Opinião
O “lado negro” da GRH
A ainda designada “Função RH” tem vindo com os tempos, e as circunstâncias, a tornar-se uma área cada vez mais valorizada e prestigiada nas organizações, com uma tendência assinalável para finalmente cumprir os vaticínios (e os desejos) que os profissionais vêm fazendo desde há bastante tempo: a de se tornar uma função cada vez mais relevante e com uma legitimidade inquestionável para ter um “lugar à mesa” da gestão estratégica das organizações.
Hoje, mais do que nunca, e ao contrário da ideia que prevalecia há décadas de que a GRH era um “luxo” das grandes empresas, não há praticamente nenhuma empresa ou organização, de maior ou menor dimensão, que não tenha uma qualquer prática de GRH, com esta ou outras designações, e também não há praticamente ninguém, seja no mundo empresarial, seja mesmo no contexto político, que não afirme a importância das pessoas, pelo menos em discurso oficial.
Esta crescente importância tem vindo a ser “celebrada” através da assinalável notoriedade da função e dos seus protagonistas, bem patente na forma como alguns media a eles se referem, transformando os mais notáveis em autênticas “estrelas” e popularizando um jargão onde abundam vocábulos que associam a GRH a causas que visam a autonomização das pessoas, a defesa da sua dignidade e valorização profissionais e a promoção de alguns dos valores mais fundamentais e essenciais à vida: a realização pessoal, o contributo para uma causa nobre e, finalmente, o alcance da felicidade.
Ao longo da sua história, relativamente breve sobretudo se comparada com outras grandes funções empresariais, a GRH realizou uma profunda transmutação do sentido do papel das pessoas nas organizações, migrando de uma conceção funcionalista de “recursos humanos” que se limitam a desempenhar funções, para uma conceção integralista de “pessoas” que procuram ativamente dar um contributo.
No entanto, e como afirma o famoso ditado popular de que “não há bela sem senão”, a GRH (vamos continuar a utilizar esta expressão por facilidade de composição do texto) não é só aquela função interessante, estimulante e até “sexy”, como agora se diz; tal como “a Força” tem o seu Darth Vader, e tal como a Lua tem a sua “face oculta”, também a GRH tem o seu “lado negro”, menos conhecido e menos referido, mas que tem um forte impacto negativo não só no sentimento de “wellness” dos seus profissionais, sobretudo dos seus responsáveis, como impede ou dificulta a concretização dos objetivos mais nobres a que se propõe.
Apesar deste “lado negro” ser uma realidade relativamente omnipresente no dia a dia de cada responsável da GRH, ele tem sido enormemente agravado neste momento difícil da nossa vida coletiva em que estes profissionais têm de lidar, nas suas respetivas organizações, com situações de dificuldade acrescida e muitas vezes atípicas, que bem justificam as atribuições que lhes foram feitas por David Ulrich ao designá-los por “arquitetos de paradoxos”.
Senão vejamos: onde os responsáveis de RH deveriam concentrar as suas energias e capacidades sobretudo na promoção ativa do bem estar e do desenvolvimento dos colaboradores das organizações respetivas, muitos há que ainda gastam de facto uma boa parte do seu tempo em atividades de rotina ou de pouco valor acrescentado, ou ainda outras atividades que, pertencendo embora à esfera dos gestores de topo, são por estes consideradas ou como tarefas menores para o seu estatuto, ou então como demasiado “incómodas” para “darem a cara” por elas.
Por outro lado, e sendo a GRH uma função partilhada e mesmo protagonizada pelas chefias intermédias, que são, por definição, os verdadeiros gestores das “suas” pessoas, acontece com alguma frequência essas mesmas chefias descartarem as responsabilidades específicas que têm nessas áreas, com o argumento de que “isso são questões para os Recursos Humanos”.
Acresce ainda que, sobretudo nas empresas de maior dimensão, os responsáveis de RH são por vezes completamente submergidos por problemas de âmbito jurídico-legal e têm de lidar com o porventura mais negro de todos os paradoxos: sendo profissionais vocacionados para o desenvolvimento e bem-estar dos colaboradores, momentos há que passam muitos dos seus dias a…despedir pessoas.
A consequência de situações como estas, para além de muitas outras que não cabem nas limitações de espaço deste texto, não são uniformes e vividas da mesma maneira nas diferentes organizações: algumas conseguem ultrapassar as dificuldades e progredir no acentuado caos em que a nossa vida social e profissional se vai tornando; outras, porém, claudicam sob o peso das inúmeras contradições de um quotidiano complexo e, em vez de promoverem o bem-estar das pessoas e a sua realização pessoal, convertem-se em ambientes onde a ansiedade, o medo e a falta de confiança, em si, nos outros e no futuro, constituem os elementos dominantes de uma paisagem cujos contornos se desvanecem em horizontes sem esperança.
E é aqui, na contribuição para o delinear destas dinâmicas opostas, que a função de RH, reinventada como a grande função empresarial que tem as pessoas como centro e como sentido último, pode realmente fazer a diferença.
Para tal, as empresas e a sua gestão têm de assumir a sua fundamental responsabilidade como promotoras ativas de uma conceção antropogénica sobre a contribuição das pessoas para o sucesso dos negócios; e aos responsáveis de RH, assiste a responsabilidade de, pela sua criatividade, competência e sensibilidade às dimensões mais profundas do ser humano, conseguirem superar os desafios de um “lado negro” que, embora nunca se esgote, não resistirá à inventividade humana inspirada por um propósito maior.
E no final, como sempre tem acontecido ao longo da história, o lado humano da “Força” irá prevalecer.
*Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas