Opinião
A nova mitologia do “Braço de Ferro”

Os novos tempos, sem dúvida muito turbulentos e inquietantes, estão a fazer ressurgir certos paradigmas e práticas que acharíamos já ultrapassados e definitivamente arrastados para o “caixote de lixo da História”.
Refiro-me, em concreto, ao conhecido paradigma, de inspiração darwinista, da “lei do mais forte” que tem constituído uma alegadamente sólida base de sustentação de práticas agressivas e autoritárias, branqueadas através da muito conhecida afirmação de que “a vida é uma selva”. Esta frase, muitas vezes citada com ressonâncias equivocamente heroicas, tem servido como um “alibi honroso” para sustentar tais práticas, pela alegação de que se trata “apenas” de comportamentos defensivos, portanto legítimos, ao serviço da preservação da vida na tal alegada “selva”.
No entanto, pela persistência e intensificação dessas atitudes agressivas e prepotentes a que vamos assistindo, a vários níveis, na nossa sociedade, num momento em que, pelo menos, gostamos de acreditar que acreditamos viver numa sociedade civilizada e social e culturalmente desenvolvida, é caso para nos interrogarmos por que razão é que continuam a persistir algumas dessas “práticas de selva” , justamente numa altura em que, mais do que nunca, defendemos valores como a diversidade, a inclusão, a empatia e modelos de liderança que apostam no desenvolvimento dos talentos e no bem-estar e felicidade dos colaboradores nas organizações.
Para além das possíveis respostas que, como é habitual, são sempre mais difíceis do que as perguntas, o simples facto de vermos televisão no dia-a-dia é, só por si, uma demonstração expressiva da prevalência de comportamentos e de atitudes que parecem claramente alinhar-se com a tal “lei”, ou, mais propriamente, “mito do mais forte.
Cito, a título de exemplo, uma expressão usada recentemente por um(a) jornalista, num bloco noticioso sobre as complexas relações políticas e comerciais entre os UE e os EUA, que referiu, e cito de memória, que a Europa tinha dado o “braço a torcer” aos EUA, quando vários comentadores que se pronunciaram sobre o assunto referiram, e continuo a citar de memória, que a Europa teria decidido fazer um “recuo tático” antes de avançar para uma atitude de retaliação em relação às tarifas impostas pelos americanos.
Convenhamos que o que separa as expressões “braço a torcer” e “recuo tático” não é apenas uma questão de semântica, mas encerra ela própria uma diferença importante entre uma perspetiva de negociação com base num paradigma “win-lose”, ou, no caso, “lose-win” e uma outra mais apostada numa tentativa de gerar condições para um acordo “win-win”.
Este tipo de expressões, carregadas de conotações negativas e que remetem sempre para a mesma lógica da “lei do mais forte” é, aliás, o apanágio dos debates televisivos entre adversários políticos, que prosseguem estratégias que, mais do que esclarecer os espectadores sobre as respetivas propostas políticas, o que pretendem é, principalmente, “derrotar” o contendor, para granjearem, junto do eleitorado, o benefício de serem considerados “os mais fortes”.
Este tipo de estratégia de permanente confronto agressivo é também positivamente sancionado por certos comentadores que, quando fazem as suas análises e dão as suas “notas”, se referem mais aos aspetos comportamentais dos debates, sobretudo aos comportamentos que evidenciam maior capacidade para “dominar” o adversário, do que propriamente à substância, consistência e clareza das propostas políticas.
Assim, e num ambiente social que destila em permanência sinais de agressividade e estigmas de confrontação e com os meios de comunicação e redes sociais a agirem como poderosos “influencers” num infindável “cortejo de desgraças”, não é de surpreender que se comece a generalizar, nas populações, um insidioso e crescente sentimento de insegurança e de incerteza.
Este clima, que, diga-se, se vai agravando a um ritmo imparável nos últimos tempos, cria “um espaço de dúvida radical onde a confiança naquilo que tomávamos como certo é abalada”. (1)
Quando a confiança falta, as pessoas começam a sentir-se mais vulneráveis e essa vulnerabilidade acentua e atualiza um dos motores mais poderosos de mobilização dos seres humanos: o medo.
E o que é que as pessoas com medo precisam? De segurança, naturalmente.
