Entrevista/ “O mercado das renováveis está ainda numa fase de acelerada transformação”

“A tecnologia é uma componente fundamental do processo de transição energética que ambicionamos”, afirmou o presidente da ACEMEL ao Link To Leaders. Ricardo Nunes lembra que a transição energética está no topo da agenda e que é “um objetivo em que temos de ser bem-sucedidos se queremos ter um futuro sustentável neste planeta”.
A Associação de Comercializadoras de Energia no Mercado Liberalizado surgiu em 2018 para responder à necessidade sentida pelas comercializadoras de energia em ter alguém que representasse os seus interesses e preocupações, explicou Ricardo Nunes, presidente da ACEMEL, ao Link To Leaders. Dessa forma, “pretende ser um interlocutor de referência numa sã coexistência entre os agentes do mercado, reguladores, instituições públicas ou players incumbentes”.
Atualmente, a Associação representa um total de 20 entidades, desde empresas de grande dimensão, que até são incumbentes ou líderes em outros países europeus, até empresas de menor dimensão, mas de grande ambição e desenvolvimento. O seu presidente analisou o cenário energético nacional, os desafios da transição energética e das start-ups do setor de energia renovável.
Qual é a sua posição e da ACEMEL sobre a nova previsão de preços do regulador da energia que motivou um aumento de 3%, neste mês de julho, para as famílias no mercado regulado?
A ERSE é a entidade responsável pela definição do preço de energia no mercado regulado, sendo que esse preço deve ser representativo da situação atual e da expetativa futura de preços do mercado. Acresce que, de acordo com as orientações e práticas europeias, este preço não deve nunca ser mais competitivo que o preço de mercado. Esta subida de 3% foi claramente insuficiente face ao que se verifica no mercado grossista.
Que desafios trouxe às comercializadoras de energia em termos de faturação todas as mudanças nas taxas do IVA aplicado à eletricidade?
Toda e qualquer alteração de impostos tem reflexo na operação dos comercializadores. Neste caso específico, sendo o modelo de IVA escolhido mais complexo que o habitual, dado que é progressivo com os níveis de tensão e de consumo, as mudanças tiveram um impacto profundo e direto na operação dos comercializadores. Foi necessário adaptar sistemas informáticos e preparar os recursos humanos para que o processo decorresse com a maior normalidade possível. No final, apesar do aumento de custos com a operação penso que o resultado foi positivo, e que os comercializadores mostraram estar à altura do desafio.
A ERSE conseguiu baixar as tarifas no mercado regulado em 2021, mas no mercado livre todas as comercializadoras estão a subir os preços. O que justifica esta tendência?
A ERSE, embora ainda de forma tímida e até inconsistente com a realidade do mercado, atualizou em junho o preço do mercado regulado. Por outro lado, o mercado liberalizado tem-se limitado a adaptar os preços às circunstâncias do mercado europeu de energia.
A pressão do preço do gás natural, do mercado de CO2, a profundidade das políticas de transição energética sem que tenhamos ainda suficiente penetração de renováveis ou soluções de armazenamento consistentes, tem levado a recordes de preço de energia nos mercados diários. Na minha opinião, estamos perante um desafio estrutural que só poderá ser ultrapassado quando tivermos um mix energético renovável que permita não termos necessidade da entrada na pool de tecnologias poluentes as quais estão muito pressionadas por questões fiscais ou de CO2, por exemplo.
O que é preciso fazer para que as pessoas percebam que grande parte da sua fatura está fixa e não depende do comercializador?
Tem sido feito, por parte das comercializadoras, um esforço pedagógico para mostrar todas as diferentes componentes que integram o preço da energia, mas diria que ainda é necessário um esforço adicional para simplificar a linguagem e torná-la mais próxima dos consumidores, que podem não estar familiarizados com os conceitos e termos do setor. Diria que é um caminho que já foi iniciado, mas que está a dar ainda passos iniciais. É preciso passar a mensagem que grande parte da fatura de energia das pessoas vem de componentes fixas não negociáveis, que são definidas por políticas energéticas ou por decisão do regulador.
“A qualidade do serviço, a proximidade comercial e a apresentação de soluções de eficiência energética, entre outros, têm cada vez mais impacto na decisão do consumidor”.
O consumidor está no centro de toda e qualquer estratégia das comercializadoras hoje em dia?
Claramente, porque o mercado concorrencial em que vivemos atualmente não é compaginável com uma atitude complacente ou menor capacidade de resposta aos pedidos dos clientes. O mercado é dinâmico e competitivo, há ofertas novas e direcionadas para diferentes perfis de consumo e de consumidores. O preço de uma oferta não é o único elemento diferenciador. A qualidade do serviço, a proximidade comercial e a apresentação de soluções de eficiência energética, entre outros, têm cada vez mais impacto na decisão do consumidor.
“Ser uma empresa de energia 4.0 é ter o know how e todos os recursos para estar em toda a cadeia de valor (…)”.
Como deverão operar as empresas de energia 4.0 ?
As empresas de energia estão a verticalizar-se cada vez mais. Além do fornecimento tradicional de eletricidade e gás, propõem e gerem soluções de mobilidade elétrica, eficiência energética, autoconsumo, produção descentralizada e até, no caso das indústrias, são agentes facilitadores da transição para o hidrogénio.
