Opinião
O futuro do ócio: como viver num mundo sem trabalho

São muitas as preocupações que as sociedades mais desenvolvidas vêm tendo em relação às consequências que o desenvolvimento tecnológico poderá vir a acarretar nos modos de organização das empresas e na gestão das pessoas.
Estas preocupações têm sido organizadas numa espécie de área disciplinar que dá pelo nome de “O Futuro do Trabalho”. Mas, se começa a haver algum consenso, na comunidade científica e nos comentadores especializados, de que, como refere Susskind (2020), “nos próximos 100 anos, o progresso tecnológico tornar-nos-á mais prósperos do que alguma vez fomos“, também é verdade que vai surgindo no horizonte uma outra previsão, que lhe é correlata e já vai tendo hoje uma significativa evidência nas sociedades mais avançadas, de acordo com a qual, e citando o mesmo autor, “esse progresso também nos levará a um mundo com menos trabalho para os seres humanos“.
Embora para muitos a possibilidade de uma visão mirífica da aproximação do “fim do trabalho” possa parecer a verdadeira substancialização do supremo ideal da felicidade (sobretudo para aqueles que, quando se lhes pergunta o que fariam se ganhassem o Euromilhões, respondem, com uma galhardia que ressuma a heroísmo, que “deixavam imediatamente de trabalhar”) a questão pode, todavia, não ser nem tão simples nem tão linear como parece, sobretudo pelas implicações que tal situação pode trazer para o ordenamento geral, seja da nossa vida pessoal, seja do conjunto da fenomenologia social do que é vivermos em comunidade.
Na verdade, com a notável evolução que as sociedades ditas “mais avançadas” têm tido relativamente às formas de organização e às próprias conceções sobre o que é essa realidade complexa a que chamamos “trabalho”, o que é facto é que há hoje um cada vez maior número de pessoas que já não concebem o trabalho como “uma coisa má” ou como simplesmente algo que somos obrigados a fazer porque temos de “ganhar a vida”, mas como uma verdadeira “forma de vida”, como algo de fundamental para que a pessoa se sinta útil e relevante na sociedade em que se insere e como um alicerce indispensável para a consolidação da sua identidade como cidadão.
Hoje, há de facto muitas pessoas que sentem que o trabalho é a sua principal fonte de realização pessoal e que é no trabalho que se sentem verdadeiramente úteis, que sentem que são importantes e que têm valor.
O que fazer, então, em contextos onde os avanços tecnológicos irão, sem dúvida, contribuir poderosamente para libertar os seres humanos das tarefas mais pesadas e menos motivadoras, inaugurando, em larga escala, uma era de prosperidade económica e social nunca conseguida em qualquer época histórica anterior, mas onde também essa mesma prosperidade irá tendencialmente conduzir a uma redução significativa dos espaços e dos tempos tradicionalmente gastos no trabalho, libertando os seres humanos para outras atividades habitualmente consideradas como de “tempos livres” ou de “lazer”?
Como enfrentar esse “admirável mundo novo” em que “o problema económico que assombrou os nossos antepassados, o de fazer um bolo tão grande que pudesse sustentar toda a gente, se irá desvanecer“, fazendo, todavia, emergir “o problema do sentido, de perceber como usar essa prosperidade não só para viver com menos trabalho, mas também para viver bem“. (op.cit.)
Nesta linha, as reflexões sobre o “Futuro do Trabalho”, que se focalizam sobretudo nos processos e nas políticas a seguir para fazer face às implicações dos avanços tecnológicos nos empregos, nos postos de trabalho e nos novos modos de trabalhar, deverão ser complementadas, e até de modo indissociável, de um outro tipo de reflexão sobre o que fazer nos novos modos de “não trabalhar”, particularmente nos novos significados e propósitos que as pessoas deverão assumir para viver em ambientes onde o “não trabalho” passará a constituir um significativo novo “modo de produção” nas comunidades humanas do futuro.
Ou seja, para além do “Futuro do Trabalho”, é essencial preocuparmo-nos também com o “Futuro do Ócio”.
