Entrevista/ “Precisamos de jovens corajosos que entendam o valor de trabalhar na economia social”

Patrícia Rocha, diretora executiva da Fundação Manuel Violante

“É urgente que se olhe de frente para a situação social do país e que se perceba que precisa de ser construído um futuro melhor para organizações sociais pois são elas que constroem um futuro melhor para muitos de nós”. Patrícia Rocha, diretora executiva da Fundação Manuel Violante, traça assim o perfil do setor em que atua.

Com um papel muito ativo na sociedade portuguesa, há 15 anos que a Fundação Manuel Violante contribui para a capacitação das organizações sociais, dando-lhes ferramentas de gestão para que possam melhorar o seu impacto social. Patrícia Rocha, diretora executiva da instituição, lidera o projeto com a motivação de chegar ao final do dia tendo feito a diferença na vida das pessoas com quem trabalha. E acredita que “o sucesso de uma organização social não se mede pelos seus resultados financeiros, mas sim pelo número de pessoas que apoia”.

A Fundação Manuel Violante trabalha na economia social há 15 anos e já tem quase 400 organizações no seu currículo. Qual é o segredo?
A Fundação Manuel Violante é uma organização da economia social, sem fins lucrativos, cujo propósito é contribuir para o desenvolvimento social e económico de Portugal através do reforço de competências da economia social. A Fundação nasceu em 2004, como homenagem ao Dr. Manuel Violante, sócio fundador do escritório da McKinsey & Company em Portugal, pela genialidade e paixão com que sempre guiou a sua vida e inspirou todos os que o rodearam. Desde então, temos vindo a guiar e capacitar as organizações sociais para transformarem o seu impacto e potenciarem os seus resultados nas comunidades que servem.

A verdade é que só nos últimos cinco anos já ajudámos mais de 100 organizações e 5.600 colaboradores a impactarem 200.600 beneficiários – o que demonstra o nosso impacto e o quanto temos vindo a trabalhar o nosso propósito ao longo destes 15 anos.

O segredo para que isto seja possível são os mais de 50 voluntários que apoiam a Fundação, incríveis e incansáveis, bem como os parceiros, que nos apoiam e permitem concretizar esta missão. Exemplo disso são a ASBAL, a Associação de São Bartolomeu dos Alemães em Lisboa, o nosso parceiro de coração, que alinha com a nossa missão e que nos acompanha na satisfação das necessidades das organizações desafiando-nos sempre a ir mais longe; o ISCTE Educação para Executivos que é o nosso parceiro na Academia, muito próximo do programa com uma intervenção direta na construção de conteúdos e com a disponibilização de formadores; e a CUF, nossa parceira já há três anos que reconhece o nosso programa de capacitação (MILES) como um instrumento eficaz na capacitação da economia social dos territórios onde intervém.

São estes parceiros que financiam bolsas que possibilitam a participação das organizações no programa e que disponibilizam formadores, mentores e instalações para que o MILES seja uma realidade.

“(…) a sociedade não pode desenvolver-se sem organizações sociais fortes e capazes (…)”.

De que forma a Fundação Manuel Violante ajuda as organizações sociais? Qual é o processo?
Apoiamos as organizações sociais através da sua capacitação, para que estas sejam capazes de manter e desenvolver o seu trabalho e impacto social. Intervimos nos aspetos críticos ligados à sustentabilidade e ao impacto. Reconhecemos que a sociedade não pode desenvolver-se sem organizações sociais fortes e capazes e é aí que atuamos.

A maneira mais fácil de clarificar o nosso trabalho é falar do programa MILES, um programa que vem facilitar a vida às equipas das organizações. Com a duração de um ano, está estruturado por missões que devem ser ultrapassadas pelas organizações em equipa e comunidade. Em cada uma destas missões as equipas vão aprender a tornar o seu trabalho mais fácil e eficaz. Iniciamos com um diagnóstico individualizado e trabalhamos 16 temas de gestão cruciais para as organizações sociais: mudança, estratégia, estrutura organizativa, funções e responsabilidades, gestão de talento e feedback, gestão de equipa e comunicação interna, modelo de negócio, angariação de fundos, marca, qualidade do serviço, liderança, governance, impacto, inovação, gestão de risco e sistemas de proteção de cuidado.

