Entrevista/ “Good vibrations” – trazer a “sua” humanidade para o trabalho

As muitas análises e discussões que ainda mantemos sobre a adversativa ou máquinas ou pessoas relativamente às tendências de evolução do trabalho, resvalam por vezes ou para discursos extremados e intensamente apologéticos ou então para vaticínios tremendistas que veem os avanços das tecnologias como insidiosas mancomunações contra o futuro do trabalho humano.
Relativamente aos primeiros, assinalam-se atitudes como a representada nos argumentos de venda da Automation Anywhere para os executivos, citada por Kevin Roose, que afirma que “os nossos bots são melhores empregados de escritório dos que os vossos humanos” (Roose, 2021). Nesta linha, o mesmo autor refere no seu livro “Future Proof” (id) que, ao conversar com um executivo que participou numa das recentes reuniões do Fórum Económico Mundial, este lhe terá confidenciado que, ao contrário dos discursos oficiais, cheios de prédicas virtuosas em relação à dignidade do trabalho, o que se ouvia nos corredores era perguntarem-se uns aos outros “porque é que não podemos funcionar com um por cento das pessoas que temos?”. “Por outras palavras”, refere ainda o autor, “quando as câmaras e os microfones estavam desligados, estes executivos não falavam em ajudar os trabalhadores. Eles estavam a fantasiar acerca de se verem completamente livres deles”.
É compreensível que expressões e atitudes como estas possam de facto suscitar, nos mais céticos, fundados receios sobre as reais intenções de muitos responsáveis empresariais, que veem nos processos de digitalizações e na utilização da IA apenas, ou fundamentalmente, um meio para aliviar aqueles “custos fixos” de maior peso nos relatórios financeiros: as pessoas. E, de facto, tais responsáveis, com esta atitude de flagrante desconsideração do trabalho humano, parecem estar, na segunda década do seculo XXI, a cotejar uma velha afirmação, alegadamente atribuída a Henry Ford no início do século passado, que questionava “porque é que sempre que peço um par de mãos, elas vêm sempre com um cérebro acoplado?”. Numa deriva atual desta frase, que ilustra de forma extremada os paradigmas da Escola Clássica da Gestão relativamente ao papel dos trabalhadores nas fábricas dos inícios do século passado, muitos dos nossos empresários parecem hoje questionar, com mais criatividade, embora na mesma linha, “porque é que insistem em me trazer cérebros, se tenho algoritmos?”.
Esta questão, aqui tipificada como uma ideia que, embora camuflada com uma retórica pós-modernista, acaba por se traduzir na mesma atitude de grande desqualificação do trabalho humano, não tem hoje nenhuma pertinência ou justificação, numa época caracterizada por enormes avanços tecnológicos que têm trazido uma profunda mudança nos diferentes cenários e horizontes da nossa vida em sociedade.
Na verdade, e relativamente aos receios que vão crescendo de que os robots irão progressivamente “roubar” os empregos humanos, eles poderão, pelo contrário, trazer benefícios enormes não só na melhoria das condições de trabalho, como, e talvez principalmente, nos modos de trabalhar e no próprio conteúdo do trabalho, permitindo que as pessoas se libertem das tarefas mais pesadas e rotineiras que desgastam o potencial e minam a motivação. É justamente a possibilidade desta “libertação” que leva Shukla Mihir, CEO da Automation Anywhere, ainda citado por Roose no livro já referenciado, a afirmar que “a velha questão sobre os robots-irão eles tirar-nos os empregos? – está fundamentalmente incorreta”. “Na verdade”, refere o executivo, “em muitos casos os robots deviam tirar-nos os empregos, porque eles estão a desperdiçar o nosso potencial humano” (Roose, op.cit.).