Mas desiludam-se aqueles que acharem que passarmos a ter mais ócio do que trabalho é a solução mágica para todos os males do mundo. Pelo contrário, face às características próprias dos seres humanos, essa situação poderá vir a gerar novos problemas que irão seguramente afetar o equilíbrio sócio-emocional das pessoas e das comunidades.
De facto, a passagem para um mundo com menos trabalho acarreta não só o problema do que fazer no maior tempo disponível, mas também como atribuir novos significados a uma vida em que a ausência, ou a redução, dos habituais estímulos do trabalho vai inevitavelmente conduzir a uma maior confrontação da pessoa com o mais genuíno e profundo de si própria.
Muita gente já faz atualmente essa confrontação de forma saudável e experimentando sentimentos de felicidade, particularmente aqueles que já conseguiram alcançar um nível elevado de “Work/Life integration” e vivem uma vida em que os eventuais projetos profissionais são integrados enquanto parte importante de um projeto mais amplo de vida.
O problema maior é que, para muita gente, o trabalho, em vez de ser uma parte importante do seu projeto de vida, se transformou ele próprio no verdadeiro sentido da vida.
Habituados que estamos às rotinas, à adrenalina e ao preenchimento dos tempos inerentes às atividades profissionais a um ritmo e intensidade tais que nos tem conduzido a um “Work/Life inbalance”, normalmente a pender para o lado do “Work”, estaremos nós realmente preparados para vivermos um possível futuro em que as lógicas da ocupação do tempo poderão vir a ser invertidas no sentido de termos cada vez mais tempo disponível para o lado da “Life”? E seremos capazes de bem gerir esse maior tempo disponível e capitalizá-lo de facto para construir uma melhor qualidade de vida?
A resposta, mais uma vez, não é linear. Veja-se, por exemplo, o caso daquelas pessoas que percorrem a sua vida profissional de forma mais ou menos penosa, alimentando essa esperança equívoca de que a sua vida só será verdadeiramente satisfatória quando chegarem à reforma, como se esta fosse o “Eldorado” para onde convergem todas as expetativas e aspirações a uma melhor qualidade de vida. Mas, como sabemos, muitas dessas pessoas que, no fundo vivem uma vida permanentemente adiada sem sequer se darem conta disso, quando realmente se reformam não só não ganham maior qualidade de vida, como efetivamente a perdem, submergidos na obscuridade do pasmo dos dias sem sentido e sem substância e consumidos na depressão do sentimento de inutilidade e de perda de relevância.
Refletir, portanto, sobre o “Futuro do Ócio”, é preocuparmo-nos com as consequências psicossociais da ausência de trabalho, não evidentemente para aqueles que estão em situação de desemprego ou de emprego precário, para quem o ter trabalho constitui o seu principal suporte de vida, na ausência de quaisquer outros meios de subsistência.
É refletir sobretudo sobre que tipo de sociedade vamos construir quando o desenvolvimento económico nos permitir viver uma vida em situação economicamente satisfatória…mas sem trabalho. É, no fundamental, refletir sobre as possíveis respostas a uma pergunta clássica de John Stuart Mill, citado por Susskind (2010): “Quando o progresso cessar, em que estado esperamos que ele deixe a Humanidade“?
Para finalizar, deixo ainda uma outra citação de Susskind que sintetiza de forma expressiva o tipo de desafios que enfrentamos no futuro: “Num mundo com menos trabalho (…) teremos de revisitar os fins fundamentais, mais uma vez. O problema não é simplesmente como viver, mas como viver bem. Seremos forçados a pensar no que realmente significa viver uma vida com sentido”.
Referências
Susskind, D. (2020). Um Mundo Sem Trabalho: Como Responder ao Avanço da Tecnologia. Porto: Ideias de Ler.
*Docente convidado do ISCTE/Executive Education; Coordenador das Pós-Graduação em “Desenvolvimento Emocional e Coaching” do ISCTE/Executive Education; Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG -Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas.