Entrevista/ “Consegui criar uma solução inovadora fora do core business da Nestlé”

Hugo Silva, Iberian Sustainability Specialist da Nestlé

Tem 30 anos, é engenheiro civil de formação, mas é na sustentabilidade que dá cartas na Nestlé. Hugo Silva é responsável pelo Bio Building, uma iniciativa que se materializou na instalação, na sede da Nestlé Portugal, de um biorreator de microalgas para a melhoria da qualidade do ar interior e que se prepara para ser replicada noutros edifícios da multinacional. O Link To Leaders falou com o jovem que trata a sustentabilidade por “tu” e que esta semana deu início à plantação de mais 2 mil árvores, uma por cada colaborador.

O edifício sede da Nestlé Portugal, em Linda-a-Velha, foi o primeiro do grupo a instalar um biorreator de microalgas, para melhoria da qualidade do ar interior através da fixação de carbono e produção de oxigénio.

O Nestlé Bio Building resultou da candidatura de Hugo Silva ao InGenius – Nestlé’s Employee Innovation Accelerator e tem a capacidade de, anualmente, absorver cerca de 7,3 kg de dióxido de carbono, e de produzir cerca de 5,5 kg de oxigénio, possibilitando ainda a produção de 30 kg de biomassa.

Em entrevista ao Link To Leaders, Hugo Silva afirma que “todas as semanas temos uma equipa de manutenção que faz a extração da biomassa e conseguimos dar-lhe várias aplicações, desde estudar a aplicação em biopackaging, fertilizante e a misturar na alimentação pecuária para reduzir as emissões de metano no caso das vacas”.

E adianta que, no âmbito deste projeto, estão em curso duas dissertações de mestrado na NOVA School of Science and Technology | FCT NOVA, que serão apresentadas à equipa de sustentabilidade da Nestlé ainda este mês. Um dos alunos está a acompanhar de perto o funcionamento do biorreator, estudando a forma como os índices de sustentabilidade do edifício estão a ser reforçados pela presença das microalgas. O outro está a investigar a possibilidade de produção de materiais de embalagem a partir da biomassa produzida pelo biorreator.

A partir daqui, a solução está pronta para ser replicada noutros edifícios da companhia e até nas suas fábricas, garante Hugo Silva.

Como surgiu a ideia de instalar biorreatores com microcultura de algas na sede da Nestlé Portugal?
Este projeto surgiu porque a Nestlé tem um programa interno muito interessante, o InGenius – Nestlé’s Employee Innovation Accelerator, que pretende fomentar a inovação através das ideias dos colaboradores. Aquilo a que costumo chamar de Shark Tank na Nestlé e em que basicamente é lançado um tema. Em 2020 o tema foi as alterações climáticas com uma pergunta: como é que podemos reduzir o impacto da Nestlé e combater as alterações climáticas?

Tendo a sustentabilidade como uma paixão, comecei a pesquisar ativamente como me poderia candidatar. Na Internet descobri que as algas que existem no oceano são responsáveis por absorver mais de 50% do dióxido de carbono que existe na atmosfera. Por isso, pensei: `é isto mesmo´. Vou ter de encontrar uma solução para trazer o potencial das algas para a Nestlé.

Entretanto, descobri várias empresas e start-ups que efetivamente já trabalhavam com algas, microalgas. Na altura entrei em contacto com uma start-up em Inglaterra, a ecoLogicStudio, que desenvolve este género de tecnologia – a PhotoSynthetica – adaptada consoante a solução que queremos implementar nos edifícios. A ideia inicial não era implementar a solução num edifício de escritórios, mas sim numa das nossas fábricas, injetando diretamente o dióxido de carbono da fábrica dentro destes biorreatores para depois purificar o ar. Mas, sendo um projeto piloto e não tendo completamente noção da fiabilidade, decidimos fazer um primeiro teste na sede.

“Este biorreator tem uma espécie de microalga que se chama spirulina e o que está a acontecer é que estamos a injetar constantemente pela parte inferior dos biorreatores – que são 12 – dióxido de carbono, ou seja, ar poluído do edifício (…)”.

