Opinião
Das competências “moles” – Parte II: Deixemos de lhes chamar competências
Na primeira parte desta reflexão sugeri que as competências deixassem de ser qualificadas como “moles” (soft) ou “duras” (hard). Agora, começando pelo fim, deixo outra sugestão: deixemos de chamar competências às soft skills.
Há mais de uma década que conduzo um exercício sobre este assunto. Já o realizei com grupos grandes e pequenos, em contextos académicos e corporativos, em diferentes países e culturas e os resultados são sempre os mesmos. Não estou nem a generalizar nem a exagerar: sempre. Não se iluda, não é ciência, é empirismo, embora não afaste a ideia de estudar este fenómeno. Sempre realizei este exercício com grupos e, mesmo sem nenhuma experiência prévia, estou confiante o suficiente para sugerir que experimente sem companhia. Siga, por favor, os seguintes passos:
- Pense numa pessoa que seja para si uma referência[2]. Pode ser um familiar, um professor, um colega, um chefe, um amigo ou até uma figura pública que não conheça pessoalmente.
- Agora que já encontrou esta sua pessoa de referência, pense em algumas interacções com essa pessoa (ou com a sua obra) que tenham ficado retidas na sua memória.
- De seguida, liste entre cinco e dez características distintivas dessa pessoa; elenque os traços que a tornam numa pessoa de referência para si.
Resta um quarto e último passo, mas antes de explicar o que terá de fazer é importante refletir sobre o que aproxima e afasta “competências e “qualidades”. Afastemos, antes de mais, um preconceito comum em relação a estas duas dimensões que preconiza que as primeiras são adquiridas e as segundas são inatas. Por outras palavras, a competência é algo que se aprende enquanto que as qualidades nascem com as pessoas. É uma explicação simples e apelativa mas incorreta.

Ambas as dimensões estão ligadas, fazem parte de um contínuo e são passíveis de ser aprendidas. O desenvolvimento de umas é parte indissociável da evolução das outras. Numa definição tentativa e rápida, a ”competência” tem que ver com o saber-fazer, tem dimensão operacional, relaciona-se com o conhecimento e manifesta-se através da produtividade e da eficácia; as “qualidades” têm que ver com o saber-ser, têm dimensão ontológica, relacionam-se com a sabedoria e manifestam-se através da ética e da estética.
Está na altura de voltar à sua lista de características para o último passo do exercício. Agora terá que categorizar cada uma das características, etiquetando-as como “competência” ou “qualidade”. É provável que nalguns casos seja difícil decidir por apenas uma das categorias e que considere que as duas encaixam bem. Porém, sugiro que se esforce por escolher apenas uma das etiquetas, sempre que conseguir.
Aposto que acabou com mais qualidades do que com competências. Se ganhei a aposta significa que o resultado do seu exercício está em linha com o desfecho que surge sempre que conduzo este exercício. Uma conclusão: quando pensamos em pessoas que são para nós referência tendemos, de forma clara, a valorizar mais as suas qualidades do que as suas competências. Portanto, mais do que aquilo que sabem fazer, valorizamos a sua forma de ser. Seguindo por esta hipótese será fácil retomar a ideia “pegajosa” de que a maneira de ser das pessoas pende para a constância e para ser considerada inata, pelo menos uma parte significativa. É também fácil associarmos as qualidades ao carácter ou à personalidade e o caminho até a uma perspetiva psicológica (de que me quero afastar neste texto) destes conceitos aparece sem dificuldade.
Se a tal hipótese faz sentido e, mais do que isso, se tiver fundo de verdade, surgem algumas perguntas importantes: se valorizamos mais qualidades do que competências por que razão continuamos a adotar sistemas educativo-pedagógicos e de avaliação que visam o desenvolvimento e a aferição de competências? Por que razões continuamos a gastar tanto em programas de desenvolvimento de competências liderança[3], quando aquilo que mais valorizamos nos nossos chefes são as suas qualidades?
É mais fácil e menos arriscado medir e avaliar competências do que qualidades (ou virtudes). Por esta razão, procurámos uma solução que demonstrei não funcionar, espero, quando as dividimos em “duras” e “moles”. A avaliação de qualidades é mais arriscada. Implica considerar um maior grau de subjetividade, o que não é necessariamente mau, desde que aprendamos a navegar por esses meandros[4], e é incontornável a inclusão de uma dimensão moral.
