Entrevista/ “Ou a Europa muda ou seremos ultrapassados na transição energética por outros países”

“A Europa tem estado a trabalhar para um mercado europeu de energia, em particular de energia elétrica, que seja mais previsível em termos de preços e que possibilite a concretização de todos os projetos renováveis previstos nos diferentes planos nacionais. O problema é que tudo é feito a um ritmo muito lento”, afirma João Nuno Serra, presidente da ACEMEL.
Fundada em julho de 2018, a Associação dos Comercializadores de Energia do Mercado Liberalizado (ACEMEL) tem já 20 associados que representam a grande maioria dos comercializadores ativos em Portugal.
De forma a contribuir para a dinamização e consolidação do papel das comercializadoras de energia no mercado liberalizado, a associação tem vindo a divulgar as práticas e processos desenvolvidos pelos seus associados para os clientes, de que são exemplo os projetos de compra de energia excedente de instalações de autoconsumo, a criação de cooperativas de energias renováveis, a abordagem low-cost à comercialização e os gases renováveis, nomeadamente o biometano.
No passado mês de fevereiro, e em conjunto com a ERSE – Entidade Reguladora do Sistema Elétrico deu mais um passo em frente e acordou a criação da figura do Focal Point, com o objetivo de melhorar a gestão dos diferentes processos entre os associados e o regulador. Mas considera que ainda há muito a fazer.
Em entrevista ao Link to Leaders, João Nuno Serra, presidente da ACEMEL, refere que a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) tem apresentado diversas medidas para criar um maior dinamismo no mercado liberalizado. “No entanto, a realidade é que, por um lado, nem sempre são eficazmente aplicadas e, por outro, ainda há muitas áreas em que ainda se pode melhorar”, afirma, apontando que “uma das medidas que seria muito benéfica para o mercado liberalizado seria a extinção do mercado regulado para o mercado elétrico e gás natural”.
O que é a ACEMEL e qual a sua missão?
A ACEMEL é a associação dos comercializadores de energia no mercado livre, designadamente o elétrico e gás natural, tendo como objetivos principais a defesa de todos os associados. A associação trabalha de forma próxima com todos os interlocutores do setor para procurar sinergias e trabalhar na defesa dos direitos e interesses dos associados a nível nacional e europeu. A nível nacional tem como prioridade o desenvolvimento de ações que promovam a participação dos associados junto das entidades integrantes do sistema energético nacional e, a nível internacional, participando para tal em diversos fóruns internacionais e também através de protocolos com associações similares.
Por último, é objetivo da associação a dinamização e consolidação do papel das comercializadoras de energia no mercado liberalizado em Portugal através do desenvolvimento de estudos, análises e tendências de mercado do setor.
Em linhas gerais quais os objetivos que se propõe alcançar enquanto presidente da ACEMEL?
A ACEMEL foi criada em 2018, sendo reconhecida enquanto interlocutor de referência no setor energético, e tendo como foco principal o consumidor/cliente final, através da promoção de serviços prestados com total transparência e elevados níveis de qualidade, dado o carácter essencial da energia. O nosso objetivo para este mandato é reforçar o papel da ACEMEL enquanto interveniente de referência no mercado energético, através da discussão e desenvolvimento de ideias para o setor com medidas que contribuam para a atratividade e concorrência deste mercado para investidores, mas que também o tornem mais visível para os próprios cidadãos que cada vez têm um papel mais central nestes processos.
“Em primeiro lugar, gostava que conseguíssemos contribuir para uma maior literacia sobre o setor e a sua relevância (…)”.
Quais os principais marcos que gostaria de assinalar nessa caminhada?
Em primeiro lugar, gostava que conseguíssemos contribuir para uma maior literacia sobre o setor e a sua relevância, através da participação nos diferentes fóruns e de uma postura mais interventiva e basilar junto dos principais intervenientes, nomeadamente a entidade reguladora, através da criação do Focal Point. Também é um objetivo desta direção o aumento da articulação e cooperação com outras associações nacionais e internacionais integrantes no setor energético, com as quais já colaboramos e criámos inclusivamente protocolos de cooperação.
De que forma tem a ACEMEL representado os interesses de todos os interlocutores do setor?
Fazendo-se representar, cada vez mais, junto das entidades que intervêm neste setor como por exemplo através da criação do focal point, na ERSE. Diligenciar reuniões, por exemplo, com o operador de distribuição com o objetivo de expor problemas que são comuns a todos os associados.
Uma outra dimensão prende-se com a participação nas consultas públicas que digam respeito ao setor, incentivando a contribuição de todos os associados para a criação de medidas que respondam às necessidades do mercado e às potenciais dificuldades enfrentadas pelos comercializadores. Desta forma permitindo às entidades reguladoras o desenvolvimento de medidas e políticas adequadas para este mercado.
“Pretendemos levar, através de uma cooperação com a nossa homóloga espanhola, alguns dos problemas que nos encontramos a atravessar ao regulador europeu (…)”.
Que ações tem a ACEMEL previstas até ao final do ano?
Pretendemos levar, através de uma cooperação com a nossa homóloga espanhola, alguns dos problemas que nos encontramos a atravessar ao regulador europeu, nomeadamente o financiamento da Tarifa Social. Participar, através de consultas públicas e do Focal Point da ERSE, no desenvolvimento de diretivas promovidas pela ERSE no decorrer deste ano que terão um impacto relevante na atividade dos comercializadores.
Participámos na conferência Latino-Americana, em Cali, na Colômbia, neste mês de maio. Um outro importante objetivo é a realização daquele que já é um dos mais relevantes eventos nacionais de discussão no setor, na sua terceira edição. A Conferência anual da ACEMEL é um espaço único de partilha e debate das mais recentes tendências do setor, tendo habitualmente um elevado nível de adesão e contributos por parte de todos os participantes.
Neste momento, contam com 20 associados. Qual a previsão de entrada de novos associados até ao final do ano?
A ACEMEL está sempre disponível para acolher todos os comercializadores que pretendam participar e trazer a sua experiência e os seus desafios para que juntos possamos ir mais longe na defesa do setor e na dinamização do mercado. Já temos um elevado nível de representatividade no mercado, pelo que o crescimento será cada vez mais residual. No entanto, e até ao final do ano, podemos ter a entrada de pelo menos mais dois associados.
Quem são os associados da ACEMEL? As grandes elétricas como a EDP, Endesa, Iberdrola e Galp continuam de fora?
Os associados da ACEMEL são pequenos e médios comercializadores, sendo que muitos operam não apenas no mercado português, mas também no espanhol. Exercem a sua atividade em diversas áreas deste setor, não só como comercializadores, mas também como agregadores, produtores e na mobilidade elétrica. Muitos já têm presença há muitos anos no mercado, tendo evoluído para o seu reforço, inclusivamente com fusões com outras empresas. Mas a associação tem uma base diversificada, incluindo associadas que integram grupos empresariais de grande dimensão.
Muitos dos problemas e dificuldade que enfrentamos podem, por agora, ser diferentes das grandes empresas de energia, mas estamos convictos que, com o passar do tempo e um mercado cada vez mais competitivo e inconstante, iremos todos, pequenos e grandes, convergir cada vez mais nos ideais.
“O Focal Point consiste na criação de um canal direto de comunicação entre a ACEMEL e a ERSE, em que foram nomeados dois intervenientes de ambas as partes (…)”.
Acordaram em conjunto com a ERSE – Entidade Reguladora do Sistema Elétrico, a figura do Focal Point. Em que é que consiste e o porquê desta figura?
O Focal Point consiste na criação de um canal direto de comunicação entre a ACEMEL e a ERSE, em que foram nomeados dois intervenientes de ambas as partes, de forma que exista uma resposta mais rápida e eficaz relativamente a assuntos solicitados pelos nossos associados.
Já demos início a essa “via verde” em referência à operacionalização de financiamento dos comercializadores com a Tarifa Social e prevemos desenvolver mais ações, para além das esporádicas, que venham a ser criadas no âmbito de consultas públicas com grande interesse para os comercializadores.
Quais os maiores desafios que se colocam hoje em dia aos associados da ACEMEL?