O que faz um biorreator de microalgas?
Este biorreator tem uma espécie de microalga que se chama spirulina e o que está a acontecer é que estamos a injetar constantemente pela parte inferior dos biorreatores – que são 12 – dióxido de carbono, ou seja, ar poluído do edifício que através do poder de fotossíntese das microalgas é transformado em oxigénio e ajuda a condensar todas as impurezas dentro da água.

Funciona basicamente como uma árvore, mas com um potencial muito maior de fotossíntese. É 5 a 10 vezes superior o potencial de fotossíntese que uma microalga tem. Portanto, conseguimos purificar o ar do edifício através da fotossíntese das algas. Para além disso, estamos constantemente a produzir biomassa. Todas as semanas temos uma equipa de manutenção que faz a extração da biomassa e conseguimos dar-lhe várias aplicações, desde estudar a aplicação em biopackaging, fertilizante e a misturar na alimentação pecuária para reduzir as emissões de metano no caso das vacas.

Quais os principais benefícios do Bio Building?
O objetivo principal quando trouxe este projeto para a Nestlé foi contribuir para o nosso compromisso da neutralidade carbónica. A Nestlé tem como compromisso reduzir para metade as suas emissões até 2030 e atingir as zero emissões líquidas de gases com efeito de estufa até 2050. Estamos a ter vários projetos no âmbito da agricultura regenerativa, redução de emissões nas nossas fábricas e, através deste projeto de inovação, queria também ajudar a contribuir para reduzir as emissões.

Por isso, quando começámos a elaborar o projeto, a implementá-lo e a construir um protótipo com a nossa equipa de facilities percebemos que poderíamos ter uma valência muito maior que não se cingia à redução de emissões. Por exemplo, a questão de utilizar a microalga para testar a produção de biopackaging, ou seja, utilizar material biodegradável nas nossas embalagens, e a questão também da sua aplicabilidade como fertilizante.

Temos o biorreator numa fachada de vidro e reparámos que em dias de sol temos uma grande incidência solar que aquece aquela área do edifício, o que implica utilizar mais o ar condicionado. Já conseguimos testar que estamos a baixar a temperatura do edifício, criando uma cortina natural com este biorreator e, por consequência, conseguimos ter uma eficiência energética maior.

“O primeiro desafio foi fazer com que os nossos stakeholders internos acreditassem no projeto. O nosso core é a alimentação. Por isso, tive de ser convincente no pitch para que acreditassem que realmente este projeto tem potencial e um valor acrescentado”.

Quais foram os maiores desafios deste projeto?
O primeiro desafio foi fazer com que os nossos stakeholders internos acreditassem no projeto. O nosso core business é a alimentação. Por isso, tive de ser convincente no pitch para que acreditassem que realmente este projeto tem potencial e um valor acrescentado. O segundo desafio foi provar que realmente as algas tinham um benefício para a Nestlé. E há um indicador que o comprova que é a produção de biomassa. Sabemos que, ao produzir 30 kg de biomassa, estamos a absorver 7,3 k de CO2 e a produzir 5 kg de oxigénio por ano. Isto parece muito pouco, mas para termos uma noção de ordem de grandeza significa termos quatro árvores de grande porte a cobrir o nosso lobby, o que pode demorar 20 a 30 anos. Com este projeto, conseguimos resultados imediatos.

Como tem sido a receção ao projeto?
A Nestlé estabeleceu compromissos muitos ambiciosos para reduzir as emissões de CO2 e qualquer projeto que a ajude nesse sentido é bem-vindo. Em termos de pitch tive de apresentar uma solução que fosse atrativa em termos de resultados. Tive de provar que não só conseguiríamos reduzir as emissões como poderíamos também acrescentar um benefício à nossa cadeia de valor através da aplicação da biomassa. Desenvolvemos uma parceria com a FCT –  Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova, para desenvolver duas teses de Mestrado. Um dos alunos está a tentar melhorar a eficiência de manutenção do biorreator e outro aluno, cuja tese de Mestrado está a ter resultados bastante satisfatórios, está a desenvolver uma película de material biodegrável.

Como encara a possibilidade deste projeto ser replicado noutros países?
A possibilidade é muito elevada. Quando implementámos o projeto na nossa sede recebemos imensos contatos de várias Nestlés à volta da Europa e do mundo que gostavam de replicar esta solução. Porque, para além de ser atrativa em termos de sustentabilidade, é um chavão para os nossos colaboradores. Como temos muitos compromissos com a sustentabilidade, a mudança tem de passar por nós.