A ciência e o mundo dos negócios têm uma dificuldade crónica em assumir posições morais. Talvez porque procuram uma isenção e uma neutralidade que são virtualmente inatingíveis; talvez porque no mundo atual essas posições significam um refúgio para os extremismo e fundamentalismo crescentes. A subjetividade é uma riqueza que valorizamos nas pessoas que nos ajudam a ser melhores. O que nos impede de a abraçar?
Será um medo de nos cristalizarmos numa certa superioridade moral, com todos os riscos que aí ficar traz? Avaliar qualidades implica julgar as pessoas que as possuem. Tal exercício exige compará-las com determinados padrões ou bitolas, questionáveis e discutíveis, é certo. Para se evitar essa eventual superioridade há que educar a nossa capacidade de construir opiniões, sendo parte indissociável desse processo educativo a capacidade de as fundamentar e mais do que isso de as mudar através da sua fundamentação. Querer influenciar sem ter espaço para se ser influenciado é manipulação ou imposição. Ao contemplarmos, de forma autêntica e consciente, flexibilidade e abertura necessários e suficientes para sermos mudados pelo processo e pelos outros correremos menos riscos em nos colocarmos num patamar superior e aproximar-nos-emos mais de uma posição de igualdade e equidade.
Será cautela para não se atravessarem determinadas fronteiras? No fim, somos responsáveis por definir os limites e por os ultrapassar. Com os acontecimentos recentes no mundo, onde vários limites são ultrapassados todos os dias, já não chega termos sistemas e paradigmas que nos conduzam a uma pretensa objetividade. Objetivamente, não estamos a ter bons resultados ao seguirmos esse caminho. O mundo corporativo tem mostrado sinais animadores, com várias empresas a tomarem posições políticas e morais em relação a temas diversos, desde os vários tipos de discriminação que existem até à recente guerra provocada pelo governo russo.
Como escrevem o Tim Leberecht e a Monika Jiang[5], é muito importante que as empresas tomem posições que vão para lá das suas declarações de propósito e de missão e que defendam assuntos que são importantes para todos nós e para o nosso planeta. Contudo, não basta apontar o que é feio nos outros. Deve-se olhar e cuidar do que está dentro. Dessa forma a beleza surge não apenas nas suas dimensões estética e reputacional mas é intrínseca.
E a mesma lógica deve acontecer noutros contextos, para além do corporativo. As escolas e universidades devem voltar a assumir uma das suas funções primordiais: criar boas pessoas. Não apenas melhores profissionais. As famílias têm de voltar a ocupar um espaço fundamental de contributo para o desenvolvimento humano, global, mas para isso o mundo do trabalho não pode esgotar as mães e os pais, nem o educativo as filhas e os filhos. A sociedade pode encontrar novas formas de criar comunidades que suportem todos os movimentos anteriores e os governos as estruturas que suportem tudo isto. É um esforço coletivo, conjunto, que deve começar pala dimensão individual. Cada um de nós será responsável por estas mudanças, mas também precisamos de as ver nos outros.
Está visto que o que mais valorizamos é o que “vem de dentro”, o que está incorporado; são as qualidades humanas. Que as qualidades que valorizamos nos outros nos inspirem a encontrá-las ou a criá-las em nós. É um exercício prático, real e concreto, mas que vai para além disso. Saber-fazer é muito importante, mas saber-fazer enquanto se sabe-ser é o que todos precisamos agora.
Por tudo isto, deixemos de perseguir o desenvolvimento e a valorização de competências; deixemos de lhes atribuir dureza ou moleza. Abracemos o muito mais complexo, mas também rico caminho de aprendermos a ser melhores pessoas, outra vez.
[1] Das competências “moles” – Parte I: Deixemos de lhes chamar “moles”
[2] Por “pessoa de referência” entenda: alguém que tenha contribuído para o seu crescimento, para se tornar numa melhor pessoa; alguém cujas características distintivas lhe sirvam como exemplo.
[3] Voltemos a querer e ser (bons) chefes
[4] A literalidade mata o entendimento
[5] Beautiful Business in a Time of War