Ser uma empresa de energia 4.0 é ter o know how e todos os recursos para estar em toda a cadeia de valor, com duas missões principais: contribuir ativamente para a descarbonização da economia e proporcionar aos seus clientes, sejam domésticos ou empresariais, soluções eficientes tanto do ponto de vista económico, como ambiental.
Quais os desafios da transição energética na aposta no hidrogénio ou na neutralidade carbónica?
A aposta no hidrogénio do ponto de vista técnico parece-nos acertada. O hidrogénio verde, pelas suas características técnicas, acrescenta valor ao setor. Permite descarbonizar áreas de consumo energético intensivo que a eletrificação não atinge, além das vantagens pelo facto de ser facilmente transportável e armazenável.
O grande desafio está na componente económica e financeira. Como qualquer tecnologia ainda não madura, tem ainda um caminho a percorrer até que se torne competitiva face às tecnologias concorrentes como o gás natural.
“Os empreendedores terão de identificar as oportunidades e criar a melhor solução, porque está ainda muito por fazer e existe um mercado enorme de energia (…)”.
Quais considera serem os desafios para as start-ups no setor de energia renovável?
Claramente que existe um espaço grande de inovação, seja nas tecnologias utilizadas ou nos serviços associados. O mercado das renováveis, seja na produção ou no armazenamento, está ainda numa fase de acelerada transformação. A eficiência dos painéis, das turbinas eólicas, da biomassa ou mesmo de soluções mais consolidadas como as hídricas, têm ainda um grande espaço de evolução.
Há diversas entidades a fazerem a atualização dos seus sistemas eólicos, por exemplo, para outros com capacidade e níveis de eficiência e de serviço muito superiores. Se conjugarmos estas mudanças com as soluções tecnológicas de armazenamento e gestão de energia, existe um espaço imenso e por muitos anos para novos players que pretendam marcar o panorama do setor. Integrar soluções renováveis com outras de eficiência energética é também outro caminho, mas, acima de tudo, os empreendedores terão de identificar as oportunidades e criar a melhor solução, porque está ainda muito por fazer e existe um mercado enorme de energia a necessitar de soluções para acelerar a descarbonização. Dificilmente se encontrará uma oportunidade de maior dimensão, na sua totalidade, no mundo neste momento.
O que acha do futuro da tecnologia na área da energia? Alguma tendência a que devemos estar atentos?
Conforme referi, a tecnologia é uma componente fundamental do processo de transição energética que ambicionamos. No caso das tecnologias de produção energética, e utilizando o exemplo da energia solar, os painéis duplicaram de eficiência e baixaram significativamente de custo no espaço curto de 20 anos. E não estamos aqui a equacionar outras tecnologias solares, como os concentradores de energia.
Também as turbinas eólicas têm igualmente aumentado de eficiência e de capacidade. A integração de renováveis em edificado urbano ou empresarial é cada vez mais uma realidade. Existe uma miríade de opções e de caminhos, e a tecnologia é o fator comum a todos.
Porque é que as grandes elétricas como a EDP, Endesa, Iberdrola ou Galp ainda não se juntaram à ACEMEL?
Cada entidade é livre de se associar ou não à ACEMEL. Mantemos um diálogo próximo com todos os interlocutores do setor, logo também com as empresas que refere. E teremos todo o gosto, quando e se assim o entenderem, em acolhê-las na associação como todas as outras.
“Claramente que a transição energética está no topo da agenda, pelos custos de energia que todos estamos a sentir atualmente”.
Quais são os principais desafios para 2021 no setor?
Claramente que a transição energética está no topo da agenda, pelos custos de energia que todos estamos a sentir atualmente. Não é seguramente um objetivo que se consiga completar num ano ou sequer numa década, mas é um objetivo em que temos de ser bem-sucedidos se queremos ter um futuro sustentável neste planeta. Estamos atentos à evolução tecnológica, que é uma parte fundamental da resposta.
Planos para a ACEMEL para este e para próximo ano…
Continuar a defender os interesses dos nossos associados, que nada mais são do que os interesses em termos um setor cada vez mais democrático, transparente e eficiente para todos os agentes de mercado, e principalmente para todos os consumidores.
Respostas rápidas:
O maior risco: A transição energética “deixar para trás” aqueles consumidores ou países que não têm capacidade económica e social para aceder a soluções energéticas sustentáveis.
O maior erro: Não existir uma política coordenada e global de combate às alterações climáticas. Não adianta que a Europa seja muito ambiciosa na definição das suas metas, quando os países responsáveis pela maioria da poluição mundial não aplicam as mesmas medidas restritivas. Isso só servirá para desequilibrar as economias.
A maior lição: O ser humano, quando alia vontade, conhecimento e inovação tecnológica, é capaz dos maiores feitos. Esta crise pandémica, e a resposta em tempo recorde com o desenvolvimento de múltiplas vacinas, com a consequente diminuição da mortalidade pelo vírus é um exemplo que deveremos perpetuar para as gerações seguintes.
A maior conquista: Acontecerá quando deixarmos para os nossos filhos e netos um planeta melhor do que nos deixaram a nós.
* Associação de Comercializadoras de Energia no Mercado Liberalizado