O que ficou acordado é que passado este ano e meio de piloto, juntamente com o aluno que está a terminar a tese iremos elaborar um manual com as melhores práticas de manutenção, os KPIs principais que temos de seguir e o workload em termos de manutenção (as algas multiplicam de uma semana para a outra de forma espetacular e temos de estar atentos) para depois replicar o projeto noutras sedes e também fábricas.

Enquanto um jovem empreendedor “in house”, como espera que o projeto possa incentivar outros colaboradores da Nestlé?
Ao mostrarmos que estamos a fazer coisas e a aplicar soluções inovadoras, conseguimos colocar o bichinho nos nossos colaboradores para todos podermos fazer a diferença. Posso falar do meu caso em particular. Eu não sou formado em sustentabilidade. Sou Engenheiro Civil de formação e entrei na Nestlé há cerca de três anos numa área distinta da sustentabilidade. Comecei na área de Supply Chain quando a Nestlé adquiriu os direitos de comercialização da marca Starbucks. A minha função foi criada porque a nossa fábrica do Porto foi a primeira fábrica da Nestlé do mundo a produzir café para a marca Starbucks.

Trabalhei antes na tabaqueira Philip Morris e fui contratado pela Nestlé para lançar o projeto na fábrica do Porto como gestor de projeto para a marca Starbucks. Depois no segundo ano, e como estive muito ligado à área dos cafés, convidaram-me para brand manager na área Nestlé Professional para as marcas de café. A sustentabilidade sempre esteve muito presente, mas não era o meu core. Este projeto foi a minha alavanca para passar para esta minha nova função. Agora sou Iberian Sustainability Specialist da Nestlé e trabalho a 100% na sustentabilidade.

Eu sou a prova de que a empresa está completamente aberta para dar oportunidade aos colaboradores que se interessam pelo tema.

“Mas se olharmos para o mercado ibérico e para outros países europeus tenho a dizer que estamos muito mais avançados em termos de inovação e de sustentabilidade”.

Quais são as grandes diferenças que encontra no mercado português e no espanhol a nível de sustentabilidade?
Felizmente, na Nestlé estamos muito alinhados. Trabalhamos de forma ibérica, apesar de sermos mercados distintos. Se olharmos para o mercado ibérico e para outros países europeus tenho a dizer que estamos muito mais avançados em termos de inovação e de sustentabilidade. Até porque muitos dos projetos que implementamos a nível ibérico funcionam como case study para a restante Europa. E isso é, para nós, uma motivação!

Este projeto foi implementando há dois anos. Se pudesse, o que teria feito de diferente?
Não teria trabalhado com a empresa que escolhemos por estar sediada no Reino Unido. Teria envolvido neste projeto uma start-up em Portugal. Se implementarmos esta tecnologia numa fábrica, já não equacionaremos trabalhar com esta empresa, não porque não tivéssemos gostado de trabalhar, mas pela distância. Implementámos o projeto em plena pandemia. Veio a Portugal apenas uma pessoa da start-up britânica implementar o projeto e foi um desafio gigante tentar perceber como se fazia a manutenção, quais eram as melhores condições para manter as algas. Para mim foi muito stressante porque não tinha conhecimento desta solução. Teria ajudado imenso ter contado com uma empresa em Portugal.

A Nestlé continua a apostar na investigação em sustentabilidade. É disso exemplo a parceria entre a FCT NOVA e a Nestlé. Que outras iniciativas estão a decorrer desta parceria no âmbito do Bio Building?
O nosso grande foco é completar as duas teses que estão a ser desenvolvidas para perceber os resultados e trazer um valor acrescentado a este biorreator não só a nível da eficiência energética do edifício, mas também integrar na nossa cadeia de valor os benefícios da spirulina, ao investir, por exemplo, em soluções de packaging. Temos também compromissos para as nossas embalagens. Queremos ter embalagens 95% recicláveis ou reutilizáveis até 2025. Por isso, queremos trabalhar para atingir os outros 5%.

“Em Espanha também querem replicar a tecnologia assim que a tese de mestrado estiver concluída. Espanha será o primeiro país a implementar a solução, a seguir a Portugal”.

