Opinião

Infortúnios da autoridade

João César das Neves, economista e professor catedrático

Um dos maiores problemas dos líderes hoje em dia é exercer autoridade. Ter poder é fácil, mas para inspirar os subordinados é preciso aquela dose de respeito e admiração que define a superioridade.

Ora isso é algo que a cultura contemporânea se mostra muito avessa a conceder. Vivemos num tempo intensamente dedicado à igualdade entre todos e, por isso, extremamente hostil ao destaque individual. Rebeldia, desobediência, inconformismo, são virtudes supremas.

A mundivisão atual foi solidamente forjada nos ataques contra a excelência da aristocracia e da “raça superior”, temas que suportaram a autoridade durante milénios, hoje feliz e irremediavelmente ultrapassados. Mas até outros valores, que antes sempre garantiram excelência, têm perdido lustre. Quem invoca sabedoria, conhecimentos, formação, dotes especiais, dinheiro, poder, facilmente é ridicularizado. Pelo contrário, são muitos os que se orgulham da ignorância, falta de estudos, pobreza e anonimato. No tempo dos anti-heróis é difícil exercer autoridade.

Existe, porém, um valor que, mais que todos, hoje garante geral aprovação: o estatuto de vítima. Quando alguém se apresenta como alvo de uma injustiça provocada por outrem, ganha prestígio imediato, sem que ninguém o possa contrariar. O seu sofrimento impõe aos demais a obrigação de socorro, apoio, solidariedade. Aliás, se alguém ignorar ou, pior, tentar refutar essa venerabilidade, é logo acusado de cumplicidade com a agressão, perdendo automaticamente a própria dignidade.

Claro que a condição de mártir sempre gozou de grande deferência, como se viu ao longo dos séculos. Mas nos nossos dias, na falta de outras respeitabilidades, o oprimido acaba por ser um dos poucos que ainda suscita influência. Por isso todos o invocam obsessivamente. A lista tradicional das vítimas (pobres, doentes, minorias, mulheres, idosos, crianças) foi de tal modo alargada que hoje se confunde com a dos grupos sociais: trabalhadores, consumidores, conservadores, progressistas, empresas, até simples cidadãos, todos se sentem com justas razões de queixa de alguém. A Oposição repetidamente faz alarde dos abusos do Governo, enquanto este denuncia inúmeras aleivosias cometidas contra si. São todos ofendidos.

Num tempo que acarinha as vítimas, a lista de ofensas estendeu-se de tal forma que hoje, por mero descuido, se podem cometer terríveis afrontas. Na era da liberdade são muitos os temas malditos e as palavras proibidas. O simples uso de pronomes gera urros de indignação e já se começa a falar de “microexpressões” como sendo causa de profundas injustiças. Existe mesmo, na sociedade da informação, uma indústria da vítima, incessantemente procurando o próximo tema de indignação, abandonando o da semana passada.

A vitimização é de tal forma eficiente que por vezes chega mesmo a servir como substituto da liderança. Muitos são os partidos e movimentos populares que, esquecendo que a sua finalidade é propor medidas úteis e eficazes, se limitam a condenar aquilo que está, acusando alguém de ser o culpado. Ter um inimigo comum que fique com as culpas do que sucede, é muito mais valioso do que possuir a solução para os males. A obsessão é de tal modo que muitos exibem a sua condição de vítima como um emblema, uma coroa, uma acusação a todo o mundo.

Aqui chegamos ao ponto mais dramático e contraditório desta cultura da vítima. Os atuais oprimidos já não são, como antigamente, sofredores, padecentes, humildes. Pelo contrário, são acusadores arrogantes, cheios de indignação e ânsia de vingança. Isto leva ao supremo paradoxo de, na sua maioria, as nossas vítimas se tornarem agressores. Todos os insultos, greves, contestações, revoltas, até todos os atos terroristas são praticados por quem diz estar a exercer justiça contra agravos antigos. Os mártires hoje são carrascos. Isso, claro, suscita novas vítimas, gerando uma espiral imparável que chega a dividir sociedades, radicalmente polarizadas.

Que podem os líderes fazer neste ambiente? Primeiro, tomar consciência da situação e, em especial, compreender que, precisamente por ser líder, se encontra do lado errado da condição. Muitos se vão considerar, justa ou injustamente, agredidos pelas decisões do chefe, pelo simples facto de ser chefe, ameaçando assim a sua autoridade.

Trata-se de uma nova dimensão, que épocas anteriores não conheciam, mas tem de ser acautelada pelos líderes de hoje em dia. É preciso conhecer a geografia dos ofendidos, acautelar os mecanismos de acusação, controlar a dinâmica da vitimização. Sem isso, inúmeros obstáculos podem surgir no caminho de um líder. Obstáculos tanto mais danosos quanto, em geral, pouco ou nada têm a ver com a realidade da tarefa entre mãos.

Mais importante, é preciso compreender a lógica profunda deste processo perverso, porque ele se liga a um elemento central da verdadeira autoridade. Aquilo que domina estas vítimas enfurecidas é a suprema arrogância de quem se acha com a razão absoluta. Por isso se transformam de oprimidos em agressores, multiplicando as vítimas. Isto ensina que um elemento da verdadeira autoridade tem de ser a humildade. Não a tacanhez tola de quem não sabe, mas a verdade de saber que, apesar de todos os esforços, é sempre mais o que nos escapa do que aquilo que dominamos. A certeza de que aqueles que se nos opõem, por mais injustos que sejam, têm razões válidas para fazer o que fazem e, mesmo quando os temos de combater, sempre os devemos respeitar.

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João César das Neves

João César das Neves

Licenciado e doutorado em Economia, João César das Neves é professor catedrático e presidente do Conselho Científico da Católica Lisbon School of Business & Economics, instituição onde, ao longo dos anos, já desempenhou vários cargos de gestão académica. Também possuiu um mestrado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa e um mestrado em Investigação Operacional e Engenharia de Sistemas pelo Instituto Superior Técnico. Ao longo do seu percurso profissional também esteve ligado à atividade política. Em 1990 foi assessor do... Ler Mais..

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