A capacitação é realizada através de uma plataforma digital e com recurso a metodologias inovadoras de ensino. Esta conjugação permite a criação de uma comunidade de organizações motivadas para o crescimento e aumento do impacto social do seu trabalho.

Durante a sua participação no programa, cada organização verá a sua equipa reforçada com um mentor, voluntário da Fundação Manuel Violante. Este mentor acompanhará as equipas e direção de cada organização, apoiando a implementação no terreno do trabalho desenvolvido.

Qual a razão pela qual as organizações mais vos procuram?
A maioria das organizações chega à Fundação porque precisa de desenvolver as competências de gestão das suas equipas. Percebem que o conhecimento de gestão que a equipa tem não é suficiente para ultrapassar os desafios que enfrenta, sejam conjunturais ou estruturais. São geralmente organizações que querem ser mais fortes e marcar a sua posição no setor.

Que casos de sucesso destaca e que podem servir de inspiração a outras organizações?
Felizmente, temos vários casos de organizações sociais bem-sucedidas que têm vindo a marcar a história da Fundação Manuel Violante. Mas, há um que especialmente nos orgulhamos que se chama “A Barragem”, uma organização com sede em Cascais que apoia pessoas toxicodependentes, com uma comunidade terapêutica e que esteve em risco de fechar. Com o nosso acompanhamento, e com muita resiliência pela parte da equipa de gestão da organização, conseguiu ultrapassar essa fase menos positiva e reerguer-se. Foi uma enorme conquista saber que todas aquelas pessoas apoiadas não iam ficar desprotegidas.

Esta foi uma das maiores provas de que o nosso trabalho importa quando conseguimos evitar que as 100 pessoas que pertenciam à comunidade terapêutica daquela organização social ficassem sem este apoio e os colaboradores que lá trabalham perdessem o seu emprego.

Este caso enche-me de orgulho, até porque é uma organização que está connosco desde 2013 e que sempre que precisa de tomar uma decisão nova, abrir um negócio novo, uma área nova, vem ter connosco. O que demonstra o quanto conseguimos impactar positivamente as organizações sociais e as suas pessoas para que, posteriormente, elas continuem o ciclo com os seus beneficiários.

Como é que vocês chegam a estas organizações?
Varia bastante. Existem organizações que chegam até nós por recomendação de outras organizações que já conhecem a Fundação Manuel Violante e integraram algum dos nossos programas. Mas, temos também parceiros que divulgam a nossa mensagem, tal como as Câmaras Municipais, que têm um grande peso e impacto na divulgação da Fundação e do Programa Miles, ou algumas organizações que nos apoiam.

Como surgiu o programa de capacitação MILES?
Surgiu da vontade de capacitar cada vez melhor o setor social. As necessidades de capacitação em gestão são identificadas e sublinhadas constantemente pelas organizações sociais, mas o modelo de capacitação nem sempre é o correto. Quando desenhámos o MILES demos especial importância ao formato que utilizaríamos para fazer casar as necessidades das organizações com a ambição que temos para o setor. Utilizando os ensinamentos que retiramos do trabalho durante a pandemia, maioritariamente online, percebemos que o nosso novo modelo de capacitação teria de passar por aí.

Quando encontramos a Miles in the Sky percebemos que iríamos ter o parceiro tecnológico certo. Não só conseguimos construir uma comunidade de aprendizagem digital (está provado que aprender em comunidade é bastante mais eficaz) como utilizar a nossa metodologia de ensino que sabemos resultar com as organizações sociais. Pôr a mão na massa, trabalhar as competências para que o trabalho fique mais fácil, eficiente e eficaz.

Que tipo de organizações são elegíveis ao programa e como funciona?
O programa MILES está aberto a todas as organizações do terceiro setor que procuram melhorar a sua gestão. Basta que tenham vontade de melhorar, ambição para crescer e coragem para arriscar. As organizações da comunidade MILES são organizações com equipas cheias de força transformadora, que gostam dos desafios e que percebem que a capacitação lhes vai facilitar a vida. O conhecimento prático que passamos permite que as equipas trabalhem melhor e que ganhem espaço e tempo para respirar.

