Opinião
Construir Portugal
Foi com pompa e circunstância que o novo Governo anunciou no passado dia 10 de maio as principais medidas do seu programa relativo a uma Nova Estratégia para a Habitação (NEH), o qual mereceu numa primeira análise opiniões contraditórias, muito marcadas naturalmente pelo espetro político de onde originam, como sempre.
A verdade é que já nem Jesus Cristo conseguia agradar a todos, como se viu, e toda e qualquer reforma ou catarse que se tente implementar terá sempre pontos positivos e negativos que merecem algum comentário.
Saltando os pontos de demagogia política típica, como são as críticas que o NEH faz ao anterior executivo quanto ao desinteresse do mesmo sobre a temática da habitação em Portugal, é imperioso reconhecer que a situação era efetivamente – e é – complicada, não restando dúvidas que os “elefantes na loja de porcelana” irão continuar a agravar assimetrias sociais, contribuir para a permanência dos jovens em casa dos pais, reduzir a competitividade do país, gerar conflitos entre banca, promotores, proprietários, privados e arrendatários, entre outros focos de tensão que se avizinham com o atual status quo.
Podemos efetivamente falar de uma crise na habitação, especialmente nas grandes cidades ou zonas urbanas de maior densidade. Os dados revelados mostram a evolução galopante que o custo médio de habitação tem sofrido ao longo das últimas duas décadas, algo a que não é indiferente também a redução do número de fogos construídos e colocados no mercado anualmente, em claro contraciclo com a procura existente, pese embora os últimos anos tenham já marcado uma certa retoma neste índice, a que não é alheia a deslocalização das populações para fora dos grandes centros urbanos, motivada pelos menores preços e melhor qualidade de vida global (que por sua vez também motivou alguma alteração do foco de investimento de vários promotores que olham para novas zonas como destino para os seus investimentos).
Independentemente do mérito das medidas propostas pelo NEH, a que voltarei adiante, há uma nota preliminar que me parece importante frisar desde já. Tal como referido acima, Portugal apresenta uma situação preocupante no que diz respeito à média de jovens entre os 20 e 29 anos que ainda residem com os pais. Se numa primeira leitura isto parece resultar da falta de oferta habitacional, ou até mesmo do custo da mesma, penso ser errado circunscrever essa problemática “apenas” a estes vetores. A questão de fundo, e até prova em contrário, passa pela reduzida capacidade aquisitiva desta faixa etária, muito marcada pelos baixos salários praticados no mercado para jovens em primeiros empregos, o que por sua vez inflaciona também os níveis de imigração jovem que temos verificado em Portugal na última década. Enfim, são contas deste, mas também de outro rosário que agora não será foco de comentário.
Não pretendendo entrar ou comentar todas as medidas no NEH, é de salientar porém a intenção de aumento do famoso – ou infame – BTR ou build to rent, solução que tem sido implementada com sucesso em vários países europeus, mas que em Portugal tarda em ganhar tração adequada e permitir aos mais jovens acesso a habitação própria nos primeiros anos da sua vida (ou, caso o mindset da população portuguese se altere no futuro, até mesmo alterar os hábitos globais dos portugueses que desde as décadas de 80 preferem adquirir a arrendar, em contraponto por exemplo aos nossos colegas norte-europeus). A utilização de terrenos ou imóveis estatais – e são muitos… – para fomentar esta medida parece correta (aliás, o anterior executivo já tinha aventado tal possibilidade assim que conseguisse inventariar devidamente o património imobiliário do Estado), sempre e quando as condições de acesso a este tipo de promoção imobiliária sejam transparentes e equitativas para todo e qualquer promotor interessado, e as exigências do proprietário (Estado) quanto à edificação sejam compatíveis com o indispensável lucro que qualquer investidor deverá procurar (reduzir o lucro para lá do admissível implica reduzir a atividade do promotor, reduzir os postos de trabalho que este gera e, consequentemente, criar um problema distinto, o que se deve evitar). Falar de sustentabilidade é moda, mas é indispensável reconhecer que a sustentabilidade também passa pela geração de riqueza financeira que permita o evoluir da atividade das empresas e a criação de emprego.
Também me parece relevante que seja revista a Lei dos Solos para permitir soluções construtivas sustentáveis, rápidas de executar e com condições dignas para habitação própria ou outras funções. A estratégia já adotada por alguns promotores imobiliários quanto ao reforço da construção em madeira é um sinal positivo quanto à redução dos custos de habitação, sempre e quando o licenciamento e disponibilidade de solo acompanhem esta alteração de paradigma.
Uma das questões mais polémicas do NEH foi a redução do IVA para a taxa mínima de 6% no caso de obras de reabilitação e construção de habitação. A promessa vem dos tempos eleitorais, mas muitos já comentam que a “montanha pariu um rato” dado que esse “nascimento” irá tardar uma legislatura completa (o que, caso esta não prossiga até ao final, ainda se tornará mais complicado…). É óbvio que esta alteração terá um impacto direto nos custos de construção, mas a verdade é que este tipo de obra já beneficia, nos moldes legislativos atuais, de taxas a 6% em várias situações, especialmente dentro das áreas de reabilitação urbana (as famosas ARU), não podendo ser então a pílula milagrosa que resolverá todas as dificuldades. Mas ajuda, se e quando vier a ser implementada. Seria também importante complementar tal, especialmente no caso de reabilitações, com uma fiscalização séria da atividade de vários empreiteiros que continuam a faturar o IVA nos seus serviços, pese embora esteja em vigor uma autoliquidação desde imposto pelos proprietários.
Julgo que um dos maiores desafios destas propostas está na questão do arrendamento. Não tanto pela revogação ou não das alterações introduzidas pelo anterior Governo, mas acima de tudo pela instabilidade que tem grassado o setor, nomeadamente a instabilidade legislativa. Desde a publicação do Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU) em 2006, e não obstante a incapacidade de dar resposta a vários problemas que então foram criados (um dos mais graves a questão das rendas baixas que continuam a determinar em muitos casos a degradação de imóveis face à incapacidade dos proprietários em investir na reabilitação dos mesmos), podemos contar mais de uma dezena de alterações ou retificações ao seu conteúdo, algo que contribui para a incerteza junto dos investidores nacionais e internacionais.
No que diz respeito ao arrendamento, é importante definir desde logo que os paradigmas terão de ser alterados no nosso país. Todos têm direito a habitação, isso é claro, mas nem todos têm de ser proprietários. O arrendamento, que tão bem funciona noutros países, é uma solução de menor impacto financeiro imediato e a longo prazo que possibilita a construção de condições de vida dignas. E mudar as regras repetidamente não permite estabilidade, pelo que a adoção de regras claras, estáveis, duradouras e fiáveis é imprescindível para o sucesso deste NEH. Talvez a autonomização da legislação nesta matéria, não como capítulo do Código Civil, mas com código próprio possa ser uma forma de uniformizar, condensar e agilizar o entendimento da mesma.
Como última nota deste longo texto, não posso deixar de mencionar a imperiosa necessidade, também reconhecida no NEH, de resolver o problema do alojamento estudantil. Se queremos manter talentos nacionais e se queremos atrair talentos estrangeiros para as nossas universidades, não podemos de forma alguma deixar a especulação resultante da falta de alojamento continuar a provocar o aumento desmesurado dos preços praticados. Portugal tinha até há bem pouco tempo uma taxa de oferta inferior a 10% das necessidades. O foco neste problema deve também ser imediato.
*Coordenador do Departamento de Direito Imobiliário na Pinto Ribeiro Advogados