Opinião
Das batatas à I.A.: ser versátil ao invés de ser perfeito
Vivemos num mundo que tende a premiar o especialista. Ou o que é perfeito. Veja-se a fruta. Não pode ter manchas nem marcas. Tem de ser perfeita. A desgraça que seria se o mesmo chegasse às batatas em sacos antes de serem fritas (já nesse ponto de servir tudo se iguala: quem não procura a batata perfeita no prato?).
Mas esta procura pela perfeição começa desde cedo. Vamos sendo levados a escolher uma área, um caminho, um conjunto de competências específicas que nos tornem “o melhor” nalguma coisa (já de si específica).
Mas será que num tempo de mudanças rápidas e problemas cada vez mais complexos ser um ultra especialista ajuda? No fundo como provoca à reflexão o norte-americano David Epstein no seu livro “Range”, onde mostra como profissionais versáteis, que exploram diferentes áreas antes de se fixarem em algo, acabam por estar mais bem preparados para inovar e resolver problemas inesperados.
Pensando em Darwin e em frutas e batatas e também em I.A., penso que se isto já era válido no passado, é ainda mais verdadeiro no presente. Sobretudo quando falamos de gestão na era da inteligência artificial.
A monocultura como risco
A história está cheia de exemplos do perigo da monocultura. A Irlanda do século XIX, dependente da batata, mergulhou na fome quando a praga destruiu as colheitas. O mesmo princípio aplica-se à economia nos dias de hoje: países que dependem de um único setor, salvo raras exceções como os petrostados afortunados pelas fundas e quase infinitas jazidas, tornam-se vulneráveis. A diversidade, pelo contrário, abre caminho à resiliência e à prosperidade.
Na biologia, Darwin já tinha intuído o mesmo: espécies com maior diversidade têm mais hipóteses de sobreviver a mudanças ambientais. Algumas variantes podem não sobreviver, mas outras terão a característica certa para continuar a evolução. A diversidade é um seguro de vida.
Gutenberg e a magia da combinação
Um dos exemplos mais ilustrativos vem do século XV. Johannes Gutenberg, antes de inventar a imprensa, era ourives. Em Mainz, cidade fértil em atividades comerciais, tinha contacto com artesãos do vinho. Com isso e essa combinação improvável da sua experiência como metalúrgico e com a tecnologia das prensas vinícolas deu origem à revolução da impressão, conseguindo a máquina que revolucionaria o acesso ao conhecimento e à ampliação do pensamento crítico pela Europa e mundo fora.
Se Gutenberg tivesse sido apenas “o melhor ourives” dificilmente teria criado algo tão transformador.
Da biologia à gestão: a força da versatilidade
O mundo da gestão, tal como o da biologia, enfrenta contextos em constante mutação. Crises económicas, disrupções tecnológicas, choques geopolíticos ou mudanças culturais exigem dos líderes mais do que uma única competência. Exigem a capacidade de navegar entre áreas distintas: estratégia, psicologia, marketing, tecnologia, finanças, sociologia…
Um gestor que apenas domina uma especialização pode sentir-se seguro em períodos estáveis, mas verá a sua visão limitada perante problemas complexos. Pelo contrário, quem cultiva a versatilidade dispõe de um arsenal mais vasto de analogias, referências e métodos para lidar com o inesperado.
É o chamado pensamento de canivete-suíço, que ganha dimensão e mais ferramentas no lote, à medida da experiência e da idade.
A Inteligência Artificial como espelho desta lógica
A chegada da IA só reforça este meu argumento. Ao contrário do que se pensa, conduzir bem a IA não significa ser o programador mais especializado em algoritmos. Significa ter capacidade de formular boas perguntas, compreender contextos variados, traduzir problemas humanos em dados e resultados úteis. E até na engenharia dos prompts ter o pensamento divergente para combinar caminhos improváveis e sugerir nesse mesmo prompt a fuga à lógica mediana que será sempre o caminho aprendido pela máquina.
É aqui que a versatilidade se torna decisiva:
- O especialista estreito pode construir modelos sofisticados, mas pode não reconhecer aplicações práticas fora do seu domínio.
- O profissional versátil, com capacidades adquiridas em várias áreas, consegue ver como o mesmo modelo se aplica ao marketing, logística, saúde ou finanças, etc. É ele quem faz a ponte entre a máquina e a realidade.
A IA não substitui a curiosidade humana. Pelo contrário, amplifica o valor daqueles que exploram diferentes territórios do conhecimento.
A gestão com I.A. no futuro
O mundo empresarial e social tende a valorizar o “artífice genial”, aquele que domina ao milímetro uma competência. São inúmeros os filmes que adoramos onde um Beethoven alcança o génio. Mas, na prática, as maiores inovações surgem quase sempre da capacidade de cruzar campos diferentes.
O futuro pertence menos ao especialista fechado na sua torre e mais ao generalista semi-especializado que sabe dialogar com múltiplos mundos.
A gestão, em particular, exige este espírito. Problemas complexos raramente têm soluções lineares. Precisam de abordagens híbridas, criativas, multidisciplinares. A liderança eficaz não é a do monocultivo da batata, mas a da floresta: múltipla, interligada, adaptável, com inúmeras espécies vindas dos quatro cantos que aprendemos ali se conseguiam combinar, não num tom monocromático de verde, mas em inúmeros matizes, que se revelam ainda mais no outono com as suas variações excêntricas, do verde, ao castanho, ao laranja, ao amarelo e pelo espectro de cores fora.
Tal como Darwin descreveu na natureza, tal como Gutenberg mostrou na inovação da imprensa, e tal como a IA nos obriga hoje a perceber, o segredo não está em ser “o melhor em apenas uma coisa”, mas em ser suficientemente versátil para combinar saberes, ligar áreas que por vezes estão nos antípodas e encontrar por aí novas soluções a testar e validar.
Na era da inteligência artificial a amplitude é poder.








