Opinião

O gestor que vive e o gestor que recorda

Ricardo Tomé, diretor-coordenador da Media Capital Digital

A origem do título é alusiva à célebre frase de Daniel Kahneman: “O eu que vive e o eu que recorda”, mas venho colocá-la aqui ao serviço da gestão e do marketing. Kahneman, Prémio Nobel, introduziu esta ideia no contexto da psicologia do bem-estar e da tomada de decisão.

Segundo ele, O “eu que vive” (experiencing self) deve essa expressão ao facto de viver o momento presente, as sensações, emoções e acontecimentos em tempo real. Já  o “eu que recorda” (remembering self) advém de um conceito de um eu-memória, que reconstrói as experiências marcantes posteriormente, criando narrativas baseadas nessas memórias marcantes, mesmos que muitas vezes enviesadas (como bem sabemos, sendo a nossa memória muito “criativa”).

Em resumo: apesar das experiências com as marcas que vivemos serem muitas vezes regulares, a opinião (e preferência ou recomendação) sobre elas é muitas vezes mais afetada pela memória que se formou a partir dos momentos marcantes.

Porque interessa na gestão?

Esta ideia retirada do livro “Thinking, Fast and Slow” é a meu ver poderosa neste ângulo também aplicado à gestão e em particular ao Marketing, lembrando-nos de como as memórias em volta de uma experiência de produto ou serviço são influenciadas por fatores como:

  • o “pico” emocional (bom ou mau) de um evento;
  • o desfecho da experiência;

Um clássico exemplo é o processo, muitas vezes longo e cansativo, na escolha do próximo automóvel – mas que pode ser lembrado como “fantástico” se tiver um momento final positivo; ou no inverso, um processo até simples e fácil pode ser afetado pela reta final com uma entrega demorada ou com “surpresas” não esperadas e negativas.

Impacto no marketing e negócios

Muitas vezes a preocupação (e bem) está no processo, mas pode ocorrer um descuido na hiper-relevância dos momentos críticos que farão a memória do cliente. No clássico caso nas telecomunicações, todos nos lembramos daquele problema que tivemos 1 dia, e o difícil que foi e a memória penosa que deixou a experiência do suporte, entre dados e bots e mensagens, por mais que nos restantes 364 dias a rede estivesse sempre a funcionar. São de facto estes outliers de extremos que marcam a memória: positivos e negativos.

A importância de criar momentos memoráveis

A mentalização da experiência da marca para um cliente não se faz matematicamente somando todas as interações com igual peso, mas há momentos no percurso que podem ter mais impacto na perceção da marca e mesmo na recomendação dela a outros.

Pensar em ações para trabalhar o eu-que-recorda tem tornado algumas marcas mais competitivas face às concorrentes:

Disney

Experiência vivida: visitar um parque Disney pode ser cansativo, com longas filas, calor, multidões, confusão…

Memória construída: mas o desfecho de um dia intenso é brindado com um espetáculo de drones e fogo de artifício que faz esquecer tudo o resto. Quase ao jeito do que diria o célebre filme a imortalizar Ed Wood, o realizador de cinema: “I want the movie to end with a big explosion”. A opinião do filme é muito enviesada pelo que as pessoas lembram do final.

Starbucks

Experiência Vivida: fila para pedir o café e um preço alto.

Memória construída: alguém que traz o café em mãos e nos entrega chamando pelo nosso nome com um sorriso.

Amazon

Experiência vivida: caos para encontrar no meio de milhares de opções, muitas delas similares, aquela que procuramos.

Memória construída: mesmo para produtos de tipo “commodities” a experiência de entrega rápida e o processo fácil de despacho ou de devolução fortalecem a ideia positiva na memória do cliente sobre a marca.

Josefinas

Experiência vivida: escolher um par de sabrinas a um preço premium, acima da média de mercado.

Memória construída: todas as interações ao longo do processo de encomenda e entrega são personalizadas, humanas, afáveis e atenciosas; o desembrulhar da encomenda é como viver de cada vez um momento especial, com um pós-venda igualmente amável e prestável.

Emirates

Experiência vivida: voos de longo curso.

Memória construída: as crianças mais pequenas são brindadas com um kit de atividades para ocupar parte do tempo e todos os passageiros podem tirar fotos ao estilo Polaroid com a família, amigos ou até mesmo com o staff, ficando de imediato com uma recordação nas mãos para levar para casa e colocar na estante, com uma moldura em cartão oferecida pela companhia aérea.

