Opinião
O veneno e o antídoto
Uma das grandes qualidades dos verdadeiros líderes é a coerência. Esta frase é verdadeira mas tem de ser bem entendida, porque outra das grandes qualidades dos verdadeiros líderes é flexibilidade, e isso pode chocar diretamente com a primeira.
Quantas vezes, perante uma inesperada curva do caminho, um responsável não se viu obrigado a desdizer aquilo que tinha afirmado antes com veemência? Só quem nunca dirigiu uma organização pode atirar a primeira pedra.
Apesar disso, é importante manter a centralidade da coerência, não nas regras práticas e posições pontuais, mas nos princípios fundamentais. A realidade muda muito e exige frequentes golpes de cintura; mas a orientação de fundo e o destino final têm de ser sempre mantidos, sob pena de se perder o rumo. A hegemonia da flexibilidade leva à improvisação oportunista, que destrói os verdadeiros líderes. Incoerência nas atitudes é sempre fatal para um dirigente.
Vivemos precisamente um momento em que, perante o pior veneno da liberdade, é crucial manter o antídoto da coerência nos valores essenciais perante ameaças crescentes. São muitas as falácias e embustes, todos nascidos da mesma infeção, que facilmente nos seduzem, acabando por destruir tudo aquilo em que nos fundamos.
A nível internacional, a administração Biden descarta os valores centrais da sociedade americana. Em reação ao delírio político da administração Trump, enveredou agora por descarado proteccionismo, repetindo, por vezes em pior, precisamente os erros do antecessor. Se perguntarmos aos líderes americanos aquilo em que acreditam, eles falam na “terra da liberdade”, ao mesmo tempo que a negam pelas suas próprias ações. Pelo seu lado, a Europa, perante tais disparates, parece tentada, também ela, a abandonar os seus pilares fundamentais, abraçando a espiral nacionalista. Sem sequer perceber que compromete o “projeto europeu”, em nome do qual garante atuar.
Estes exemplos globais são reproduzidos em versões mais domésticas, para consumo nas conversas de café ou conselhos de administração. Alguns clássicos são a ânsia de manutenção no país dos “centros de decisão económica”, ou a retórica da “fuga de cérebros”, lamentando a emigração de jovens talentos nacionais à procura de novas condições. Logo no ponto seguinte da ordem de trabalhos são capazes de louvar a importância do investimento estrangeiro ou a necessidade da mobilidade de quadros, sem reparar na contradição.
A justificação em todos estes casos está , naturalmente, cheia das melhores intenções. Por outro lado o veneno é também sempre igual: o medo, uma força muito mais destruidora que o interesse ou o poder. Aquilo que une Biden, von der Leyen e os nossos comentadores de sofá é o temor de perder aquilo que têm. Só isso os pode levar a comprometer as bases de tudo o que têm.
O princípio é sempre a demonização de um adversário, o primeiro passo para a catástrofe. Qualquer que seja a situação concreta, claro que nunca faltam candidatos ao papel de super-vilão. Os EUA abominam Putin e Xi Jinping como os chineses e russos detestam os EUA, e todos temem as mudanças climáticas. Por cá receia-se a Alemanha, a Espanha ou o inimigo preferido, o Governo. É esse perigo avassalador, qualquer que seja, sempre meramente esboçado e nunca analisado, que justifica as medidas mais extremas. Assim chegamos ao segundo passo, o repúdio da alegada ingenuidade generalizada, substituída pelo realismo nacionalista, por vezes até militar, do comentador. Chegamos ao ponto em que a tacanhez se disfarça de bom senso. Com estes dois fundamentos, as tolices mais extremas conseguem ser facilmente legitimadas.
Perante esta sequência, crescentemente presente nos tempos que correm, só há um antídoto possível: a coerência nos princípios fundamentais. A prosperidade que o mundo goza há décadas, a mais espantosa da história da humanidade, é o resultado da paz, abertura e cooperação mundiais. Isso, a que se chamou “globalização”, gera inevitáveis problemas, como se viu na crise financeira de 2008. Mas esses defeitos não podem minar os princípios básicos da paz, abertura e cooperação, únicos pilares possíveis para o desenvolvimento e estabilidade. Abandonar esses princípios, mesmo em nome da flexibilidade, é abrir a porta ao desastre. É isso precisamente que nos está a acontecer.