Entrevista/ “Logo se vê” não pode ser uma ideia aceitável

Ricardo Tomé, diretor-coordenador da Media Capital Digital

Falarei de forma mais incisiva e até admito que visto na perspetiva económica pelos mais liberais ou pelos adeptos dos GAFA será até mesmo condenável. Falarei de uma ideia que não é nova e que é hoje facilitada sem termos (digo eu) devidamente ponderado os seus reais impactos.

Estarei a ser demasiado preocupado. Admito. Mas nunca vi grande problema em se pedir um pouco de reflexão atempada.

Qual é o tema, portanto?
“Buy Now, Pay Later”

Isso mesmo.
A velha e gasta ideia do crédito.
Mas porquê?
Simples.

Aos que podem pelos seus afazeres não ter recebido ainda a novidade numa qualquer notícia no feed, são já várias as soluções de “Buy Now, Pay Later” (BNPL) que estão a atacar com sugestões de facilitismo a compra desejada. Klarna. Affirm. AfterPay (comprada agora pelo Twitter). E o próprio PayPal. A mais sonora será talvez a Klarna, empresa sueca que está incluída no ecossistema do TikTok.

Mas o que torna esta velha ideia tão premente de ser discutida hoje?
Porque os primeiros dados revelam aquilo que os velhos do Restelo temiam.
A idílica visão (confirmada) de que esta solução até seria usada sobretudo para compras de baixo valor (500 euros ou menos, sendo em muitos casos na geração Z para compras abaixo de 100 euros) a verdade é que nos primeiros dados que se vão conhecendo (maior incidência para já dos EUA) um terço dos jovens que usou já falhou pelo menos uma ou mais prestações.

Nunca foi difícil convencer alguém que o dinheiro pode ser fácil…

A visão é perfeita. As empresas de cartões de crédito cobram taxas altas e são vistas como injustas e maquiavélicas. Surgem então estas novas soluções com comissões mais baixas, até porque parte do esforço passa para o vendedor. Mas estes não se importam, pois os resultados mostram que oferecendo soluções BNPL o montante médio na ordem de compras está nalguns casos a aumentar 45%.

O resultado vai estando à vista.
Compras que antes não ocorriam agora sucedem-se em catadupa, sobretudo na famigerada altura do final do mês, onde o saldo escasseia, mas pensando bem… o ordenado está ao virar da esquina. Porque não? Afinal, são apenas alguns euros.

O que altera esta solução face às existentes?
Para além de escapar por ora à regulação, dois pontos que será pertinente refletir.

1. O ecossistema
A forma como estas soluções estão encaixadas dentro das plataformas torna o processo fácil. Mas qual a diferença disso para o cartão de crédito na Amazon? Nenhum, certo? Mais ou menos. O contexto onde habitualmente vemos apelo ao crédito e a pagamentos parcelares é em plataformas de comércio eletrónico. A orientação da visita é precisa. Falamos de ecommerce. Mas…e se aplicarmos isto a um contexto de aplicações sociais, onde estamos imbuídos de outro espírito, relaxados e rodeados de posts de influencers, amigos, família… discretamente bombardeados por estímulos mais ou menos indiscretos, mais ou menos subtis, dia após dia, com retargetizações de conteúdos permanentes sem bem saber porque estamos a receber aqueles “conteúdos” que, afinal, são mais anúncios a estimular uma compra?

2.Literacia financeira
Talvez o ponto mais pertinente.
Se ao longo dos anos os jovens obtivessem uma formação e educação financeira com tamanho detalhe tal como explicamos tantas matérias clássicas, talvez na vida adulta os nossos jovens das Gerações Z e Millennial não estivessem agora a endividar-se e a ser surpreendidos pela dívida acumulada (de tal forma que no próprio TikTok já se dança sob a hashtag #cripplingdebt / dívida enorme).

Soluções que tornam a nossa vida mais cómoda e nos ajudam a resolver os problemas são bem vindas. O recurso ao crédito ajuda milhões em todo o mundo. Nada disso está em causa. Mas esta colocação-à-disposição de forma fácil e em contextos até aqui mais “distantes” da habitual zona de compras torna a situação desafiante. Sobretudo tendo em conta, como felizmente hoje já sabemos, que as decisões de compra são eminentemente emocionais.

Infelizmente, em tantos anos de world-wide-web temos visto o mesmo filme. A disrupção é mais veloz. A regulação não acompanha. Uma start-up que tenha uma ideia que não esteja a quebrar regras é vista como não sendo visionária. Primeiro implementa-se e depois logo se vê. Infelizmente à custa de, por vários anos, isso poder trazer benefícios de uns e destruindo os de outros sem qualquer tempo de acomodação, feita depois a correção só à posteriori, onde alguns dos danos já serão irreversíveis.

Como pais, façamos o eterno esforço de tudo tentar para dotar os nossos filhos das ferramentas que melhor os irão preparar para um mundo VUCA. E neste capítulo do Buy Now, Pay Later, insistirei que é melhor Work Now, Dream Daily & Buy Later

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Ricardo Tomé

Ricardo Tomé

Ricardo Tomé é Diretor-Coordenador da Media Capital Digital, empresa do grupo que gere a estratégia e operação interativa para as várias marcas – TVI, TVI24, IOL, MaisFutebol, AutoPortal, etc. – com foco especial na área mobile (Rising Star, MasterChef, SecretStory) e Over-The-Top (TVI Player), bem como ativação de conteúdos multiscreen em todas as plataformas e realizando igualmente a ponte com o grupo PRISA nas várias parcerias: Google & YouTube, Facebook, Twitter, Endemol, Shine, entre outras. Foi, até 2013, coordenador da... Ler Mais..

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