Opinião

Consistência. O poder transformacional das pequenas coisas

Mário Ceitil, presidente da Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas

Muitas vezes pensamos a liderança como um conjunto de atos isolados com significado próprio e realizados em momentos específicos da interação entre os líderes e os liderados. Falamos, por exemplo, de dinamizar e animar equipas, de comunicar bem numa entrevista, de gerir talentos, de lidar positivamente com conflitos, etc. Mas muitas vezes também, não nos damos conta de que falar sobre esses “atos concretos” a que por vezes chamamos “técnicas de liderança”, é um tipo de prática que pode vir de facto a tornar-se “muito abstrata”.

Prova disso é aquela “velha” e quase ritual observação que muitos participantes das ações de formação sobre liderança formulam, como síntese final do repositório cognitivo último da respetiva aprendizagem: “as ideias até são interessantes; o problema é pô-las em prática”.

Na verdade, o que acontece é que, em matéria de liderança, toda a gente hoje concorda, de um modo geral, com os “princípios gerais”, mas resvala muitas vezes na complexidade dos respetivos “meios de aplicação”.

Entre outras explicações possíveis, estas dificuldades podem resultar de uma conceção enviesada do que é praticar a liderança, ainda suportada por velhos paradigmas deterministas, que absolutizam a explicação dos fenómenos a partir de simples relações de causa/efeito.

Um dos exemplos deste tipo de paradigmas está bem patente na famosa e tantas vezes citada expressão de “comportamento gera comportamento”, com base na qual se tenta explicar a dinâmica das interações humanas como uma espécie de “ping-pong” comportamental, sugerindo que toda a complexa e rica dinâmica da mediação dos processos cognitivos e emocionais nas relações humanas é redutível ao nível da “larva”.

No entanto, o ser humano e a complexa rede de relações que estabelece consigo próprio e com os outros é tudo menos redutível a fórmulas pretensamente mágicas que se apresentam como receitas mais ou menos infalíveis para “conseguir fazer com que os colaboradores façam aquilo que os chefes pretendem (explicita ou implicitamente) que eles façam”.

Abandonemos, por isso, estas mistificações de simplicidade que vendem as ilusões de práticas que se dizem transformadoras, mas que acabam por resultar apenas na desilusão de púberes aprendizes de liderança, frustrados pelo desencanto da ausência de consoladoras ”receitas de liderança pronto-a-usar”.

Na verdade, a liderança verdadeiramente transformacional não se serve apenas de atos pontuais, de práticas episódicas tecnicamente bem elaboradas e até aplicadas com adequada situacionalidade, mas que, na “espuma dos dias” acabam por se restringir aos momentos específicos em que se deve “agir” como líder. Esses atos, entenda-se, são necessários e úteis e exigem o domínio de competências adequadas. São, portanto, necessários, mas não suficientes.

A liderança autêntica e verdadeiramente transformacional exige constância, coerência e, sobretudo, consistência.

“Ser líder” é diferente de “agir como líder “: o líder que “age como líder” executa performances quando é necessário ou quando se justifica. O líder que “é líder” faz da sua liderança um modo de estar e um modo de viver, pelo menos dentro do contexto organizacional onde atua.

Sendo uma função a “tempo inteiro”, o líder transformacional realiza um entrosamento profundo na matriz do grupo, ao mesmo tempo que presta uma atenção personalizada à particularidade de cada indivíduo; é que há momentos, gestos, atitudes, por vezes simples olhares que, embora sendo em si mesmas pequenas coisas, podem gerar grandes impactos na confiança dos colaboradores que, como sabemos, constitui hoje um verdadeiro “húmus” de que se alimenta o ascendente de liderança.

É a consistência dessas práticas que faz com que o quotidiano de um líder se irrigue de autenticidade; e é essa autenticidade que constitui o mais poderoso fator de alavancagem do “engagement” e do “commitment” dos colaboradores. E são estes dois fatores que, por último, constituem justamente os mais concretos indicadores da qualidade de uma liderança.

Compreendemos assim o desespero dos formandos e dos estudantes de liderança, quando assinalam que os conceitos são abstratos e de difícil aplicação prática.

Abstratos são-no, sem dúvida. E a coisa complica-se porque não basta apenas compreendê-los teoricamente: é imperativo senti-los.

Quanto à aplicação prática, a “grande liderança” alimenta-se menos das grandes narrativas e técnicas, e mais da consistência e da verdade das “pequenas coisas”, dos atos “que não vêm nos manuais” e da sensibilidade aos detalhes que identificam a genuinidade do outro.

Mas quanto a isto, talvez venha a propósito mencionar aquela velha frase, que agora até parece ter uma certa conotação premonitória: “o diabo está nos detalhes”…

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Mário Ceitil

Mário Ceitil

Licenciado em Psicologia Social e das Organizações pelo ISPA, Mário Ceitil é consultor e formador na CEGOC desde 1981, tendo participado em vários projetos de intervenção, nos domínios da Psicologia das Organizações e da Gestão dos Recursos Humanos, em algumas das principais empresas e organizações, privadas e públicas, em Portugal e em países da África lusófona. Integrou, como consultor, equipas internacionais do grupo CEGOS, em projetos europeus. É professor universitário, desde 1981, nas áreas da Psicologia das Organizações e da... Ler Mais..

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