O que é determinante para o sucesso de uma organização social? Os resultados financeiros?
Acredito que o sucesso de uma organização social não se mede pelos seus resultados financeiros, mas sim pelo número de pessoas que apoia. Pela qualidade do seu serviço, pela capacidade de resposta aos novos desafios sociais que surgem e também por equipas motivadas e envolvidas no seu propósito. As organizações sociais têm como propósito apoiar a população que se encontra numa situação de vulnerabilidade, é para estas pessoas que trabalham na supressão das suas necessidades (muitas vezes necessidades básicas) e o seu objetivo é cumprido sempre que estas necessidades são satisfeitas. Sempre que a qualidade de vida dos seus beneficiários melhora. Não pode haver sucesso numa organização social se este servir não for conseguido. Se é possível fazê-lo sem resultados financeiros positivos? É, mas de forma muito mais difícil e muito menos recomendável.

“O lucro continua a ser um tema tabu para as IPSS, infelizmente (…)”.

O tema do lucro continua ainda a ser um tabu nas IPSS?
Sim. O lucro continua a ser um tema tabu para as IPSS, infelizmente, embora em menor escala do que quando cheguei ao setor há 15 anos. A verdade é que para uma organização social poder funcionar, e cumprir a sua missão, precisa de ter receitas para o fazer. Precisa de pagar salários, pagar a fornecedores, investir e isso não é possível sem resultados financeiros positivos. Nesse aspeto, uma organização social é como qualquer outra entidade, sem margem financeira não há crescimento e melhoria. Não se recompensam os trabalhadores e não se melhora o serviço prestado. Trabalhamos esta consciencialização no MILES, o lucro deve ser encarado como um mecanismo para poder ajudar e impactar cada vez mais a sociedade.

Qual é a vossa ligação à McKinsey?
A ligação à McKinsey existe desde a génese da Fundação, uma vez que, tal como referido anteriormente, foi constituída em homenagem a Manuel Violante, o sócio que fundou o escritório da McKinsey em Lisboa. Com a sua morte, um grupo de sócios, amigos e familiares do Manuel decidiram criar uma Fundação que promovesse o mesmo em que ele acreditava: o impacto. No caso da Fundação, o impacto social.

Posteriormente, a ligação à McKinsey acabou por se ir mantendo dada a presença de alumni McKinsey no nosso Conselho de Administração, bem como com a participação de alguns consultores da McKinsey nos nossos programas de capacitação, como voluntários ou formadores.

Qual tem sido a vossa aproximação ao sistema empreendedor e às start-ups?
Do empreendedorismo trazemos os princípios e os valores. Acreditamos que a ligação destes dois universos, setor social mais tradicional e o sistema empreendedor, deve ser reforçada e catalisada. Existem características distintivas de cada um que muito beneficiariam o outro. Incentivamos essa relação trazendo para os nossos programas de capacitação formadores que trabalham com o ecossistema empreendedor, como a Casa do Impacto, precisamente para que os princípios, dinâmicas e abordagens do empreendedorismo e do universo das start-ups passem para o setor social.

“Empreendedor é alguém que empreende, que decide atuar, mudar, melhorar alguma coisa”.

Considera que faltam projetos de empreendedorismo social em Portugal que tenham realmente impacto?
Não, não considero que exista falta de projetos de empreendedorismo social com impacto. Considero que existe falta de mentalidade de empreendedor em Portugal, seja na economia social seja fora. Empreendedor é alguém que empreende, que decide atuar, mudar, melhorar alguma coisa. Alguém com a capacidade de olhar em volta identificar um problema e propor-se a encontrar uma solução. O que falta em Portugal é o desenvolvimento desta mentalidade, quantos mais projetos com este ADN forem desenvolvidos maior o impacto social que se conseguirá criar.

A maior parte dos projetos de empreendedorismo social criados que passam para a fase da consolidação e crescimento têm impacto. Lembro-me da Mentes Empreeendedoras, da Cozinha com Alma ou do Transformers que são organizações que nasceram da preocupação de resolver um problema social específico. Os seus líderes empreendedores meteram mãos à obra e o impacto está à vista.

