Opinião

A competitividade toca a todos

Pedro Celeste, diretor-geral da PC&A

Quinze anos depois de ter investido de forma muito significativa no negócio do streaming, a Netflix espera perder cerca de 2 milhões de clientes nos próximos meses, sobretudo devido à competitividade intensa que o setor do entretenimento vai conhecendo, aliada a uma decisão tática de aumento dos preços em cenários que se preveem inflacionistas. E é a primeira vez na última década que tal facto acontece, com a empresa a perder cerca de 68% do seu valor de mercado em bolsa desde o início de 2022.

Tudo isto nos remete para o tema da competitividade, que toca a todos, mais cedo ou mais tarde. Ainda que permaneça como líder destacado com 25% de quota de mercado, a Netflix atravessa um momento de relativa turbulência, uma vez que outros grandes players lhe começam a fazer frente, também eles com formatos diferenciadores, como a Prime Video, Hulu e Disney+ (cada um com 13% de quota de mercado), a HBO (12%) e a Apple Tv + com 5%, mas a crescer significativamente.

Recorde-se que a Netflix foi, provavelmente, uma das empresas que maior sucesso conseguiu na última década, devido ao seu grau de diferenciação e preços comportáveis, o que a fez chegar a 190 países, em versões multilinguísticas. Com este registo, assumiu um enorme protagonismo a nível global, ao mesmo tempo que soube segmentar cada mercado e customizar os respetivos conteúdos na interação com clientes. Foi das primeiras marcas a compreender o comportamento dos consumidores num mercado global e a moldar as suas preferências.

A questão que hoje se coloca é a de saber se o mercado aguenta a pressão de tanta competitividade e se há espaço para todos, uma vez que os investimentos em novos conteúdos exigem esforços demasiado robustos. Para tornar tudo ainda mais complicado, a Netflix cessa os seus serviços na Rússia, a China bloqueia os serviços estrangeiros de streaming e adicionalmente há cerca de 100 milhões de pessoas que assistem à Netflix sem pagarem subscrição, por força das contas partilhadas.

Nada disto é novo. No passado recente, assistimos ao crescimento das vendas dos carros elétricos comparativamente com os movidos a gasolina, à substituição da preferência dos consumidores por alimentos biológicos em vez de sintéticos, pela opção de compra via digital em detrimento da compra em loja, do plástico por papel, do táxi tradicional para serviços de transportes assentes em plataformas digitais, do postal para o WhatsApp, do fotógrafo para a selfie, dos medicamentos de marca para genéricos, do jornal em papel para a notícia online. Tantos e tantos setores enfrentaram grandes turbulências no mercado devido ao avanço tecnológico, a par da alteração do comportamento e preferências dos clientes.

Hoje essa turbulência chegou à Netflix, amanhã chegará à Tesla, depois à Amazon, Apple ou Google. E não há mal nenhum nisso. A competitividade faz parte da forma como as empresas e as suas marcas crescem. O sucesso da H3 não contribuiu para o decréscimo da importância da Mc Donald’s, a entrada bem-sucedida da Mercadona não limitou o crescimento das vendas do Pingo Doce ou Continente, a importância da Nespresso não minimizou a presença do mercado da Delta Q, a formação profissional online não fez com que as escolas e universidades mais preparadas fechassem as portas.

Competitividade é isso mesmo. Ser capaz de oferecer soluções diferenciadoras e credíveis desde que estejam alinhadas com o mercado. Custa dinheiro? Sim! E vai custar cada vez mais, tornando cada mercado mais esmagado em margens, por impacto de preços competitivos, sem perda de qualidade. Foi assim com a Uber, Spotify, Booking, Amazon e será assim com a Netflix.

Afinal, depois de House of Cards e muitos outros sucessos, a marca continua a investir em grandes produções, como o Ozark ou Stranger Things. Depois de limitar o acesso a novos episódios semanalmente, passou a permitir ver as séries por inteiro.

Foi neste ritmo incessante de diferenciação que atingiu mais de 220 milhões de espectadores, tendo obtido lucros pela primeira vez em 2021. E tem como objetivo atingir 500 milhões de subscritores.

É provável que para gerar mais receitas e manter a quota de mercado, a Netflix se veja obrigada a recuar nos fees publicitários e eventualmente no valor da subscrição, sem nunca perder todo o referencial qualitativo. Se retroceder neste domínio, não será o preço que a salvará.

É que o mercado não pode consumir tudo e faz escolhas: neste como noutros casos, pelo melhor serviço ou produtos ao preço mais competitivo.

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Pedro Celeste

Pedro Celeste

Doutorado em Gestão pela Universidade Complutense de Madrid. Diplomado pelo INSEAD, London Business School, Wharton School, University of Virginia, MIT Management Sloan Management School, Harvard Business School, Imperial College of London, Kellogg School of Management de Chicago e IESE Business School. Na Católica Lisbon School of Business & Economics é Diretor Académico dos Executive Master in Management e coordenador do Programa Avançado de Marketing para Executivos, do Programa de Gestão Comercial e Vendas, do Programa de Gestão em Marketing Digital... Ler Mais..

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