Opinião
Do Estado a que chegámos ao Estado que precisamos

Nos últimos seis meses, dois episódios vieram a público sobre a (in)capacidade do nosso Estado inovar. Nos seus processos e, essencialmente, nos resultados – os bens e serviços públicos que apresenta, como é sua obrigação, à sociedade portuguesa.
Os protagonistas foram, em ambos os casos, idênticos – de um lado, gestores portugueses de grandes empresas tecnológicas, de raiz nacional (já unicórnios), do outro, responsáveis políticos e gestores públicos. No primeiro caso, o CEO da Feedzai descreveu publicamente como foi convidado para participar numa sessão à porta fechada com membros do governo sobre a aplicação de IA e GenAI ao mercado em geral e à máquina administrativa do Estado.
Descontando o facto de a reunião ter começado com mais de meia hora de atraso (questão cultural, que daria um bom estudo), e reputando, como positiva, a abertura que encontrou nos interlocutores, confessou ter saído desapontado da reunião. Segundo descreve, não tanto com os governantes, que pareciam genuinamente interessados, mas com os chamados “especialistas” presentes, que só pediam a criação de mais agências, institutos e distribuição de fundos do estado para benefício próprio.
No segundo caso, mais mediático, a realização de conversações entre a Sword Health e o Ministério da Saúde para a implementação de um projeto-piloto que previa a aplicação de de IA na atividade de emergência médica. Estas não chegaram, infelizmente, a bom porto. O CEO da empresa contou que tinha tentado instalar, gratuitamente, uma solução de IA no atendimento do INEM e justificou o fracasso da iniciativa porque o sistema do instituto era “obsoleto e frágil”. E acrescenta a sua perplexidade com a incapacidade dos técnicos do instituto e a existência de “empresas que parasitam o sistema”, algo preocupante dado estarmos perante um sistema crítico, essencial para salvar vidas.
As duas situações podem não surpreender quem conheça de perto a máquina do Estado, suas características, modos de pensar e agir e processos de tomada de decisões. Não entrando na minúcia dos detalhes factuais ou técnicos, ambos os casos espelham os (enormes) obstáculos que enfrenta qualquer pessoa ou entidade que, a partir “de dentro” como “de fora”, tente transformar algo no Estado e na Administração Pública: a aversão genuína à mudança (nomeadamente, nos níveis intermédios), o arcaísmo de processos, tecnologias e modelos de gestão, a reverência à hierarquia e aos orçamentos (a receita é sempre criar novas entidades, lugares de chefia e despejar dinheiro para cima dos problemas) e a ausência generalizada de accountability. Cada um defende a sua “coutada” e está mais preocupado em cumprir os seus processos e procedimentos do que em assegurar um resultado ou impacto social.
Quem perceba um pouco de análise de sistemas percebe facilmente que as entropias estão nas “bases” do próprio sistema. Em concreto, no modo como atrai, integra, incentiva ou promove as suas pessoas, nomeadamente os seus líderes. Qualquer ministro, secretário de estado ou mesmo gestor público pode vir com as melhores intenções do mundo que, salvo raras exceções, vê a sua agenda de transformação e inovação ser bloqueada, mitigada, adiada ou esquecida pela complexidade e disfuncionalidades de um sistema orientado para si próprio.
A reforma do Estado, se em algum abençoado dia acontecer, vai ter de fazer muito mais que integrar ou extinguir entidades. Ou mudar organigramas. Terá, para ser bem-sucedida, de promover novos modelos de lideranças e novas culturas. Terá de capacitar as pessoas para assumir iniciativas e contribuir diretamente para a tomada de decisões. Com maior colaboração, a agilidade e um maior sentido de “ownership”. E com incentivos claros ao nível da mudança e dos resultados pretendidos. O estado a que chegámos é incompatível com o Estado que precisamos, para os desafios desta década disruptiva em que vivemos.