Qual é o papel de Portugal nas metas de sustentabilidade da Nestlé?
Estamos a contribuir imenso em todas as metas na área da agricultura regenerativa. Na área de packaging a nível ibérico já atingimos os compromisso dos 95%. Em termos de inovação, estamos a inovar com o Bio Building em Portugal. Em Espanha também querem replicar a tecnologia assim que a tese de mestrado estiver concluída. Espanha será o primeiro país a implementar a solução, a seguir a Portugal. França, Suíça, os países da América Latina, Brasil, Estados Unidos … têm demostrado também interesse. Até já lhes dei um conselho: trabalhem com empresas locais.

Que projetos futuros podemos esperar da Nestlé ao nível da sustentabilidade? E do Bio Building?
A nível do Bio Building é ter o reporting final de otimização de manutenção. A tese vai estar pronta no final deste mês e depois será feita a apresentação à equipa de sustentabilidade da Nestlé. Eu sou um dos mentores. A partir daqui teremos de criar um documento oficial de procedimento de manutenção que vai ajudar as outras Nestlés a perceberem se faz sentido replicar a solução ou não.

Temos outros projetos em curso. Por exemplo, o projeto das cápsulas do qual sou responsável na Nestlé e que devido ao meu empenho tive a sorte de ser nomeado pela AICC – Associação Industrial e Comercial do Café. A Nestlé Portugal é membro fundador do grupo de trabalho que desenvolveu o novo sistema dedicado à recolha e reciclagem de cápsulas de café usadas. Um projeto desenvolvido no âmbito da AICC e que envolveu seis empresas representantes de 12 marcas de café, entre estas as marcas que a Nestlé desenvolve e comercializa em Portugal.

A fase piloto deste projeto teve início no final do ano passado, a partir de uma parceria com a Câmara Municipal de Cascais e através da disponibilização de mais um fluxo na rede de Ecocentros deste Município, que passam a recolher para reciclar e valorizar as cápsulas de café usadas. Os consumidores podem assim depositar as suas cápsulas usadas, independentemente das marcas ou dos materiais de que sejam feitas (plástico ou alumínio) para que sejam totalmente recicladas

Uma vez entregues ao reciclador, as cápsulas são tratadas permitindo separar os seus distintos materiais, com vista a uma segunda vida. As borras de café convertem-se em composto orgânico para uso agrícola e os outros materiais – alumínio e plástico – serão canalizados para uma utilização circular. O alumínio, infinitamente reciclável, pode ser transformado em novos objetos do quotidiano (esferográficas, lapiseiras, outros) e o plástico transformado num material a utilizar posteriormente no fabrico de novos objetos, como peças de mobiliário urbano.

Este projeto pretende inspirar todos os portugueses a contribuírem para uma maior e melhor reciclagem de cápsulas de café. Por isso, como gestor de projeto o meu grande objetivo é estabelecer contatos com outros municípios, com vista a implementar sistemas de recolha. Começámos por Cascais e já temos vários municípios na calha na área da Grande Lisboa e na região Norte.

Outro dos projetos é a plantação de árvores, um compromisso que a Nestlé estabeleceu em 2020 e que consiste em plantar uma árvore porque cada colaborador da Nestlé. Esta semana vamos plantar mais 2 mil árvores para atingir este compromisso.

Depois temos outros projetos que pretendem contribuir para a redução de carbono, desde a origem dos ingredientes até o produto chegar a casa do consumidor. A minha função, e de todas as equipas, é de estudar toda a cadeia de valor e perceber onde podemos dar o maior contributo em termos de emissões e ativar projetos para reduzir essas mesmas emissões.

Respostas rápidas:
O maior risco: Consegui criar uma solução inovadora fora do core business da Nestlé que é a alimentação.
O maior erro: Não ter apostado numa empresa mais próxima de Portugal para ajudar com o piloto do Bio Building. O transporte dos equipamentos de Inglaterra para Portugal foi gigante. Estávamos em período de pandemia e foi complexo gerir todo o processo.
A maior lição: Todos podemos ser empreendedores. E quando metemos foco e acreditamos no que queremos, por muitos não que possamos ouvir – e eu ouvi muitos -, verificamos que ser ambicioso compensa.
A maior conquista: Conseguir estar na posição que estou hoje. Nunca trabalhei em sustentabilidade.

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