Opinião
Montámos mais de 200 bonecos para o Contra Informação

Lembra-se dos bonecos do Contra Informação, da RTP1, que caricaturavam figuras públicas da sociedade portuguesa e internacional? Falámos com o artesão responsável pela criação destes bonecos que hoje tem um espaço de restauro em Lisboa, o Atelier Encaixe.
Criado em 2015, na Avenida General Roçadas, em Lisboa, o Atelier Encaixe é inspirado pelo amor e dedicação à madeira, matéria-prima e personagem principal de todas as histórias que este projeto tem para contar.
O Gonçalo e a Inês juntaram os trapos ao resto dos materiais e nasceu um espaço em que os sonhos e as mãos se misturam. Os dois artesãos, com mil e uma formações e experiências pelo meio, dedicam-se de corpo e alma ao desenvolvimento de projetos que honrem o respeito pela natureza e a responsabilidade ambiental e social, incluindo a prática da reciclagem.
Com cartas dadas em diferentes áreas, desde a televisão, à farmacêutica, passando pela publicidade, a palavra-chave de tudo o que criam é a diversidade. Na sua lista de clientes encontramos o Museu da Assembleia da República e nas gavetas muitos projetos que esperam fazer acontecer.
Como surgiu o Atelier Encaixe?
Quando cheguei de Moçambique fui convidado para gerir uma fábrica de móveis e dentro do projeto havia uma empresa de construção civil. Estava acordado que eu ficava à frente da fábrica dos móveis e que haveria uma restruturação na parte da empresa de construção civil. Ao fim de um ano e meio a restruturação da empresa de construção civil não se tinha dado e eu decidi que tinha de sair. Quando saí da fábrica, não tinha nada para fazer, Portugal estava numa crise enorme e os chineses dizem que as alturas de crise são as melhores para se investir. A Inês virou-se para mim e disse-me “Não percebo. Se passamos dificuldades, passemos essas dificuldades para nós. Está na altura de criarmos um atelier”.
Desde 2010 que estava a reunir know how em determinadas áreas que achava que seriam fundamentais. Já tinha tido alguns ateliers, já tinha montado do zero a Restauromania e já tinha comprado um outro atelier que estava falido com um grande amigo. O problema é que tive sempre de conjugar o trabalho nos ateliers e o Contra Informação da RTP1, onde entrei, em 1999, com 21 anos para montar a equipa que iria fazer os bonecos.
Saí do programa porque o que me mexe é a paixão e o desafio, ou seja, quando monto algo não gosto de ficar encostado. O Atelier Encaixe é um desafio constante, tem toda a parte do atelier e depois tem a parte dos produtos. O que tentamos é tirar o maior proveito das coisas, evoluí-las o mais possível para que cheguem a níveis onde nunca imaginámos. Este é o nosso Atelier de sonho, apesar de termos dificuldades com o espaço.
Porquê Encaixe?
Porque encaixa em nós e nos outros também. Na minha vida tenho um lema que é: se puder fazer alguma coisa para ajudar o outro, faço. Se temos ao nosso alcance a possibilidade de mudar a vida de alguém e não o fazemos, não estamos a ser corretos. Quando comecei a abrir o atelier estávamos numa situação muito precária e chegavam lá pessoas para ver o que estava a acontecer. O atelier foi todo feito com coisas recicladas. Sim, aquilo era um buraco. Era uma marcenaria de um velhote que estava ali há 50 anos.
O meu mestre uma vez disse-me “Oh Gonçalo, vais mexer na casa de banho do atelier?”, e eu “não! Nem tenho dinheiro para isso” e ele “mas porquê, não vais sequer mudar a sanita e o lavatório?”. E eu respondi-lhe: “Não Vítor, esquece!”. Quando precisei de dinheiro para a canalização vendi a minha carrinha mercedes, uma E250 de 89. O Atelier foi feito assim, hoje vendo a carrinha, amanhã vendo uma mota. O que fizemos foi, primeiro de tudo, criá-lo, depois humanizá-lo e depois sustentabilizá-lo.