Encontrar-se preparado para as várias áreas de negócio que vão surgindo neste setor e ter um serviço que seja competitivo face a todos os outros comercializadores.
Como avalia o mercado de energia atualmente?
Desafiante, imprevisível por se encontrar em constante alteração. É um mercado que sofre influências de vários níveis: tecnológicos, ambientais, políticos, conflitos internacionais etc..
A ERSE tem apresentado medidas para apoiar o mercado liberalizado? O que ainda falta fazer?
A ERSE tem efetivamente apresentado diversas medidas para criar um maior dinamismo no mercado. No entanto, a realidade é que, por um lado, nem sempre são eficazmente aplicadas e, por outro, ainda há muitas áreas em que ainda se pode melhorar. Uma das medidas que seria muito benéfica para o mercado liberalizado seria a extinção do mercado regulado para o mercado elétrico e gás natural. Num mercado liberalizado não faz qualquer sentido a existência de uma empresa que representa a “tarifa do estado”. Isto é um pouco venezuelano.
Já há mais de 100 tarifários de energia que variam ao sabor do mercado. Este tipo de tarifários ajuda na entrada de novos comercializadores no mercado?
A entrada de novos comercializadores no mercado deve ser também resultado do crescimento desse mesmo mercado. Só na SU Eletricidade (Tarifa Regulada) há cerca de 900 mil clientes, o que representa 15% de quota de mercado. Neste momento, se somarmos todos os clientes dos associados da ACEMEL, não chegamos a esse valor, pelo que existe um amplo espaço de crescimento.
Por outro lado, o negócio de um comercializador não se esgota na venda de energia (eletricidade e gás), mas também em serviços conexos, que os consumidores procuram e constituem um potencial de venda e aumento do seu volume de negócio, muito interessante para os nossos associados.
“Se caminharmos para um mercado em que as tarifas aplicadas são cada vez mais indexadas, sobressairá cada vez mais a qualidade do serviço e atenção ao cliente (…)”.
Que oportunidades poderão surgir se o mercado vier a ficar muito aberto a receber ofertas indexadas?
Se caminharmos para um mercado em que as tarifas aplicadas, são cada vez mais indexadas, sobressairá cada vez mais, a qualidade do serviço e atenção ao cliente que cada empresa prestar.
Em Portugal, sempre demos a eletricidade e o gás como garantidos. Temos condições para continuarmos confiantes de que não haverá problemas de abastecimento?
Penso que, com a aposta que o nosso país tem feito nas energias renováveis, não teremos problemas de abastecimento. Contudo, será importante que o investimento e a aposta em flexibilidade avancem. Com o aumento das renováveis, não despacháveis, impõe-se dotar o sistema elétrico de flexibilidade e resiliência, para garantir que o desequilíbrio entre consumo e produção seja compensado a todo o momento, evitando assim flutuações abruptas de preços em cada hora do dia.
É importante abrir caminho para modelos energéticos ainda mais apostados nas renováveis e na eficácia. O nosso país tem ainda um longo caminho a percorrer para alcançar a otimização ou já caminhámos uma parte desta longa jornada?
Sim, tem. Não está garantido que as metas estabelecidas em matéria de renováveis, previstas no PNEC 2030, se concretizem. Há uma complexidade burocrática e administrativa em cada projeto que os impedem de ver a luz do dia nos prazos definidos no Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC). Em conjunto, estes fatores podem claramente comprometer os nossos objetivos coletivos, na transição energética.
Como perspectiva a energia no Mercado Liberalizado no futuro?
A Europa tem estado a trabalhar para um mercado europeu de energia, em particular de energia elétrica, que seja mais previsível em termos de preços e que possibilite a concretização de todos os projetos renováveis previstos nos diferentes planos nacionais. O problema é que tudo é feito a um ritmo muito lento. Qando se definiram os planos, 2030 parecia ainda estar longe, mas volvido este tempo percebe-se que 2030 é já amanhã. As diretivas europeias levam tempo a aprovar no parlamento europeu e a sua transposição pelos estados membros, leva ainda mais. Assim, tudo fica mais difícil. Ou a Europa muda ou seremos ultrapassados na transição energética por outros países.