Spotify

Experiência vivida: streaming de música, podcasts e audiolivros.

Memória construída: todos os anos o Spotify brinda os seus utilizadores com o Spotify Wraped, um presente anual que revela para cada cliente quais foram as músicas mais ouvidas, os artistas favoritos e um conjunto de outras estatísticas e curiosidades, para além de vídeos dos artistas a agradecerem as preferências, o que faz do Wraped um momento muito comentado todos os anos entre utilizadores e não utilizadores.

Também na liderança

Na gestão de talento os mesmos princípios são aplicáveis. Quando o tempo passa, são as memórias de momentos acima da norma (positivos ou negativos) que moldam a perceção da empresa. Não é por acaso que há momentos-chave necessários e trabalhados há muitos anos pelas equipas internas:

Primeiros dias: O onboarding de um colaborador define e marca desde logo a perceção da empresa e da sua cultura; as primeiras impressões contam.

Ter o team-líder a fazer o acolhimento, a ajuda de um mentor, kits de boas-vindas personalizados, todo o conjunto de sistemas a funcionar em pleno e sem falhas (email, n.º telemóvel, acessos informáticos, ..), torna a memória futura muito mais positiva e a compensar os inevitáveis dias menos bons.

Reconhecimento: ao longo do tempo, procurar encontrar os tais momentos de celebração para tentar novo impacto duradouro. Não falo das reuniões de avaliação (bem sabemos como elas podem funcionar no sentido oposto, e mais sabendo que o feedback não deve ser anual mas contínuo). Poderá ser a tão aguardada promoção, mas mesmo essa dependerá da forma como é comunicada e enfatizada junto do colaborador (podendo muitas vezes algo ótimo transformar-se numa má memória, mal enquadrado..). Pode também ser o reconhecimento público, num email para toda a equipa, num evento de empresa ou junto de parceiros.

Desfecho positivo: por fim, as próprias saídas de colaboradores (voluntárias ou não) devem ser cuidadosas para que as pessoas recordem com essas últimas memórias a empresa da melhor forma.

Boas experiências, sim – mas que se recordem

A ideia central aqui é, por isso, reforçar que tudo é relevante ao longo do processo da relação com o cliente, mas perceber que há momentos nessa miríade de interações que podem ser trabalhados de forma mais cuidada para deles emergirem as memórias, raras, que aumentem o sentimento de pertença à marca.

Ainda hoje me lembro e partilho um contacto telefónico junto da Nespresso a propósito de uma máquina nova e da simpatia com que fui brindado pela colaboradora. Ou ainda no mundo do café, agora com a Delta, o acolhimento tido na experiência vivida no seu museu, junto à fábrica, que me fez daí em diante olhar cada cápsula de forma diferente e mais positiva.

Se pensarmos nalgumas marcas de que gostamos ou não gostamos tanto, e fizermos algum esforço, facilmente para algumas vamos perceber que essa perceção está alavancada na nossa memória em momentos muito particulares, quase únicos, e que tudo o resto é uma amálgama difusa que nem sabemos bem explicar (como refere Marty Neumeyer no seu livro “The Brand Gap”). Por vezes nem nos apercebemos como essas poucas memórias ainda hoje estão vivas e afetam, para o bem ou para o mal, aquela relação.

Num exemplo pessoal: ainda hoje, muitos anos volvidos, a cara-metade evita ir a uma conhecida marca de retalho porque em tempos lhe negaram um pagamento com Multibanco abaixo de 25€, num dia de stress e onde foi obrigada a parar as compras, olhar as pessoas na fila, ir à ATM levantar o dinheiro vivo e voltar minutos depois para efetuar o pagamento…

Não é à toa a expressão usada regularmente “A forma como somos lembrados define a forma como seremos vistos” … e comprados, e recomendados.

Ou não.

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Ricardo Tomé

Ricardo Tomé

Ricardo Tomé é Diretor-Coordenador da Media Capital Digital, empresa do grupo que gere a estratégia e operação interativa para as várias marcas – TVI, TVI24, IOL, MaisFutebol, AutoPortal, etc. – com foco especial na área mobile (Rising Star, MasterChef, SecretStory) e Over-The-Top (TVI Player), bem como ativação de conteúdos multiscreen em todas as plataformas e realizando igualmente a ponte com o grupo PRISA nas várias parcerias: Google & YouTube, Facebook, Twitter, Endemol, Shine, entre outras. Foi, até 2013, coordenador da... Ler Mais..

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