E talvez esteja precisamente aqui a fundamental questão a equacionar nos próximos tempos: vamos assistir no futuro a os seres humanos verem progressivamente limitadas as suas faculdades e a serem “devorados” pelas máquinas? Ou, pelo contrário, vamos utilizar as novas ferramentas disponibilizadas pelas tecnologias para finalmente nos irmos libertando daquelas atividades que mais “ofendem” a nossa inteligência e nos reduzem à categoria de…robots?
Sejamos claros: durante séculos, o mundo do trabalho foi um imenso palco de limitação e até de degradação da mais pura e elementar humanidade dos seres humanos, tratados ora como escravos ora como meras “mãos” de trabalho, na canónica classificação dos paradigmas da Segunda Revolução Industrial. E até hoje, e apesar dos espantosos avanços no que diz respeito à maior dignificação nas relações de trabalho, ainda estamos longe de uma satisfatória generalização de práticas de gestão das pessoas que sejam realmente focalizadas em “evocar o melhor que existe em cada uma”.
No entanto, com as conquistas da “4.ª Revolução Industrial” a humanidade pode finalmente encontrar reais possibilidades para poder realizar as atividades mais duras e menos compensatórias sem ser à custa da exploração e da violência dos sacrifícios humanos.
Os robots podem vir a ser os novos “escravos” da civilização; mas com a especial particularidade de não sofrerem com isso.
O grande desafio do séc. XXI é promover uma extensa e profunda reconcepção do que é o trabalho como um espaço para o qual as pessoas tragam a sua mais profunda humanidade; um espaço com significado, com propósito, no qual cada um possa, e se sinta estimulado, a exprimir a sua mais genuína pessoalidade.
A superação deste desafio não será de todo possível se nos limitarmos a multiplicar os algoritmos e a deixar que uma boa parte das nossas vidas passe a ser dominada por eles, como já acontece aliás em certos domínios. Como fisiologicamente o nosso cérebro funciona num registo económico, de procura permanente de poupança de energia, é consolador para nós termos aplicações que rapidamente nos dão as respostas que pretendemos, ou até as antecipam, sem nos “esforçarmos” muito. O problema é que, justamente devido a essa procura de poupança de energia, o cérebro assume muito rapidamente as soluções mais fáceis, que se transformam em hábitos que, uma vez adquiridos, são difíceis de mudar. E quanto mais funcionamos através de hábitos e nos instalamos no conforto das rotinas, mais o nosso cérebro vai perdendo vivacidade e flexibilidade, limitando subjetivamente a capacidade de mudar e de reinventar o nosso potencial.
Se não estivermos atentos a isto, podemos facilmente correr o risco de deixarmos de dominar a tecnologia e passarmos a ser dominados por ela. E se a tecnologia dominar, sem a mediação crítica e a liderança da inteligência humana, aí sim poderemos ver os nossos empregos realmente ameaçados; e a culpa será toda nossa.
A construção de um futuro do trabalho que seja realmente promissor deverá então passar por uma efetiva valorização dos contributos humanos, que passa por fazer prevalecer as características mais genuínas e mais especificamente humanas, que serão aquelas que mais dificilmente poderão ser replicadas pelas máquinas.
Há que criar tanto uma nova conceção como um novo espaço de trabalho.
Um espaço onde o constrangimento dê lugar ao entusiasmo, onde o alheamento dê lugar ao compromisso e onde os líderes, em vez de se limitarem a ser meros “chefes algorítmicos” e transmissores de informação, construam narrativas que façam as pessoas “sentir coisas” e criem espaços propiciadores de “good vibrations” (op.cit).
Um espaço, em suma, onde as máquinas estejam lá não para nos ameaçar, não para que o nosso cérebro resvale para o funcionamento perverso do “modo de repouso”, mas para nos dar mais e melhor tempo para prosseguirmos no caminho difícil, mas imparável, da conquista da nossa própria grandeza como humanos.
Referências
ROOSE, K. (2021). Future Proof – 9 Regras para os Humanos na Era da Automação. Amadora: 2021 Vogais uma chancela da 20/20 Editor.
*Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas