Entrevista/ “A economia do mar tem uma taxa de feminização de apenas 25,2%”
Nas pescas as mulheres correspondem apenas a 9,6% da força de trabalho, na indústria transformadora já estão em maioria (66,8%), bem como em I&D no Estado (64,6%). Mesmo nos setores da Economia Azul, em que estão menos representadas, “a sua magnitude parece estar subavaliada”, afirma Susana Viseu, presidente da Business as Nature, defendendo que é preciso “criar uma maior igualdade de género e um crescente envolvimento e valorização do papel das mulheres pelo oceano”.
Promover a produção e consumo responsável e sustentável, e o desenvolvimento da economia circular, e de baixo carbono, incentivando o empreendedorismo, o empoderamento feminino e a igualdade de género. É esta a missão da Business as Nature (BasN), que foi criada há três anos por Susana Viseu, consultora da Presidência da República para o Ambiente.
A organização sem fins lucrativos promoveu há um mês, em parceria com o Ministério do Ambiente e Ação Climática, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera e a Casa Comum da Humanidade, a iniciativa “Women 4Our Ocean”, no âmbito da conferência dos Oceanos das Nações Unidas, com o objetivo de divulgar e enaltecer as mulheres que contribuem para a proteção do oceano e para a economia azul na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
E porque, como diz a sua líder, “é importante, sobretudo, agir”, a organização tem ainda previsto para este ano um encontro com embaixadoras acreditadas em Portugal para o lançamento do Manifesto das Mulheres pelo Clima dos países de língua portuguesa para o Mundo, um side event, para a subscrição do Manifesto por mulheres empresárias, cientistas e políticas, e outras ações de capacitação para a promoção do empreendedorismo feminino na área da economia circular, de baixo carbono e da ação climática.
O que é a Business as Nature e como surgiu?
A Business as Nature é uma associação sem fins lucrativos constituída no dia 8 de maio de 2019 por um grupo de mulheres com experiências diversas, nas áreas de sustentabilidade e defesa do papel da mulher, motivadas para uma missão comum: dar o seu contributo para a ação climática, para a proteção do oceano e para a promoção da produção e o consumo sustentável e da economia circular e de baixo carbono. Dá especial atenção ao envolvimento das mulheres como influenciadoras e agentes diretos neste processo de mudança e de desenvolvimento económico-social, aspirando igualmente incentivar o empoderamento, o empreendedorismo feminino e a igualdade de género.
A BasN pretende, assim, e de forma efetiva, a nível nacional e internacional, realizar e dinamizar projetos em alinhamento com os atuais Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, em concreto os ODS#12 (Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis) e ODS#5 (Alcançar a igualdade de género e empoderar todas as mulheres e meninas) e, mobilizar e fortalecer relações entre os cidadãos/consumidores, empresas, academia e instituições governamentais, ambicionando por uma sociedade mais responsável, justa e equilibrada. Um dos nossos objetivos é criar um Cluster da Sustentabilidade no Feminino, envolvendo mulheres em todo o mundo que desenvolvem as suas atividades como empreendedoras, líderes de empresas ou políticas, cientistas, educadoras, mães, “influenciadoras”, jornalistas, para uma transição para uma economia circular e de baixo carbono.
Como começou a sua ligação aos temas da sustentabilidade e do desenvolvimento de uma economia circular e de baixo carbono?
Desde sempre tenho uma forte ligação à natureza e interesse em conhecer os temas ligados à Terra e aos vários elementos e sistemas que a constituem. Daí a minha formação de base em Geologia Económica e Aplicada em especial ao ambiente e todo o meu percurso académico e profissional sempre ligado às questões da sustentabilidade ambiental, como consultora, como gestora de empresas no setor empresarial do ambiente, como professora e como ativista.
No início, há mais de 25 anos, a abordagem era ainda focada nas questões da poluição e da qualidade dos fatores ambientais, como a água, o ar, o solo, a biodiversidade e a gestão de recursos e desperdícios, como a gestão de resíduos e de efluentes e a implementação de sistemas de gestão ambiental e de estratégias de sustentabilidade nas empresas. Em seguida, com toda a evolução das prioridades em termos de políticas públicas e de ação ambiental, foi ganhando sentido de urgência o combate às alterações climáticas, à crescente degradação de recursos naturais e à perda da biodiversidade, reforçando a necessidade de um novo paradigma de desenvolvimento, assente numa economia circular e de baixo carbono e, mais recentemente, de criação de um sistema global que permita valorizar e remunerar os serviços dos ecossistemas.