“Os decisores políticos precisam de olhar para este setor com a importância social e económica que efetivamente tem, medindo pelo impacto do que fazem diariamente”.

Como vê o futuro das organizações sociais em Portugal?
Pergunta difícil e não fazendo futurologia arrisco-me a dizer que não será um caminho fácil para um futuro que deverá ficar longe de cor-de-rosa. As organizações sociais são entidades que lutam diariamente pela sua sustentabilidade financeira e por prestar um serviço de cada vez maior qualidade aos seus beneficiários. Não têm uma vida fácil num país que vive em crise económica e com elevadíssimas fragilidades sociais. Os desafios sociais são cada vez mais complexos e abrangentes e a estrutura destas organizações não se robustece para lhes dar resposta.

Olhando para o que podem ser caminhos construtivos, diria que é crítico capacitar e formar as pessoas que trabalham nestas organizações. Reforçar as lideranças, definir uma ambição conjunta para o setor, mas acima de tudo é crucial que exista uma vontade política de mudar. Os decisores políticos precisam de olhar para este setor com a importância social e económica que efetivamente tem, medindo pelo impacto do que fazem diariamente.

Existem em Portugal mais de um milhão de pessoas a viver em risco de pobreza, que subsistem mensalmente com pouco mais de 500 euros. Quem é que está na linha da frente a apoiar estas pessoas? Será que são os subsídios estatais que efetivamente ajudam? Longe estão de resolver qualquer problema.

Existiam em Portugal, em 2021, mais de 9 mil pessoas em situação de sem abrigo. Quem garante que as necessidades desta população são satisfeitas? Pois é, organizações sociais compostas por voluntários e muitas vezes sem qualquer apoio do estado. Cerca de 17% da população portuguesa tem algum tipo de deficiência e a taxa de cobertura dos equipamentos sociais para esta população é de apenas 4,2% em 2021 porque falta financiamento para aumentar o número de respostas nesta área.

É urgente que se olhe de frente para a situação social do país e que se perceba que precisa de ser construído um futuro melhor para estas organizações pois são elas que constroem um futuro melhor para muitos de nós.

O que mais a marcou no seu percurso profissional?
Perceber que podemos fazer a diferença com muito pouco. Que não são necessárias fórmulas complexas ou recursos substanciais para chegarmos ao final do dia tendo feito a diferença na vida das pessoas com quem trabalhamos. Sejam colegas de equipa ou clientes, escolher contribuir para o seu desenvolvimento e crescimento é muito mais fácil do que à partida pode parecer e muito impactante. Numa perspetiva mais individualista, o privilégio de continuar a aprender todos os dias.

O que gostaria de fazer à frente da Fundação e ainda não teve oportunidade?
Influenciar decisões políticas sobre o setor social. A mudança que operamos no setor, através da capacitação, é limitada pelo regime jurídico existente. Interessa-nos contribuir para a identificação de melhorias no quadro legislativo atual e reforçar as condições estruturais em que as organizações operam.

Que outros projetos futuros podemos esperar da Fundação?
A Fundação tem claro o seu foco. Desenvolver competências em organizações sociais através da capacitação das suas equipas como meio de contribuição para o desenvolvimento do setor. É isso que vai continuar a fazer procurando métodos que aumentem a sua eficácia e impacto.

Que conselhos daria aos nossos jovens que querem lançar uma empresa na área social?
Que o façam com coragem. Precisamos de jovens corajosos que entendam o valor de trabalhar na economia social. O retorno é gigante. É a certeza de chegar a casa sabendo que se contribui para um bem maior. É ter a possibilidade de impactar vidas de pessoas e isso é tão diferente de contribuir para aumentar os dividendos dos acionistas.

Devem fazê-lo procurando um espaço ainda não ocupado, aprendendo com quem já tem experiência e arriscando em soluções inovadoras. E claro, falem connosco. Na Fundação estamos sempre disponíveis a bater bolas com quem quer contribuir para o setor.

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