Opinião

Associativismo faz toda a diferença na agricultura

Eugénio Viassa Monteiro, professor da AESE-Business School*

As associações de agricultores têm clara importância no desenvolvimento do setor, canalizando maiores benefícios para os seus protagonistas. Exemplos bem sucedidos sempre apontam para a qualidade e integridade dos seus dirigentes, em particular, da pessoa do vértice.

A importância do dirigente de topo…
É o mais visível e fixa as políticas e o procedimento. Ninguém espera que seja um génio, mas que seja honesto, com a ideia clara de beneficiar os associados, capaz de pensar e pôr outros a pensar, de realizar as ideias com prudência, criando um ambiente de difusão dos conhecimentos na organização. Para ser consistente no que diz e faz, tem de ser uma pessoa de valores e com virtudes para ser tenaz no essencial e garantir a continuidade da instituição.

Ao pensar em associativismo, vem à ideia o Dr. Verguese Kurien, da cooperativa de comercialização do leite de Anand, com a marca AMUL, e a sua expansão gradual, originando uma miríade de cooperativas de aldeia que se aglutinam na União de Cooperativas do Distrito. Por sua vez, as Uniões agrupam-se na Federação das Uniões. É um modelo que resultou muito bem, crescendo harmonicamente, assimilando as políticas de funcionamento. Conta hoje com 3,6 milhões de cooperantes e o seu volume de negócios foi de $7,2 bn, em 2020.

…A capacidade de organizar e conseguir resultados
Tomarei como referência a cooperativa de Anand. O Dr. Kurien teve a preocupação de dar o melhor possível ao agricultor, que trazia todas as manhãs e tardes o leite de vaca ou de búfala para a cooperativa. Assim:

– Em geral, entre 75 a 80 % do preço do leite no mercado seria o valor a pagar pelo leite entregue. Na ausência de uma cooperativa, o lavrador, sem capacidade de preservar o leite e frigorífico, tinha de o vender ao intermediário, ao preço que ele fixasse. Em geral, cerca de 45% do valor de venda no mercado, claramente mais baixo do que o da cooperativa.

– O leite é pago no ato da entrega, com base no volume e densidade de gorduras. O leite de búfala tem mais gorduras e é mais bem pago. Receber o dinheiro no momento da transação é um alívio para o lavrador pobre. Ele pode, ainda na sede da cooperativa, adquirir produtos para alimentar o gado e outros para a família.

– A cooperativa recebe todo o leite trazido. Na época das chuvas, os animais produzem mais leite (cerca de 2,5 vezes) pelo pasto abundante que encontram. Mesmo assim, nunca se rejeita por excesso de produção.

A diferença entre o valor a pagar e o preço de venda no mercado é para cobrir todos os custos da logística e das operações: o leite é mantido no frigorífico na cooperativa, transportado para o centro de tratamento (comum a várias cooperativas da União), onde se separam as gorduras, que vão para a linha de produção de todos os derivados, como a manteiga, ghee, queijo, paneer, chocolataria, baby foods, gelados, mozarella, yogurths, shrikant, etc.

Retirada parte das gorduras, o leite é pasteurizado e empacotado. Toda a gama de produtos é distribuída pelas cooperativas e outros pontos de venda da AMUL. A diferença de 25% a 20% deve ser administrada com a maior eficiência para cobrir as despesas citadas e as de marketing, de armazenamento, de I&D, de assistência veterinária, etc.

Poderia haver a tentação de pôr o preço no mercado alto. Mas há muitos competidores e, além disso, um preço, visto como elevado retrai o consumo. Importa contar com este equilíbrio.

Os valores do dirigente e o impacto nas pessoas
Uma instituição destas é observada com espírito crítico pelos agricultores. É preciso explicar tudo e bem, sobre os atos de gestão, para que não fiquem dúvidas, que poderiam transformar-se em suspeição. As explicações atempadas e a forma habitual de agir, vendo o benefício do agricultor, consolida a visão do dirigente como promotor do bem da cooperativa. Isso gera autoridade e a confiança depositada acaba por ser indiscutível, bem como o seu papel na organização.

Como se intui facilmente, essa autoridade baseada na exemplaridade penetra no ambiente e todos quantos trabalham com ele acabam por absorver os seus valores.

É mais simples ampliar uma instituição existente, com novas cooperativas e as boas práticas assumidas, do que criar uma nova organização que exige muita atenção na tomada de cada decisão.