Pensámos que a maior valência que o atelier tinha era conseguirmos gerir o nosso tempo em prol da nossa família. O futuro deles passa também por ali.
De que forma os vossos percursos pessoais e profissionais, o seu e o da Inês, influenciaram a criação do atelier?
Quando saí da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, do Instituto de Artes e Ofícios – IAO, fui convidado para ficar na Fundação. Sempre disse ao meu pai que quando terminasse o curso iria ficar ali. Depois isso acabou por não se concretizar porque uma das coisas que constatei foi que eles formavam artistas e depois queriam operários. Tive um curso, uma formação excecional de três anos. Tive inclusive algumas cadeiras de modelação. A Inês também tem esse curso. Portanto, ali éramos estimulados e trabalhados de tal maneira que o Gonçalo Jardão, por exemplo, que tirou o curso também no IAO ganhou um Óscar com o Hotel Bucareste e a cenografia desse mesmo hotel.
Eu continuei nas madeiras e na cenografia, e mantive o trabalho no Contra Informação. A Inês quando saiu da Fundação foi para o IADE, para Design Gráfico. Portanto, quando começámos a montar o atelier era eu que estava a 100% no projeto. A Inês só ficou a tempo inteiro quando diagnosticaram autismo ao nosso filho de 6 anos. Pensámos que a maior valência que o atelier tinha era conseguirmos gerir o nosso tempo em prol da nossa família. O futuro deles passa também por ali.
Fiz o curso no Instituto Ricardo do Espírito Santo, o curso de técnico de conservação e restauro da ESAD, fiz fatos para os Blasted Mechanism, bonecos para o Contra Informação, giro equipas desde os 21 anos, restaurei para a Junqueira 220, que era na altura a melhor empresa de conservação e restauro que havia em Portugal.
Têm estabelecido várias parcerias, uma delas é com a Santa Casa da Misericórdia…
O atelier ainda não estava pronto e eu já tinha um acordo fechado com a Santa Casa que consistia em receber desempregados de longa duração. São pessoas com 50 anos e que pensam que não há mais nada para fazer. Fui financiado pelo Lisboa Empreende e lembro-me que uma das frases que me disseram na altura, vindo eu de uma família que nunca teve dificuldades, foi “o projeto vai ser financiado e vai ter um juro inferior em x% porque está em perigo de exclusão social.”
E essa frase fez-me pensar, já que tenho tanta formação e vontade de mudar o mundo: fiz o curso no Instituto Ricardo do Espírito Santo, o curso de técnico de conservação e restauro da ESAD, fiz fatos para os Blasted Mechanism, fiz bonecos para o Contra Informação, um programa premiado, giro equipas desde os 21 anos, restaurei para a Junqueira 220, que era na altura a melhor empresa de conservação e restauro que havia em Portugal. Tinha a minha equipa, restaurei monumentos como a Igreja da Misericórdia no Redondo, que aparece na Porta da Revessa no rótulo do vinho, restaurei a sala do Senhor dos Passos da Igreja da Graça. Para além dos estagiários da Santa Casa, recebemos estagiários com formação que vêm de fora. Já recebemos uma surda-muda e os surdos-mudos são ótimos para polimento porque não ouvem. Então concentram-se.
Quais os produtos que podemos encontrar no atelier?
Trabalhamos madeiras, carbonos, fibras. Sendo a madeira a nossa atividade principal, o que fazemos mais é restauro e depois marcenaria. Mas já fizemos coisas como caravanas. Basicamente fazemos a marcenaria, o restauro de peças antigas, desde móveis a tudo. Até pode ser pedra. Tudo o que é para restaurar fazemos. Agora estamos a restaurar uma tela que é uma marca antiga da farinha 33. Já restaurámos também um cofre antigo.
São só os dois ou têm mais pessoas a trabalhar no Atelier?
