Opinião
Digital: cultura (remota) de empresa

A transformação digital, mais ou menos acelerada, ocorrida nestes últimos anos no mercado empresarial acarretou também mudanças na forma como empresas e colaboradores encaram a relação entre si e a vida profissional. Vários casos vi de pessoas radicalmente céticas ao teletrabalho, mudarem para fervorosos defensores de trabalho remoto.
Empiricamente, arrisco-me a afirmar que se tornou mais evidente que quem trabalhava, continuou a trabalhar (quiçá ainda mais), e que quem já não era o mais produtivo manteve-se ou até diminuiu a sua produtividade. Na globalidade mudou concetualmente pouco em termos de resultado final de produtividade depois de algumas adaptações de todos os envolvidos, isto é, tudo estabilizou no curto prazo, em termos de resultados finais.
O que mudou? Os colaboradores ficaram despertos para os benefícios de quem trabalha desde sua casa, em particular em termos de equilíbrio mais facilitado para conciliar o trabalho com a família. As empresas entenderam melhor o benefício de um modelo de gestão de trabalho mais por objetivos, ao invés do tradicional “pica ponto” das 9h às 18h. Ou seja, colaboradores e empresas entenderam rapidamente os principais benefícios do trabalho remoto.
Mas se há benefícios, onde estão os riscos? Simples: cultura de empresa.
Os benefícios indicados são alcançáveis a curto prazo, mas com um risco elevado de desagregação da empresa no médio e longo prazo, caso se mantenham os mesmos modelos de gestão de empresa, não só ao nível das suas operações, mas principalmente ao nível dos recursos humanos.
As pessoas, gostem mais ou gostem menos, são animais sociais, ou seja, são seres de relações e ligações. Os modelos de trabalho remoto, sem alterações de gestão de políticas de recursos humanos e de identificação clara das tarefas que numa organização fazem sentido serem em modelo remoto, vão criar disrupções culturais nas empresas e distâncias subtis, no início, e profundas, após alguns meses ou anos, no final de um caminho de relações entre a empresa e o colaborador, tal como entre os vários colaboradores e as várias equipas, com consequências diretas sobre a qualidade de serviço prestado aos clientes. As pessoas não conseguem (ainda) ser máquinas, pelo que se não tiverem todas a mesma cultura da empresa, ou seja, não estiverem alinhadas para os mesmos drivers, as divergências e as formas de trabalho e entrega aumentarão.
O simples não ligar a câmara na reunião (acredite que conheço empresas que têm esta política/cultura interna!); quando há uma discussão de um tema, essa discussão eternizar-se em centenas de mensagens via chat, ao invés de se fazer uma simples reunião (mesmo que) online, são simples sintomas de que algo não está bem naquela organização, a começar nas lideranças de topo e a acabar nas lideranças intermédias.
Estes exemplos são indicadores claros de que não houve um necessário enquadramento contínuo a esta nova forma de trabalho, a qual é uma nova realidade que veio para ficar. E veio para ficar como uma variável alternativa real e complementar aos modelos convencionais, quando até há dois ou três anos, era fundamentalmente uma mera suposição.
A realidade mudou. O regresso total ao passado e aos modelos convencionais agora serão também contraproducentes. Até porque já há muitos casos de despedimentos por parte de colaboradores, porque a empresa assumiu a política 100% presencial.
O mundo mudou. O mercado também. E saber gerir num modelo (mais ou menos) híbrido, adaptado à realidade da empresa, garantindo culturas essenciais de tribos, é crucial. Para isso, há que saber também que a forma de gerir recursos humanos e o seu talento também tem de mudar. E, isso, só é possível se e só se os líderes estiverem disponíveis a aprender o que é gerir num novo mundo mais digital nas operações e nas relações, sem se perder a cultura organizacional essencial para a sustentabilidade da organização.