A disseminação da ideia e das práticas. A expansão das cooperativas
Na AMUL, promove-se o debate de temas que respeitam aos cooperantes, habitualmente, na cooperativa ou na sede da União, com os representantes eleitos. Isso é deveras formativo e os cooperantes respondem pelas decisões que tomam. Em primeiro lugar, sobre a atividade de cada cooperante, as exigências de qualidade, as normas de higiene, o aumento da produção e a inseminação artificial, a alimentação do gado, doenças e assistência veterinária, etc. E também sobre os problemas gerais que afetam a cooperativa, relacionadas com o mercado.

Todos recebem um Boletim que veicula ideias úteis aos agricultores, em particular os produtos a cultivar nas suas pequenas propriedades/hortas (os que se vendem melhor…), e muitos aspetos relacionados com a elevação do nível cultural dos associados e famílias (a importância de que os filhos estejam a estudar, etc.).

Como reproduzir estas ideias noutros setores e países?
Pode ser interessante que um empresário de uma atividade agrícola (produção de fruta e sua comercialização, por exemplo) que já esteja a trabalhar, possa ampliar a sua esfera de ação, associando novos produtores e prestando-lhes um serviço de comercialização. Haveria que estudar a forma societária futura, para que de facto todos fiquem a beneficiar.

Também pessoas com um perfil de empreendedor e desejosas de aglutinar outros que trabalham no setor, criando vantagens para eles, podem catalizar a nova atividade associativa.

Porque importa o associativismo?
– Para obter melhores preços na negociação com entidades que compram e vendem em quantidade. É o caso das cadeias de super e hipermercados, com tendência para ficarem com a parte de leão e pouco deixarem a um produtor individual. A união sempre significa força negocial e capacidade de tomar medidas que sejam um impedimento para serem exploradas;
– Possibilita R&D feita na Associação, ou em outsourcing, para melhoria da produtividade e da qualidade, resistindo melhor aos fatores naturais negativos;
– Dá mais possibilidades de estar presente em feiras e exposições e de tomar parte na exportação, algo difícil para um produtor individual;
– A capacidade reivindicativa, de muitos tipos de apoios do Estado, tem mais força quando se representa um grande grupo de agricultores. Os seus problemas e pontos de vista encontram melhor acolhimento;
– Dá possibilidade de difundir experiências e as melhores práticas entre os associados.

Hoje há a tendência para criar associações de produtores de cada um dos tipos de fruta, de hortaliças, de flores, etc., pelos benefícios que daí se colhem.

Importa promover o espírito associativo e, sobretudo, encontrar pessoas que encarnem os interesses dos agricultores, sabendo do negócio, para o fazer prosperar.

Cito um comentário do então Primeiro Ministro Lal Bhadur Shastri, da Índia, quando em 1964 foi visitar a Cooperativa AMUL: “No segundo e terceiro planos quinquenais, construímos muitas cooperativas de leite, todas da posse e dirigidas pelo Governo. E todas, um desastre indisfarçável, com perdas. Ouvi que a AMUL e os seus produtos são um sucesso no país, com elevada taxa de crescimento anual. Quero saber porque esta é um sucesso, quando as outras todas falharam”[1] comentou Shastri a V. Kurien.

Kurien explicou que a Cooperativa era dos agricultores, que eram os donos e mandavam em Anand e ele era apenas um assalariado. Shastri, impressionado, pediu-lhe para replicar o modelo noutros Estados, coisa que Kurien fez com todo o entusiasmo, em vários deles. “O Governo dá um ‘cheque em branco’ e criará toda a estrutura e organismos que indicar. Replique for favor Anand pela Índia fora. Faça disto a sua missão e qualquer coisa de que necessite, o Governo providenciará”.

A consequência da extensão e, mais tarde a criação de outras cooperativas inspiradas no modelo Anand, é que hoje há em toda a Índia mais de 100 milhões de famílias que têm uma segunda fonte de receitas da sua colaboração com a cooperativa local de comercialização do leite.

*Professor da AESE-Business School, do IIM Rohtak (Índia) e autor do livro “O Despertar da Índia”

[1] I too have a dream, Verguese Kuirien, pgs 98-100

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Eugénio Viassa Monteiro

Eugénio Viassa Monteiro

Eugénio Viassa Monteiro, cofundador e professor da AESE, é Visiting Professor da IESE-Universidad de Navarra, Espanha, do Instituto Internacional San Telmo, Seville, Espanha, e do Instituto Internacional Bravo Murillo, Ilhas Canárias, Espanha. É autor do livro “O Despertar da India”, publicado em português, espanhol e inglês. Foi diretor-geral e vice-presidente da AESE (1980 – 1997), onde teve diversas responsabilidades. Foi presidente da AAPI-Associação de Amizade Portugal-India e faz parte da atual administração. É editor do ‘Newsletter’ sobre temas da Índia,... Ler Mais..

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