Entrevista/ “Aquilo que distingue a 42 é o desenvolvimento de competências humanas, de ´aprender a aprender´”

Pedro Santa Clara, diretor da escola 42 Lisboa

Ao fim de um ano de atividade, a escola de programação 42 Lisboa já mobilizou mais de 14 mil candidatos e prepara-se para anunciar uma nova escola a Norte do país. Em entrevista ao Link To Leaders, o diretor Pedro Santa Clara faz o balanço deste projeto de formação sem professores, sem horários e 100% gratuito.

Criada em França em 2013, a 42 é uma escola de programação com uma metodologia pedagógica inovadora e que nos últimos anos ganhou projeção internacional ao ser replicada em vários países. Foi o caso de Portugal onde se instalou pela mão de Pedro Santa Clara, professor na Nova SBE e empreendedor, em julho do ano passado.

Desde então, este projeto de formação em programação, que se distingue pelo facto de ser gratuito e por não exigir requisitos académicos, captou o interesse de alunos tão diferentes como engenheiros, economistas e médicos, uma bartender, um cozinheiro ou um estofador, todos eles à procura de “uma skill fundamental para o futuro de todas as profissões”, como explicou Pedro Santa Clara, diretor da 42, ao Link To Leaders. Um ano depois, o balanço é muito positivo: a escola já angariou 6 milhões de euros em financiamento e mobilizou cerca de 14 mil candidaturas. Por isso, os projetos não faltam e uma das próximas etapas é criar uma 42 a Norte do país.

No próximo sábado, a 42 está a promover visitas ao seu campus para apresentar o projeto e o modelo de ensino. Um ano depois, e com uma pandemia pelo meio, como avalia a performance da Escola? Cumpriu objetivos?
Estamos mesmo muito satisfeitos: em menos de um ano, e no meio de uma pandemia, conseguimos ter mais de 14 mil candidatos, realizar três “piscines” de seleção com 150 participantes cada, e começar o programa no dia 8 de fevereiro com 155 alunos.

“A essência da escola é a aprendizagem prática e entre pares”.

“Sem professores, sem horários e 100% gratuita”. Como se ensina assim na 42?
Não se ensina: aprende-se. Não temos professores a dar aulas, mas temos uma grande equipa pedagógica que está continuamente a desenvolver a plataforma de aprendizagem com uma sucessão de desafios de programação práticos. Cabe aos alunos aprenderem – por si e com os colegas – o que for necessário para os resolver.  A essência da escola é a aprendizagem prática e entre pares. Embora usemos muita tecnologia no método pedagógico, a escola é presencial, porque aprender é um fenómeno social.  Além disto, a plataforma tem muitos elementos de gamificação – pontos, badges, coalitions – que dão um grande estímulo ao progresso de cada aluno.

Acima de tudo, a filosofia da 42 assenta em dois pilares: liberdade e responsabilidade. Cada um avança ao seu ritmo, no seu horário. Para que isso seja possível, a escola está aberta 24h por dia todo o ano: fim-de-semana e feriados, inclusive. A iniciativa, controlo e responsabilidade é dos alunos, o que faz toda a diferença em termos de motivação e autonomia. Desta forma, para além de competências de programação muito avançadas – de machine learning a cyber segurança, de game development a animação, de mobile apps a data science –, aquilo que distingue a 42 é o desenvolvimento de competências humanas, de “aprender a aprender”, resolver problemas complexos, com autonomia, colaboração, criatividade e resiliência.

“É um grupo muito talentoso e extraordinariamente diverso (…) Temos engenheiros, economistas e médicos, e também uma bartender, um cozinheiro e um estofador  (…)”.

Quantos alunos passaram pela 42 no primeiro ano de atividade? De que faixas etárias?
Tivemos 450 candidatos a passar pela “Piscine” – o bootcamp de seleção de 26 dias em que dão os primeiros passos e aprendem a programar em C. Acima de tudo, é um programa imersivo em que é dada a oportunidade aos candidatos de experimentarem o modelo de aprendizagem da 42 antes de fazer um compromisso a longo prazo com o curso.

Dos 450, cerca de um terço decidiram por si só que esta não era a escola ideal para eles e abandonaram o processo. No final foram selecionados 155 que começaram o programa no início de fevereiro. É um grupo muito talentoso e extraordinariamente diverso: dos 17 aos 55 anos, 20% de estrangeiros, desde finalistas do secundário a profissionais das mais variadas profissões. Temos engenheiros, economistas e médicos, e também uma bartender, um cozinheiro e um estofador – da colaboração entre gente tão diversa resultam ideias muito criativas e inovadoras.

“(…) o nosso país tem uma necessidade muito grande de programadores de alto nível e as universidades tradicionais não têm capacidade de resposta”.

Como é que este projeto, que nasceu em França, chegou a Portugal? Como surgiu esta ideia de implementar a escola por cá?
Quisemos fazer a escola em 42 em Portugal porque o nosso país tem uma necessidade muito grande de programadores de alto nível e as universidades tradicionais não têm capacidade de resposta. Por outro lado, estamos fascinados com esta abordagem pedagógica inovadora e temos uma grande esperança que possa inspirar a inovação no nosso sistema de ensino.

Está nos seus planos alargar a 42 a outras cidades?
Estamos a trabalhar para abrir uma 42 no Norte do país que esperamos poder anunciar em breve.