Neste momento temos mais uma pessoa, sim. E queremos contratar mais uma para nos ajudar. E pelo meio ainda vou estudando. Agora estou a fazer um curso de empreendedorismo. E em outubro começo um MBA, que é algo que gostava de ter, é um sonho. O sonho comanda a vida, não é?
Quem são os clientes do Atelier Encaixe?
Temos desde empresas antigas a pessoas que têm o gosto por peças antigas, hotéis. Agora temos um senhor que tem um carro antigo que precisa dos interiores em madeira e não arranjava quem lhe fizesse o trabalho. Acho que fazemos de tudo um pouco. Eu costumo dizer que conservamos memórias. As pessoas às vezes levam-nos peças para restaurar e olho para a peça e penso “meu Deus..!”. Por exemplo, temos um trabalho giro que é um carro de bois. Já pintámos de uma cor, mas a senhora que detém a peça diz que não é bem a cor que a faz lembrar-se do avô. Então vamos ter de fazer outra vez.
Restaurar um carro ou uma peça quando ela é muito complexa, é um processo que normalmente tem sempre um senão: as pessoas vivem numa ansiedade porque querem aquilo pronto e eu vivo noutra que é: eu quero é aquilo o mais perfeito possível.
O Atelier Encaixe gosta sempre de um bom desafio! Qual o maior desafio que receberam até hoje?
Acho que não temos assim nenhuma peça. Pomos tanto de nós em cada trabalho que fazemos. Porque cada peça que vem ao atelier tem uma história. Restaurámos, por exemplo, um carro que é um BMW izeta de 1957. Tem uma história gira porque foi todo restaurado. Já foi usado num casamento. Eu comprei esse carro, inicialmente. Entretanto, um dia, coloquei-o à venda e o pai da Inês comprou-o, com a condição de o restaurar. Restaurar um carro ou uma peça quando ela é muito complexa, é um processo que normalmente tem sempre um senão: as pessoas vivem numa ansiedade porque querem aquilo pronto e eu vivo noutra que é: eu quero é aquilo o mais perfeito possível.
Temos duas mesinhas que demoraram cerca de oito meses porque não encontrávamos a madeira. Foram 200 horas de trabalho. Estas mesas tinham estado quatro meses à chuva.
Qual foi a peça que mais tempo demorou a restaurar?
Temos duas mesinhas que demoraram cerca de oito meses porque não encontrávamos a madeira. Foram 200 horas de trabalho. Estas mesas tinham estado quatro meses à chuva. Estamos a falar de duas mesas Dona Maria Macterie. Não é embutido, porque vulgarmente chamamos embutido a tudo. Macterie é algo que os franceses também fazem e embutido só nós é que fazemos. Embutido é quando escavamos a madeira e inserimos as peças dentro da madeira. Macterie é quando temos umas faixas e faixamos tudo. Vestimos o móvel com painéis recortados.
É mais fácil recuperar, restaurar ou conservar peças?
É mais fácil conservar, que implica cuidar, olhar para uma peça com alguma inteligência e pensar se eu fizer estas ações, vou manter esta peça por muitos anos. Um pensamento que se perdeu hoje em dia. Antigamente os meus avós tinham uma peça e cuidavam dela. Era um bem.
Depois de vários anos a fazermos os nossos próprios produtos de acabamento para madeira, de uma maneira tradicional e ancestral, para as peças dos clientes, surgiu a necessidade de produzirmos e vendermos a nossa própria cera para manter as peças nutridas e hidratadas.
O atelier também tem uma linha de produtos criados de forma a dar continuidade àquela que é a filosofia do Encaixe. Que produtos são estes?
Depois de vários anos a fazermos os nossos próprios produtos de acabamento para madeira, de uma maneira tradicional e ancestral, para as peças dos clientes, surgiu a necessidade de produzirmos e vendermos a nossa própria cera para manter as peças nutridas e hidratadas.