Que balanço faz “Women 4Our Ocean”?
O evento “Women 4Our Ocean” da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa para o Mundo, realizado no âmbito da Conferência dos Oceanos das Nações Unidas, pretendeu divulgar e enaltecer o papel das mulheres de língua portuguesa na sua relação com o oceano e na ação e empenho diário que colocam na sua preservação, proteção e regeneração.
Neste evento foi dado especial destaque à divulgação de iniciativas promovidas por mulheres da comunidade dos países de língua portuguesa e ao seu papel como “agentes de mudança” e “influenciadoras” nas áreas cientificas, de ativismo, de empreendedorismo e que têm contribuído para a implementação do objetivo de desenvolvimento sustentável 14 “Conservar e utilizar de forma sustentável os oceanos, os mares e os recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”, e impulsionado soluções e abordagens inovadoras, para uma gestão sustentável dos oceanos e dos recursos marinhos, para as ameaças à sua saúde e ecologia, para os problemas do lixo marinho e poluição, entre outros.
Uma das novidades decorrentes da Women 4Our Ocean” é o lançamento da plataforma MetaMARfose. Pode falar mais sobre esta plataforma e em que é que consiste?
Esta plataforma foi criada pela UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa), com quem a Business as Nature estabeleceu uma parceria para a sua dinamização e promoção. Tem como objetivo agrupar projetos ligados à proteção e valorização do oceano e das zonas costeiras e insulares nos países de língua oficial portuguesa, estimulando o diálogo, a troca de experiências e a disseminação de boas práticas, e potenciando sinergias entre os vários municípios com ligação ao mar.
“Portugal tem uma tradição de ligação com o Oceano e definiu e bem um dos seus eixos estratégicos de desenvolvimento baseado na Economia Azul, aproveitando de forma sustentável os recursos marinhos e promovendo a valorização e remuneração dos seus ecossistemas”.
Qual tem sido o papel das mulheres portuguesas na sua relação com o Oceano?
Portugal tem uma tradição de ligação com o oceano e definiu e bem um dos seus eixos estratégicos de desenvolvimento baseado na Economia Azul, aproveitando de forma sustentável os recursos marinhos e promovendo a valorização e remuneração dos seus ecossistemas. As mulheres tradicionalmente tinham um papel mais de apoio em terra, na transformação dos produtos do mar – a economia do mar tem uma taxa de feminização de apenas 25,2% e a sua proporção não é semelhante em todos os setores analisados.
Segundo o Diagnóstico sobre Igualdade de Género nos Setores da Economia do Mar, elaborado pelo Observatório Nacional de Violência e Género (CICS.NOVA), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, nas pescas as mulheres correspondem apenas a 9,6% da força de trabalho, na indústria transformadora já estão em maioria (66,8%), bem como em I&D no Estado (64,6%).
Mesmo nos setores da Economia Azul, em que as mulheres estão menos representadas, de acordo com este estudo, “a sua magnitude parece estar subavaliada”. E a verdade é que ao nível da formação, por exemplo, tem-se registado uma procura crescente das mulheres em atividades associadas aos papéis tradicionais dos homens, como é o caso das funções de pescador, marinheiro e técnico de construção e reparação naval, embora ainda subsista uma maior dificuldade destas acederem aos lugares de topo e de tomada de decisão no conjunto das atividades ligadas à economia do mar.
Isso é particularmente visível ao nível da investigação e desenvolvimento no ensino superior, onde, apesar de o número de mulheres ser superior ao dos homens, essa relação inverte-se quando se trata de cargos dirigentes. Há também diferenças relativamente à remuneração média, em que, no setor das pescas, as mulheres recebem menos 23,6% que os homens. Temos, pois, uma missão de neste setor estratégico criar uma maior igualdade de género e um crescente envolvimento e valorização do papel das Mulheres pelo Oceano.
Quais as mulheres que mais a inspiram e que mais têm contribuído para a sustentabilidade do planeta e para a igualdade de género?
As mulheres que mais me inspiram são as que, com toda a exigência e desafios das suas vidas, encontram soluções e conseguem produzir conhecimento, empreender, contribuir para a educação e sensibilização, para a tomada de decisão nas áreas ambientais, das alterações climáticas, da proteção do oceano, da conservação e valorização dos ecossistemas. Mas também as que lutam pela justiça e pela igualdade e não descriminação em diferentes partes do Mundo, muitas vezes pondo em risco a própria vida.
Mas não posso deixar de referir três mulheres que têm dedicado a sua vida às questões ambientais. Vandana Shiva, ambientalista indiana que passou grande parte de sua vida em defesa da biodiversidade. Em 1991, fundou a Navdanya, um instituto de pesquisa que tem como objetivo proteger a diversidade e a integridade das sementes nativas, além de promover práticas de comércio justo. Este projeto é dedicado a abordar as questões ambientais e sociais mais significativas da era atual. Wangari Maathai (1940-2011), bióloga queniana, também conhecida como Mulher-Árvore, que, em 2004, recebeu o Prémio Nobel da Paz pelo seu contributo para o desenvolvimento sustentável. Este prémio, o primeiro para uma mulher africana, foi o ponto alto de uma trajetória que começara em 1977 quando fundou o Green Belt Movement (Movimento Cinturão Verde), cujo objetivo era combater a desertificação, o desmatamento, a crise da água e a fome rural.
E a incontornável Jane Goodall, primatóloga inglesa tem revolucionado a ciência desde 1960 com os eus métodos inovadores e as suas fascinantes descobertas sobre a conduta dos chimpanzés selvagens em Gombe (Tanzânia) e que continua a trabalhar na proteção dos ecossistemas e da biodiversidade, na educação ambiental e na sustentabilidade.
“Não podemos, por um lado, definir metas de descarbonização e de proteção de biodiversidade e, por outro, apostar em setores e infraestruturas que claramente acentuam a nossa pegada carbónica e promovem a afetação significativa dos ecossistemas relevantes”.
O que é preciso fazer para cumprir os objetivos associados à transição verde?
Os objetivos são vários para responder a diferentes problemas ambientais, desde a crise climática, à perda da biodiversidade e degradação dos recursos naturais, à poluição, à escassez de água potável, à degradação dos recursos naturais. Tentando sintetizar. É importante, sobretudo, agir. Passar dos compromissos à ação, o que já está a acontecer, mas cujo ritmo tem de ser intensificado. Esta ação deve ser assegurada a diferentes níveis. Primeiro, o da governance e institucional. É preciso subir mais um degrau na ambição do Acordo de Paris, no reconhecimento do Clima como Património Comum da Humanidade, promovendo a valorização e remuneração dos serviços dos ecossistemas, criando um novo paradigma económico que valoriza financeiramente a natureza e o sistema terrestre, como forma efetiva de assegurar a sua conservação.
Depois no desenvolvimento tecnológico e na inovação associada à economia verde, no investimento na ciência e na produção de conhecimento. Assegurar que esta transição é assumida pelas empresas, pelas organizações, pelas cidades, na sua descarbonização, mas também na promoção e conservação de sumidouros de carbono e no esforço conjunto de adaptação aos incontornáveis efeitos das alterações climáticas. No assumir, por parte dos decisores políticos, que estes objetivos não são setoriais, são transversais a todas as políticas e às opções de desenvolvimento escolhidas. Não podemos, por um lado, definir metas de descarbonização e de proteção de biodiversidade e, por outro, apostar em setores e infraestruturas que claramente acentuam a nossa pegada carbónica e promovem a afetação significativa dos ecossistemas relevantes.
E não podemos esquecer o papel que todos nós temos nesta transição, cada um de nós, nas nossas escolhas individuais. Nas opções de compra, na adoção de estilos de vida mais sustentáveis, na redução, na maior eficiência e sustentabilidade no consumo, no ativismo e nas nossas escolhas políticas.
E o que é preciso fazer para alcançar uma maior igualdade e diversidade nos cargos de liderança?
O Conselho e o Parlamento Europeu aprovaram, recentemente, um acordo político provisório sobre um novo ato legislativo da UE que promove uma representação mais equilibrada de mulheres e homens nos conselhos de administração das empresas cotadas, reconhecendo a significativa diferença que ainda subsiste no acesso das mulheres a cargos de liderança. No mundo da tecnologia esta sub-representação acentua-se.
Mas para além da legislação ou de imposições exteriores (sem lhes retirar importância), o mais importante é que as mulheres acreditem em si próprias, que não se autolimitem. E isto vem das condições socioeconómicas e de educação de base e estruturais. A educação das meninas e jovens mulheres para a ciência e tecnologia, mas também para o desbloquear dos fatores que condicionam a sua autoestima e capacidade de liderança são fundamentais. Acredito no trabalhar em rede, com exemplos e mentoria de mulheres que conseguiram ultrapassar os seus obstáculos e implementar estratégias de organização e gestão diária do multitasking.
