Opinião
Abramos os nossos corações e as nossas empresas. O afeto como ferramenta de gestão

Embora não tenha dúvidas de que qualquer pessoa sabe o que é a terça-feira de Carnaval e o Domingo de Páscoa, admito que nem todos saibam como se chama o período que medeia essas duas datas. Atrevo-me a apostar que serão menos os que conhecem a sua duração e ainda mais escassos os que sabem que esse período é sempre igual todos os anos.
Pois bem, para os menos atentos, o período que medeia o Carnaval e a Páscoa chama-se Quaresma, dura 40 dias e está ligado aos 40 dias que Jesus Cristo terá estado no deserto antes de subir a Jerusalém onde acabou julgado, condenado, crucificado para renascer para a vida eterna.
É este o período do ano em que estamos. Muitos poderão pensar que estamos no período do Coronavírus… mas não estamos, porque esse muito provavelmente não se repetirá nos próximos anos ao contrário da Quaresma que já dura há 2.000 anos.
A Quaresma serve, para os cristãos, para preparar esse grande momento da Morte e Ressurreição de Cristo. É um tempo em que somos chamados ao jejum, à esmola e à oração. Não pretendo hoje falar sobre o que o apelo ao jejum, à esmola e à oração podem significar em contexto empresarial, mas senti necessidade de partilhar o que a Quaresma pode representar para um líder empresarial.
Há alguns anos, o António Pinto Leite escreveu um livro a que deu o nome de “Amor ao Próximo, como critério de gestão”. Foi uma pedrada no charco que alertou consciências, suscitou debates, despertou críticas e elogios, mais ou menos apaixonados. Também o atual Presidente da República procura exercer uma magistratura de afetos. A nível mundial, ainda se fala pouco de afeto e amor na gestão, mas não deixa de ser revelador ouvirmos o CEO da BlackRock falar em Propósito abrindo a porta a um mercado que, embora sirva os interesses dos acionistas, também tem que servir os interesses dos outros stakeholders, nomeadamente os colaboradores e a sociedade.
Hoje, em 2020, a procurar viver a Quaresma o melhor que sei e consigo, procuro abrir o meu coração de gestor e, desta forma, destrancar a porta que abre a empresa onde trabalho ao afeto como ferramenta de gestão. Um órgão de gestão, em que os seus principais protagonistas tenham a coragem de abrir o seu coração, estará melhor preparado para enfrentar os desafios do Mundo em que vivemos hoje e das aspirações dos que trabalham ou estão a aceder ao mercado do trabalho.
O que pode, então, ser um gestor de coração aberto?
Pode ser alguém que, no seu papel de líder de topo de uma organização (CEO), membro de um Conselho de Administração ou Comissão Executiva ou simplesmente gestor de uma ou duas pessoas, de vinte ou trinta, de 100 ou 200, consegue ter a capacidade para discernir para além de uma lógica puramente fatual, dos indicadores de desempenho de curto e médio-prazo ou do seu interesse pessoal. Abrir o coração na gestão é, como dizia António Pinto Leite, colocar-se no lugar do outro, procurar perceber porque é que aquela pessoa reagiu daquela forma ou não atingiu os objetivos que lhe foram confiados.
Um gestor de coração aberto é aquele que tem a capacidade para ouvir, especialmente os feedbacks negativos. Um gestor de coração aberto procura perceber a razão antes de julgar e condenar. Um gestor de coração aberto está sempre disponível para dar uma nova oportunidade, para ajudar o outro a superar os seus obstáculos e limitações, para assumir os seus próprios erros sem imputar culpas e responsabilidades a terceiros. Um gestor de coração aberto tem a capacidade de perdoar e de não utilizar o poder que tem em benefício próprio, mas em prol do bem comum. Um gestor de coração aberto serve os outros não se serve dos outros.
Acredito profundamente que a gestão de coração aberto pode destrancar portas que ainda hoje estão fechadas em muitas empresas e que são causadoras de profundo mal-estar, de arbitrariedades e iniquidades, de conflitos e tensões e de tantos outros problemas como o absentismo, a baixa produtividade, as ineficácias ou os conflitos laborais. Sobre este último ponto, é também importante que surjam representantes dos trabalhadores e sindicalistas de coração aberto, mas isso poderá vir a ser tema de outra reflexão.
Creio que a alegria e a liberdade de deixar fluir os nossos afetos no dia a dia, colocando-os ao serviço do Bem Comum, é talvez a ferramenta mais eficaz que temos para abrir os nossos corações, sobretudo ao nível da gestão. Portugal e os portugueses são vistos como um País e um Povo caloroso, acolhedor, solidário, emotivo… O que é isso, senão a expressão de afetos?
Creio que nós, portugueses, estamos, pois, em excelentes condições para começar a abrir os nossos corações e as nossas empresas podendo fazê-lo suportados nesta poderosíssima ferramenta que é a portugalidade dos afetos.
E já agora, porque não começar já a fazê-lo aproveitando a Quaresma?