Opinião
As coisas não acontecem apenas aos outros

Vivemos num mundo onde a evolução tecnológica é rápida e evidente, mas as nossas mentalidades não acompanham o mesmo ritmo. Ainda nos agarramos à ideia reconfortante de que certas situações indesejáveis só acontecem aos outros, que estamos de alguma forma imunes aos enganos e às armadilhas do mundo.
Mas, na realidade, as coisas não acontecem apenas aos outros. E foi uma experiência pessoal que me fez compreender esta dura verdade.
Recentemente, numa situação que parecia inofensiva e até promissora, percebi como é fácil cair em armadilhas em que se aproveitam dos nossos sonhos e dos sonhos dos nossos filhos. Durante as festas de Oeiras fui abordada por uma senhora que sugeriu que o meu filho poderia fazer um casting para ser modelo ou ator. Num primeiro momento, a ideia pareceu encantadora, e a empolgação tomou conta do meu filho que ficou super entusiasmado. É natural que, como pais, queiramos ver os nossos filhos felizes, a seguir oportunidades que possam dar-lhes novos horizontes.
No entanto, os sinais de alerta surgiram desde o início, mas ignorei-os completamente. A superficialidade do casting que demorou um minuto e onde foram tiradas apenas duas fotos, mas como mãe babada pensei que o meu filho tem um perfil de modelo e era natural que passasse logo à primeira. Seguiu-se o pagamento para uma sessão fotográfica e quatro aulas de desfile, a medíocre qualidade das aulas e a falta de profissionalismo em cada passo do processo, tudo apontava para algo errado. Mas, o meu filho estava tão feliz com esta possibilidade que deixei de ver as coisas com clareza e só queria que ele continuasse no processo.
Após o casting para modelo seguiu-se o casting para ator, mais uma vez um processo demasiado básico e superficial e mais uma vez justifiquei a rápida seleção do meu filho com o excelente desempenho que tem em expressão dramática. Claro que esta seleção implicou o pagamento de mais quatro aulas de representação. Li e assinei o contrato sem qualquer hesitação e sempre a acreditar que estava a lidar com pessoas idóneas. Por um acaso do destino entendi mal o dia e o local da primeira aula e dirigi-me ao sítio errado. Tentei ligar para os números da empresa em causa e sem qualquer sucesso e neste momento tive um pressentimento de que algo estava errado e todas as campainhas começaram a tocar.
Ao falar com uma amiga sobre o sucedido esta comentou-me que em 2019 tinha havido uma reportagem da TVI sobre uma grande fraude com castings infantis. Vesti o meu fato de Sherlock Holmes e comecei a investigar. Foi um grande choque quando percebi que tudo não passava de uma grande fraude. Esta empresa que geria o casting pertence ao mesmo dono da empresa que esteve sob investigação em 2019 e durante estes cinco anos já abriu e fechou uma série de empresas do mesmo género. O Portal da Queixa está cheio de reclamações contra este “senhor” e as suas empresas.
Falei com uma amiga advogada que viu os contratos que assinei e que não têm qualquer validade, dado que o sócio gerente da empresa não coloca o nome completo, apenas os nomes do meio (provavelmente para não ser identificado) e quem assina é uma assistente (que não deve ter procuração para o fazer). É inacreditável como é que depois da investigação da TVI e de todas as acusações feitas contra este “senhor” ele continue livre a enganar e a explorar crianças e pais.
Após esta descoberta apresentei uma queixa crime no Ministério Público e alertei a TVI para que voltassem a divulgar esta fraude.
A sensação de ter sido enganada, de ter caído numa armadilha tão óbvia, foi avassaladora. Como é que, sendo uma pessoa informada e atenta, deixei que isto me acontecesse? A resposta é simples: porque as coisas não acontecem apenas aos outros. Todos somos vulneráveis.
Esta experiência foi um duro lembrete de que a ilusão de imunidade é perigosa. Nenhum de nós está imune aos enganos, às manipulações e às fraudes que existem por aí. Podemos ser cuidadosos, podemos estar atentos, mas, quando o que está em jogo são os sonhos dos nossos filhos, é fácil deixar que a emoção se sobreponha à razão. A realidade, porém, é que devemos estar sempre vigilantes, questionar tudo o que parece bom demais para ser verdade e confiar nos nossos instintos quando algo não parece certo.
É essencial que compartilhemos estas experiências, não só para alertar outros pais, mas também para exigir que as autoridades tomem medidas contra aqueles que se aproveitam da boa fé das pessoas. Proteger os nossos filhos e garantir que não caímos em armadilhas é uma responsabilidade que deve ser levada a sério.
Fica uma lição clara: a liberdade de sermos nós próprios, de fazermos as nossas escolhas e de protegermos os nossos filhos deve ser sempre acompanhada de uma consciência crítica e de uma vigilância constante. As coisas não acontecem apenas aos outros; podem acontecer a qualquer um de nós. E é só reconhecendo esta realidade que podemos estar preparados para enfrentar os desafios que a vida nos apresenta, sem perder de vista o que realmente importa: o bem-estar e a segurança dos nossos filhos e a nossa.