O medo, como acontece com outras emoções, sobretudo as consideradas como “emoções primárias” (medo, alegria, raiva, tristeza, nojo e surpresa) constituem um “protetor da vida”, desde que a sua expressão seja, por assim dizer, caldeada pela interseção dos centros neuronais responsáveis pela chamada “racionalidade”, em concreto pelo córtex pré-frontal. Esta é a situação em que a resposta à emoção de medo segue a “via lenta” (2), ou seja, quando o estímulo gerador de medo, que é primariamente enviado para o “cérebro límbico, ou médio”, onde estão alojadas as principais estruturas cerebrais responsáveis pelo processamento neuronal das emoções (tálamo e amígdala), prossegue o seu circuito até ao córtex pré-frontal que, após “análise da situação”, dá, por sua vez, “ordem ao corpo” para agir.
Mas, para além desta resposta, digamos, proativa, voluntária e consciente às situações de medo (sinto medo, interpreto a situação e decido o que fazer) há também a possibilidade de a emoção de medo poder prosseguir um circuito de “via rápida” (3), em que o estímulo, enviado ao “cérebro límbico”, é diretamente processado por este, não chegando sequer ao córtex pré-frontal, dando lugar a uma resposta comportamental reativa, muitas vezes inconsciente, e de grande carga emocional (sinto medo, não sei como lidar com ele e reajo impulsivamente).
Ora, num ambiente onde cresce a insegurança, onde a perceção de ameaças é superior à sua evidência concreta, onde “tudo pode ser rotulado de falso” e já não se conseguem definir com clareza as razões para se confiar ou desconfiar de alguém ou de alguma coisa, pode haver o risco de assistirmos a um aumento de comportamentos sociais disruptivos, resultantes do facto de as pessoas pensarem cada vez menos “com a cabeça” (com o seu córtex, mais precisamente, ) e passarem a ter comportamentos, individuais e coletivos, muito mais dominados pelas respostas reativas de medo e pelos consequentes mecanismos de autodefesa.
Quando tal acontece, e quando o aumento da sensação de insegurança é acompanhado pela inquietante perceção de que tudo, ou quase tudo, pode ser falsificado e que tudo, ou quase tudo, aquilo que se ouve dizer e se vê nos canais noticiosos e na redes sociais pode não passar de “fake news” e/ou armadilhas para “tramar o parceiro”, torna-se compreensível que as pessoas acabem por se voltar mais para si próprias e passem a tomar decisões com base dominantemente naquilo que “confirma as suas expectativas ou alimenta as suas emoções” (4).
Esta pode ser, entre outras, uma explicação possível para o facto de as pessoas, uma vez produzidos os laços de identificação com um líder, uma ideia ou uma crença, poderem vir a manter as suas convicções, mesmo em situações onde novas informações e novos factos conhecidos poderem ser suscetíveis de denunciar ou evidenciar o “dark side of the force” desse líder, dessa ideia ou dessa crença.
Esta é a situação em que as pessoas preferem continuar a acreditar naquilo em que “querem” acreditar e não naquilo que os factos ou informações de fontes credíveis conseguem demonstrar.
Neste contexto, a generalização de ambientes de grande instabilidade e de incerteza, é obviamente um terreno fértil para o incremento de filosofias e de práticas cada vez mais influenciadas pelas mitologias do “braço de ferro” e da “lei da selva” que é, no fundo, o “húmus” de que se alimentam os autoritários e os ditadores.
Acossadas pelo medo e pela insegurança, as pessoas tendem a funcionar na sua “via rápida”, através de comportamentos fundamentalmente ditados pelos territórios mais “larvares” das suas emoções primárias.
Tendo cada vez mais dificuldade em ordenar as suas vidas através de estratégias claras e ponderadas, unem-se em torno daqueles de demonstram mais força, daqueles que, não importando o que são, são os que mais se aproximam do estereótipo do que domina a “selva”.
Apesar dos tempos difíceis que vivemos, precisamos, talvez mais do que nunca, de líderes que, paradoxalmente, sejam “anti selva”: líderes que demonstrem competências para poderem ser considerados como “líderes fortes” e, ao mesmo tempo, manterem uma grande sensibilidade à dimensão humana dos seus seguidores e/ou colaboradores, fazendo com que a força das suas equipas seja parte integrante da sua própria força como líderes.
Este é não só um desafio fundamental para uma liderança eficaz, em tempos turbulentos, mas, por tudo o que ficou dito, um verdadeiro impetrativo civilizacional
Estaremos nós à altura desse desafio? Esperamos e desejamos que sim. A bem do futuro.
Referências
- Adolfo Mesquita Nunes, O Fim da Verdade. Jornal Expresso, Revista. Edição 2727, 31 de janeiro 2025.
- Manuel Costa e Ignacio Martin. National Geographic Portugal. Edição Especial Os Segredos do Cérebro. 2025.
- Idem
- Adolfo Mesquita Nunes, O Fim da Verdade. Jornal Expresso, Revista. Edição 2727, 31 de janeiro 2025