Opinião

Mentores de saúde digital: quantos powerpoints já validaram um dispositivo médico?

Tiago Cunha Reis, docente universitário

Num ecossistema onde a palavra “mentor” é usada com tanta frequência quanto “inteligência artificial”, a questão impõe-se: quem são realmente os mentores que acrescentam valor às start-ups de Saúde Digital e Medtech? E mais importante: quantos deles já colocaram uma solução médica no mercado, com validação científica, aprovação ética e tração clínica real?

Porque a verdade incómoda é esta: ser “mentor” numa start-up de saúde não é o mesmo que dar conselhos em tecnologia ou marketing. O ciclo de vida de uma solução de saúde, seja uma app de triagem dermatológica ou um sensor implantável, exige conhecimento profundo de regulação, ensaios clínicos, interoperabilidade de dados, aprovação ética e, sim, validação científica em revistas indexadas. Não chega conhecer investidores. É preciso conhecer investigadores.

Um mentor válido não é só aquele que já angariou capital. É quem sabe dizer quando não se deve escalar. É quem conhece o momento certo para entrar num hospital, o tipo de estudo necessário para justificar uso clínico e o grau de evidência exigido por um comité de ética. Se o seu “mentor” nunca ouviu falar de TRIPOD, CONSORT-Digital Health ou MDCG guidelines, então não é mentor: é um obstáculo com boas intenções.

Mais (porque em 2026 queremos evitar erros) em Medtech, a ausência de validação não é apenas um erro de negócio. É um risco clínico. O mentor ideal compreende estes princípios: (1) Ajuda a definir endpoints clínicos antes de procurar product-market fit. (2) Promove colaborações com instituições académicas não por status, mas para gerar dados robustos, e (3) Incentiva estudos piloto não como “nice to have”, mas como passo obrigatório.

Existe um ponto adicional, que é na minha modesta opinião, o mais importante: conhece os trade-offs entre inovação rápida e reprodutibilidade científica.

Na prática, isso significa que o seu mentor deve falar três línguas com fluência: a da ciência (sabe ler e escrever artigos científicos); a da medicina (entende o raciocínio clínico e o impacto no doente), e a do mercado (compreende métricas de escalabilidade, CAC, churn, e retorno sobre evidência (return on evidence, o novo ROI da saúde digital).

Em Portugal e na Europa, temos talento técnico, criatividade empreendedora e programas de incubação de excelência. Mas pecamos frequentemente na escolha de quem valida as decisões críticas nos bastidores. Um bom pitch nunca compensará a ausência de dados clínicos. E um bom mentor não é aquele que apenas melhora o pitch, é quem sabe quando e como transformar uma hipótese clínica num produto cientificamente credível.

Portanto, se está a escolher um mentor, comece por uma pergunta simples:

  • Quantas vezes esta pessoa publicou, regulou ou validou uma solução real em saúde?

Se a resposta for vaga, talvez continuar a sua procura possa fazer sentido. O mercado da saúde digital já tem ruído suficiente, e cada vez será mais difícil encontrar um grande mentor. Em saúde, conselhos sem evidência não são mentoria, são um risco clínico disfarçado de opinião.


Tiago Cunha Reis, Ph.D., é doutorado em Sistemas de Bioengenharia pelo programa MIT-Portugal, tendo desenvolvido o seu doutoramento no Hammond Lab (MIT, EUA). Com foco nas necessidades de translação médica, o então engenheiro é agora aluno de Medicina. Reconhecido por sua paixão pela humanização da tecnologia em saúde e por melhorar ferramentas de diagnóstico e prognóstico, Tiago Cunha Reis possui um amplo histórico de prémios, publicações e nomeações internacionais em sociedades científicas europeias. Fomentador de conhecimento aplicado, fundou uma start-up focada em sensores e inteligência artificial, a qual expandiu internacionalmente antes de ser adquirida no final de 2022.

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