Tínhamos de conseguir fazer uma cera, mas sem toxinas, que as pessoas pudessem comer, pôr na boca, nas tábuas de cozinha. Começámos a fazer isto há um ano. As primeiras 20 latas demoravam quatro horas a encher, o que era um desperdício enorme. Estas ceras foram testadas nos Laboratórios do Instituto Superior Técnico com resultado de 0% de toxicidade! Temos a NATUR INTERIORS, a Cera de Abelhas NATUR, Cera de Abelhas 100% Natural e a Cera de Abelhas Tradicional Portuguesa. São ceras feitas artesanalmente, com ingredientes 100% orgânicos.
Onde podemos encontrar estas ceras?
Vendemos online e temos pontos de venda por todo o país, até nos Açores. Agora estamos a tentar ir para a Vida Portuguesa.
É esta a vossa aposta neste momento?
Sim, estamos mais focados nas ceras neste momento porque o atelier vai bem. Estivemos dois anos a trabalhar este produto para o lançarmos. Não temos nenhum produto que seja nosso concorrente em Portugal e temos espaço para o colocar além-fronteiras. O que não conseguimos é um parceiro distribuidor. Porque quando chegamos ao pé de alguém e pedimos para ser nosso parceiro na distribuição, essa pessoa olha e diz que quer é comprar o atelier e isso não queremos porque são dois negócios distintos.
Fiz 260 bonecos o que foi ótimo para a cenografia e para o atelier também. Este programa deu-me um grande domínio de técnicas, deu-me a oportunidade de trabalhar e reunir técnicas de materiais diferentes.
Fizeram os bonecos do Contra Informação emitido na RTP1. Pode falar-me mais deste pojeto?
Ainda tenho esses bonecos no atelier. Os bonecos do Contra Informação não são uma novidade. Aliás, uma das vertentes dos bonecos é o Spitting Image do Rocher Law, em Inglaterra, que vem na onda do Jim Henson’s Creature Shop. Eu entro no Contra Informação para fazer os bonecos em Portugal, em 1999, porque o Roger Law que era o dono do Spitting Image, empresa que fornecia os bonecos, decide vender tudo e ir viver para a Austrália. Montei uma equipa para fazer os bonecos e essa equipa foi aumentando. Nessa altura montei o departamento de artes, com 21 anos. A Mandala era a empresa que detinha os bonecos do Contra Informação. Fiz 260 bonecos o que foi ótimo para a cenografia e para o atelier também. Este programa deu-me um grande domínio de técnicas, deu-me a oportunidade de trabalhar e reunir técnicas de materiais diferentes.
Um boneco demorava quanto tempo a fazer?
Cheguei a uma altura em que os bonecos estavam prontos em três meses, mas inicialmente levava meio ano a trabalhar. O boneco começa com três desenhos, no mínimo, uma frente e um três quartos para se ter volumetria, depois é esculpido em barro, de seguida tira-se o molde em fibra. A partir daqui é feito um contramolde interior para se tirar a espuma, depois tem fibra no interior, tem latão soldado que é o que vai permitir mexer os olhos. Um cabo vai permitir mexer para um lado e uma bomba de ar faz com que os olhos fechem. Depois é tudo montado, fechado e pintado a aerógrafo.
É fácil ser-se empreendedor, em Portugal?
Não, não é! No entanto, hoje é muito mais fácil do que há 20 anos. As pessoas perguntam-me porque é que eu sou empreendedor e eu respondo porque em Portugal só conheci precariedade, ou seja, quando trabalhava passava recibos verdes ou trabalhava em regime de outsourcing. O que aconteceu foi que fui empurrado para ser empreendedor.
Há uma coisa que é inevitável, quem é empreendedor vai ter bons e maus negócios. O erro faz parte da vida e quanto mais consciência tivermos disso mais aprendemos com os erros. O problema não é errar, o problema é não aprender com os erros. Ninguém conhece o sucesso se não conhecer o insucesso. O mais difícil é constituir uma equipa. A coisa mais importante é a parte humana, a parte técnica nós adquirimos.