Quais são atualmente os principais mecenas e privados que estão a financiar o projeto?  Mantém os iniciais ou alargaram a carteira de apoios?
Temos quatro fundadores – a Sr.ª Ming Hsu, a Vanguard Properties, o Banco Santander e a Fidelidade Seguros – e mais nove parceiros: a Mercedes-Benz.io, a Fundação José Neves, a BA Glass, a dstgroup, a Huawei, a bi4all, o Observador, o Alexandre Relvas, o Filipe Botton.

Quanto já angariou para este projeto?
Conseguimos até agora donativos de 6 milhões de euros dos 7 milhões necessários para financiar os primeiros cinco anos de atividade da escola. Ainda falta um bocadinho…

Quais os atrativos do projeto para os investidores?
As preocupações dos nossos mecenas prendem-se com duas vertentes essencialmente. A primeira, o desenvolvimento do país, mais especificamente, promover a formação de competências tecnológicas que são cada vez mais necessárias em qualquer indústria, aliadas ao desenvolvimento de competências sociais e humanas.
Em segundo lugar, a promoção de um modelo de ensino mais justo, mais inclusivo, em que as oportunidades de cada um não são tão limitadas pelas suas possibilidades financeiras, a capacidade que têm de coordenar um programa de estudos com outras obrigações, ou uma personalidade forte que não encontra lugar no sistema de ensino tradicional.

A 42 é um espaço privilegiado de recrutamento de novos talentos em programação?
Tem sido essa a experiência internacional.  A 42 Paris é a escola com salários mais elevados à saída em França e a 42 já é reconhecida como uma das melhores escolas de programação em todo o mundo.

“(..) as plataformas de estágios e de placement profissional são comuns à rede de escolas, pelo que qualquer aluno tem acesso a oportunidades profissionais globais.”

Há sinergias com outras escolas internacionais da rede 42?
Neste momento há 36 escolas, 42 no mundo: de Paris a Tokyo, do Québec a Adelaide, de Kuala Lumpur a Madrid, de Wolfsburg a São Paulo…Qualquer aluno pode escolher fazer parte do seu programa numa outra escola, onde vai encontrar a mesma plataforma de aprendizagem e os mesmos desafios, mas com a oportunidade de trabalhar com novos colegas e conhecer outra cultura.

Para além disso, as plataformas de estágios e de placement profissional são comuns à rede de escolas, pelo que qualquer aluno tem acesso a oportunidades profissionais globais. Por último, o modelo pedagógico da escola e os desafios presentes na plataforma de ensino, estão em constante evolução com base no feedback recebido de empregadores e indústrias em todo o mundo.

De que forma a sua experiência na liderança do projeto do campus da Nova SBE em Carcavelos, o ajudou na concretização desta escola?
A experiência que tivemos em Carcavelos foi incrivelmente útil e permitiu-nos abrir a 42 Lisboa em tempo record.  Ajuda muito ter os contactos de fornecedores, a experiência de comunicação e uma estrutura de fundraising…, mas o mais importante é sermos um grupo de profissionais e amigos que partilham uma grande vontade de contribuir para a educação do nosso país.

Já se pode falar em transformação da educação em Portugal ou ainda estamos longe dessa realidade?
Acho que só estamos a começar… Nos próximos anos podemos contar com uma proliferação de novos modelos educativos, novas instituições a competir – start-ups edtech, grandes tecnológicas, plataformas online de universidades internacionais – e vamos ver como reagem as nossas universidades, com todas as dificuldades que têm de falta de meios, modelos de governo pouco ágeis e uma regulação que praticamente impossibilita a inovação.

De que forma espera que 42 contribua para essa transformação e para a formação das futuras gerações?
Em menos de 10 anos o modelo da 42 foi reconhecido e implementado em mais de 20 países e tem hoje 11 mil alunos em todo o mundo. Em Portugal, em poucos meses foram mais de 14 mil aqueles que demostraram interesse em integrar uma escola diferente, e contamos que daqui a uns meses os nossos alunos comecem a dar os primeiros passos no mercado de trabalho, a provar o valor do modelo de aprendizagem da 42 e das competências que aqui se desenvolvem.

A transformação, a mudança, pode muitas vezes ser assustadora, principalmente quando traz algo tão diferente do que estamos habituados como é o caso da 42: uma escola que não tem nem professores, nem horários, nem propinas. Os nossos alunos estão convencidos e acima de tudo estão comprometidos em demonstrar que experimentar modelos inovadores, disruptivos, é necessário e dá bons frutos. Vão ser eles os embaixadores dessa transformação junto das gerações mais novas.

“Temos um aluno que é médico patologista e veio para a 42 porque está convencido que o futuro da patologia passa pela inteligência artificial (…)”.

Programação é a profissão do futuro?
Acho que programação é uma skill fundamental para o futuro de todas as profissões. Temos um aluno que é médico patologista e veio para a 42 porque está convencido que o futuro da patologia passa pela inteligência artificial e sente-se obsoleto porque não aprendeu nada sobre isso no curso. Da mesma maneira, sociologia e programação são a combinação ideal para redes sociais ou linguística e programação para processamento de linguagem natural. Em todos os casos, quem queira criar uma start-up ou trabalhar na fronteira da sua profissão vai ter que saber de programação.

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