E é importante ir além da questão apenas do feminino. Qualquer organização é comprovadamente mais rica e bem-sucedida se for mais diversa, se acolher diferentes visões do mundo e de formas de estar. É como na natureza: quanto maior a biodiversidade, maior a resiliência e a riqueza dos ecossistemas. E cada vez temos mais que olhar para as empresas, para as organizações como sistemas vivos e implementar aquilo que são os ensinamentos deste equilíbrio natural das suas interações e fluxos, para a gestão organizacional.
Na sua opinião, o que diferencia a visão das mulheres e dos homens no que ao tema da sustentabilidade diz respeito?
A questão de género não é necessariamente diferenciadora na visão sobre a sustentabilidade, aliás quanto mais integrar diferentes visões, em termos de género, religião, idade, etc mais sustentável será o desenvolvimento e o modelo de sociedade no futuro. Mas não generalizando, em regra as mulheres têm no seu DNA o cuidar. Cuidar da família, cuidar das comunidades, pelo que é natural este cuidar dos ecossistemas e do planeta. Para além de que, segundo a Organização Mundial do Comércio, as mulheres são quem, em média, toma as decisões de compra em 85% dos casos e quem assume ainda a nível mundial o papel mais determinante na educação dos filhos, pelo que é fundamental o seu envolvimento para um consumo e estilos de vida mais sustentáveis.
“Temos também prevista a realização de mais edições do nosso Programa das Embaixadoras da Sustentabilidade, dirigido a jovens raparigas dos 15 aos 25 anos”.
Que outras iniciativas tem a Business as Nature previstas?
No âmbito do movimento “Women 4Our Climate”, temos vários eventos previstos ainda em 2022, desde um encontro com embaixadoras acreditadas em Portugal para lançamento do Manifesto das Mulheres pelo Clima dos países de língua portuguesa para o mundo, até à organização de um side event, no âmbito das Smart Cities (com a Casa Comum da Humanidade) para a subscrição do Manifesto por mulheres empresárias, cientistas, políticas, etc, à participação na COP 27 no Egito com um evento das “Women 4Our Climate”.Temos também prevista a realização de mais edições do nosso Programa das Embaixadoras da Sustentabilidade, dirigido a jovens raparigas dos 15 aos 25 anos, e o desenvolvimento de ações de capacitação para a promoção do empreendedorismo feminino na área da economia circular e de baixo carbono e da ação climática.
Para além disso, estamos a desenvolver iniciativas de educação e sensibilização ambiental dirigidas a diferentes públicos, promoção do consumo sustentável das famílias, limpezas de praia, etc. Estamos também fortemente empenhadas, juntamente com a Casa Comum da Humanidade, e com o envolvimento da academia, na promoção do clima como património comum e na definição de um modelo de valorização e remuneração dos serviços dos ecossistemas, fundamental para sustentar este novo paradigma de desenvolvimento baseado nas soluções de base natural e nas tecnologias verdes e digitais.
O que ainda falta fazer à Susana Viseu empreendedora? E à Susana Viseu mulher?
Não projeto muito o futuro. A minha vida (como a de todos nós, mesmo os que fazem muitos planos) vai acontecendo e vamos construindo e aproveitando as oportunidades que vão surgindo. Gostava de poder ter um papel mais ativo a nível internacional, envolvendo mais mulheres e dando a conhecer o que fazem e poder contribuir para que a sua vida, das suas famílias e comunidades tenham mais prosperidade e estabilidade.
Gostava de escrever mais umas peças de teatro de rua dirigidas a crianças e histórias infantis. Talvez na reforma ter um turismo rural sustentável que pudesse contribuir para dinamizar as comunidades locais e os produtos locais tradicionais, com uma loja física e on-line de produtos do mundo feitos por mulheres.
Como mulher gostava ainda de fazer o Doutoramento e de fazer um curso de cozinha no Le Cordon Bleu e ter aulas de canto e a nível pessoal sou muito pouco original, gostava de ver a próxima geração estável e realizada e manter a família unida e feliz.
Respostas rápidas:
O maior risco: Não ter o impacto que idealizo, nas ações que implemento.
O maior erro: Não agir.
A maior lição: Viver.
A maior conquista: Contribuir para que os que nos são mais próximos sejam felizes e realizados, para o bem-estar da nossa comunidade e para que o Mundo seja um lugar mais justo e sustentável.