portocargo?
Foi absolutamente decisivo. As circunstâncias da evolução da pandemia viriam a demonstrar e acentuar a dependência mundial da China, verdadeira “Fábrica do Mundo”, e que passou a ser procurada por todos os países, e operadores económicos logísticos especializados em comércio internacional, para o fornecimento de material médico e de proteção.

Ora, a este exponencial crescimento da procura somaram-se as fortes restrições provocadas pelas medidas de mitigação, que levaram à interrupção de várias atividades produtivas e de serviços, bem como ao encerramento temporário de portos e aeroportos. Perante este cenário, as condições para conseguir construir ligações a partir deste mercado revelaram-se extremamente complexas. E foi aqui que a nossa experiência, conhecimento deste mercado e, sobretudo, a solidez das parcerias com os agentes locais se revelaram absolutamente decisivas.

A confiança mútua que décadas de trabalho conjunto trazem permitiu-nos articular diariamente com estes agentes a construção de soluções para os diferentes obstáculos que iam surgindo, desde a burocracia, às questões logísticas e aduaneiras.

“Apesar de todos os aspetos negativos que este ano tem levantado, 2020 ficará guardado na nossa história como um período em que a Portocargo esteve ao serviço de todos os portugueses”.

Como geriram a atividade normal da empresa e as novas solicitações logísticas decorrentes da pandemia?
Para nós, o compromisso com os clientes é fundamental. Isto implica que jamais comprometamos qualquer serviço ou necessidade de um cliente para responder a uma nova oportunidade de negócio. Neste sentido, mesmo perante as enormes dificuldades decorrentes das medidas de mitigação implementadas, as nossas equipas demonstraram uma enorme resiliência e foram capazes de assegurar a continuidade das operações e a satisfação das necessidades de importação e exportação de matérias-primas e produtos finalizados.

A resposta às necessidades da pandemia era, mais do que um serviço económico, uma missão social. Implicou um grande esforço adicional, muitas horas sem dormir, fruto dos diferentes fusos horários, centenas de videoconferências e chamadas telefónicas. Mas que representou também um grande orgulho na equipa que lidero. Apesar de todos os aspetos negativos que este ano tem levantado, 2020 ficará guardado na nossa história como um período em que a Portocargo esteve ao serviço de todos os portugueses.

Olhando para os últimos meses, o que mudaria na estratégia da empresa?
É difícil preparar e antecipar a resposta a uma crise que ninguém conseguiu prever. Por esse motivo, não podemos dizer que nenhuma organização estava efetivamente pronta e equipa para se adaptar ao impacto e aos desafios que a pandemia criou. Contudo, acredito que as empresas numa fase mais adiantada do processo de digitalização do seu modelo de negócio, quer a nível interno, quer externo, foram aquelas que mais rapidamente se reergueram e que estão a liderar o processo de recuperação. Se definir uma prioridade, passará por esta definitiva aposta na digitalização da nossa atividade.

A crise colocou à prova a resiliência das cadeias logísticas. Qual acha que foi a receita de sucesso de muitos players para darem resposta aos desafios do Covid-19?
Defendo, há vários anos, que o setor logístico é dos mais resilientes do ecossistema nacional. A nossa atividade lida diariamente com desafios, porque as operações internacionais são extremamente complexas, devido à multiplicidade de legislação aplicável, aos diferentes fusos horários, à perecibilidade de muitos dos bens transportados, e aos prazos apertados com que lidamos. Todos estes fatores contribuem para que estejamos particularmente mentalizados para enfrentar o desconhecido, lidar com desafios e obstáculos.

Acredito que esta mentalidade foi decisiva para conseguirmos reagir rapidamente à crise e dar resposta ágil às necessidades de setores que foram mais lentos na sua recuperação.

A Portocargo é uma referência nacional, mas também internacional. Como é gerir toda esta rede e mesmo em tempos de Covid-19 continuar a crescer?
Acredito que uma das competências fundamentais de um líder é saber confiar e delegar nas suas equipas. A verdade é que a Portocargo aposta fortemente na formação dos seus quadros. Hoje, dispomos de uma equipa altamente experiente e especializada em cada uma das suas áreas de atuação. Isto permite-nos manter um grande foco nas diferentes áreas de especialidade, e assegurar uma resposta coordenada, direcionada e eficaz aos diferentes desafios.

Durante este período, tivemos toda a empresa a trabalhar a 100%, assegurando uma resposta essencial às necessidades dos nossos clientes, numa altura em que estes estavam particularmente desafiados pelas circunstâncias sanitárias e económicas. Este compromisso é reconhecido por todos os nossos parceiros e é fundamental para o crescimento que temos registado e que queremos continuar a somar.

“Acredito que em qualquer negócio as sinergias são parte integrante da fórmula do sucesso, mas num setor altamente competitivo e complexo como o logístico, estas adquirem uma importância ainda maior”.

Que conselhos daria a um jovem empreendedor que quer enveredar por este setor?
O maior conselho passa por apostar em redes colaborativas. Acredito que em qualquer negócio as sinergias são parte integrante da fórmula do sucesso, mas num setor altamente competitivo e complexo como o logístico, estas adquirem uma importância ainda maior. Defendo que as transformações globais que têm vindo a registar-se nesta área, fortemente aceleradas pela digitalização, provocarão um crescimento das plataformas colaborativas, em detrimento das grandes empresas verticais, que concentram a totalidade das etapas e das tarefas da cadeia logística.

Simultaneamente, e não posso deixar de destacar este ponto, é fundamental que tenha em conta o impacto ambiental das suas operações. A sustentabilidade desempenhará um papel absolutamente decisivo na trajetória transformativa que a logística internacional desenhará nas próximas décadas, pelo que as empresas que não estiverem preparadas para acompanhar esta prerrogativa perderão decisivamente o caminho do progresso.

Como carateriza o ecossistema empreendedor português ligado à cadeia logística?
Há um grande potencial para o aparecimento de negócios inovadores em Portugal neste setor, que poderão potenciar a disrupção dos processos utilizados. Atualmente, o ecossistema empreendedor nacional encontra-se vocacionado para outro tipo de atividades, mas não tenho dúvidas de que existem vantagens mútuas para as empresas tradicionais e para as vindouras start-ups em apostarem neste setor.

Paralelamente, há já um significativo número de negócios que, não tendo sido criados diretamente para atuar no setor logístico, colaboram com as empresas do setor através da tecnologia que desenvolvem, nomeadamente de big data, inteligência artificial e robótica.

Quais são os objetivos para o futuro da empresa?
O nosso objetivo mantém-se inalterado. Conservar a carteira de clientes, continuar a responder eficazmente às suas necessidades e ao seu crescimento. Atualmente, cobrimos 90 mercados a nível mundial, e estamos preparados para continuar a ter um papel de relevo na internacionalização do tecido empresarial português.

O sucesso deste trabalho representará inevitavelmente o aparecimento orgânico de novas oportunidades, impulsionadas pela qualidade do serviço prestado aos diferentes stakeholders mundiais com que diariamente trabalhamos

Respostas rápidas:
O maior risco:
Abandonar a aldeia e a casa dos pais aos 14 anos.
O maior erro: Confiar em quem não merecia confiança .
A maior lição: A vida é uma aprendizagem constante .
A maior conquista: Fazer o que gosto.

 

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