Opinião
Guerra e Paz: o dividendo perdido e a escolha impossível

Desde a queda do Muro de Berlim, a Europa viveu uma ilusão confortável. O “dividendo da paz” proporcionou décadas de crescimento económico e de reforço do Estado Social, enquanto os exércitos eram reduzidos a sombras do que tinham sido. No entanto, esse dividendo está a esgotar-se rapidamente.
O choque da guerra na Ucrânia, as ameaças híbridas vindas do Leste, a nova postura americana de distanciamento da Europa e da sua defesa e a crescente assertividade da China revelam uma dura realidade: a paz não foi conquistada para sempre, e a opção entre rearmamento ou bem-estar social está a tornar-se incontornável. Mas essa escolha não é apenas financeira – é também uma questão de mentalidade política.
Como convencer sociedades envelhecidas, que passaram a vida sob a proteção de uma ordem liberal, de que a paz pode ter um preço maior do que estavam dispostas a pagar? Como explicar a uma geração que cresceu sem memória da guerra que o mundo não funciona num estado natural de estabilidade, mas sim num equilíbrio frágil que exige constante vigilância?
O fim da ilusão de paz
A Guerra Fria terminou não com uma guerra, mas com um colapso – o da União Soviética. Para os europeus, isso não significou apenas a queda de um adversário estratégico, mas sim uma mudança fundamental na forma como encaravam a segurança. A partir da década de 1990, a guerra deixou de ser uma possibilidade eminente.
Os gastos militares foram reduzidos, as tropas diminuídas, os orçamentos de defesa cortados. Entre 1991 e 2020, os países da Europa Ocidental viram as suas despesas militares cair, em média, de 3% para cerca de 1,5% do PIB. A Alemanha, epicentro da Guerra Fria, reduziu os seus efetivos militares de 500.000 soldados para menos de 200.000 e países como a Bélgica praticamente abandonaram a ideia de um exército funcional.
Portugal também beneficiou amplamente do dividendo da paz. Desde os anos 90, os gastos militares portugueses caíram de cerca de 2,5% do PIB para apenas 1,4% em 2023, bem abaixo da meta de 2% estabelecida pela NATO. Entre 1995 e 2020, Portugal poupou aproximadamente 25 mil milhões de euros em despesas militares, valores que foram redirecionados sobretudo para saúde, educação e pensões de velhice. O Orçamento do Estado transferiu em 2023 mais de 5.000 milhões de euros para a Caixa Geral de Aposentações. Ora, o total de gastos em Defesa em 2024 foi apenas de 2.900 milhões de euros. A opção politica torna-se evidente nestes números.
Contudo, essa escolha tem um custo. As Forças Armadas portuguesas enfrentam hoje dificuldades graves em efetivos e equipamentos. O Exército conta com apenas 12 mil militares ativos, um número insuficiente para responder a crises prolongadas. A Força Aérea tem apenas 30 caças F-16 operacionais, enquanto a Marinha dispõe de apenas cinco fragatas em serviço e dois submarinos operacionais. Se Portugal quiser acompanhar o novo esforço europeu de rearmamento, será necessário um aumento substancial no orçamento de defesa, algo que inevitavelmente colocará pressão sobre o equilíbrio das contas públicas.
O raciocínio era simples: os Estados Unidos garantiriam a defesa da Europa através da NATO, e os recursos poderiam ser melhor investidos em saúde, educação e bem-estar. O crescimento económico foi notável, mas, ao fazê-lo, a Europa tornou-se dependente de uma ordem global que não controlava.
O despertar geopolítico
Essa ilusão desmoronou-se em 2014, quando a Rússia anexou a Crimeia. Se a invasão de um pedaço da Ucrânia não foi suficiente para um verdadeiro despertar, a invasão total do país em 2022 foi. A guerra na Ucrânia revelou que a dissuasão falhou e que a paz não é garantida apenas por tratados e sanções económicas. Desde então, os gastos militares europeus aumentaram drasticamente. A Polónia, outrora um país secundário em termos de defesa, está agora a caminho de ter o maior exército da União Europeia. A Alemanha lançou um fundo de 100 mil milhões de euros para modernizar as suas forças armadas. A União Europeia, outrora relutante em investir na defesa, agora discute um plano de rearmamento de 800 mil milhões de euros. Perante a incerteza aberta pela guerra na Ucrânia, é agora recorrente falar de forças de manutenção de paz europeias e de “autonomia estratégica” da Europa face aos EUA e mesmo à NATO.
A dificuldade da escolha
A política de defesa sempre esteve ligada à política social. Durante a Guerra Fria, os orçamentos militares eram altos, mas também havia um consenso de que o Estado deveria garantir segurança não só militar, mas também económica e social. Nos anos 1990 e 2000, a prioridade deslocou-se para o bem-estar. Agora, a Europa enfrenta um dilema brutal: como rearmar-se sem destruir o modelo social que os europeus passaram décadas a construir?
Esse dilema é especialmente difícil para sociedades envelhecidas. A Europa tem a população mais idosa do mundo, com uma média etária de 44 anos. Em países como Itália, Alemanha, Portugal e Espanha mais de 20% da população tem mais de 65 anos. Estas gerações cresceram num mundo onde a guerra era uma história do passado, uma anomalia superada. Para elas, a ideia de cortar pensões ou reduzir gastos com saúde para investir em tanques e mísseis é politicamente indigesta para não dizer inaceitável.
Por outro lado, as gerações mais jovens também não estão preparadas para esta mudança. Muitos cresceram a acreditar que a guerra é um erro humano, evitável através do diálogo e da diplomacia. A ideia de que um exército forte pode ser a melhor forma de garantir a paz parece-lhes até moralmente errada.
Em Portugal, a situação não é diferente. Com uma população envelhecida e uma tradição política inclinada para o pacifismo, qualquer aumento significativo dos gastos militares será um desafio político. Além disso, o país enfrenta uma pressão crescente para melhorar os serviços públicos, tornando ainda mais difícil justificar investimentos avultados em defesa.
O teste do futuro
A realidade, porém, não espera por debates internos. Enquanto a Europa discute, outras potências já tomaram decisões. A Rússia, que viu a dissolução da União Soviética como um desastre geopolítico, está claramente disposta a pagar o preço da guerra. A China, com ambições globais, já ultrapassou os Estados Unidos em algumas áreas militares. Estados Unidos que, hoje, não mais estão dispostos a assegurar as fronteiras e segurança da Europa.
O problema não é apenas a capacidade militar, mas a disposição para a usar. Se a Europa quiser garantir a sua própria segurança, terá de assumir uma postura ativa e determinada. A verdadeira questão não é apenas quanto gastar em defesa, mas sim se estamos dispostos a aceitar uma mudança fundamental na forma como encaramos o mundo. O dividendo da paz permitiu décadas de progresso e estabilidade, mas agora exige um preço.
A Europa pode continuar a fingir que a guerra é um problema distante, mas a história mostra que essa escolha raramente termina bem. Como disse Tucídides, “A paz é apenas um intervalo entre guerras”. A questão é se a Europa está disposta a aceitar essa verdade antes que seja tarde demais.