Opinião

A profissão vai deixar de nos definir. E ainda bem.

Ricardo Tomé, diretor-coordenador da Media Capital Digital

Na recente viagem ao Japão vi de perto a realidade outrora só de boca a boca ou em séries de Tv ou filmes, do especialista (ou direi mesmo do artífice) que depois de décadas aprimorou a técnica até ser mestre. Ele é cozinheiro, artesão, professor, vendedor… É, e sempre foi. Ele é, em muito, aquilo que faz. E a sua identidade mistura-se na identidade da profissão.

Com mais uma disrupção a ocorrer com a I.A., a velocidade da transformação digital volta a colocar sob reflexão quem seremos, enquanto profissionais. Irá a nossa profissão ser abalroada? Teremos de mudar? Como e quando? O que será de nós?

O “somos o que fazemos” de uma identidade da carreira tornou-se demasiado comum. O título tornou-se destino, o emprego tornou-se o primeiro parágrafo da nossa biografia.

Apanhei na preparação deste artigo a frase de Ulrich Beck de que vivemos uma “exceção histórica” mascarada de normalidade. Desde o pós-guerra do século passado: o mundo sólido que sustentava “o médico”, “o engenheiro”, “o advogado” vai-se tornando menos sólido.

Mas veio a transformação digital e hoje encimada pela inteligência artificial acelera o metabolismo. O que será das profissões de colarinho branco, se substituídas pelos chips?

Um: já não é a profissão que define a pessoa. Dois: serão as tarefas que definem o trabalho. E as tarefas são precisamente o que a IA automatiza.

Olhemos para Carl Frey e Michael Osborne e o seu Estudo (Oxford, 2013), que mostrou que “não são as pessoas que estão em risco, são as tarefas que desempenham”. A profissão é uma abstração. O trabalho real é granular, decomponível e cada vez mais fragmentado. A economia acelera de novo, veloz e imprevisível aqui, previsível ali, a cada nova versão de software de uma BigTech que logo mexe com tudo e com todos.

Prender a nossa identidade a um título profissional é como confiar uma password a um post-it.

O erro contemporâneo mais repetido, de acreditar que tudo se resume a “skills”, começa (finalmente) a estar enterrado. Nos sistemas educativos esse apogeu já deu lugar à combinação com conhecimentos (outrora os que tinham sido demitidos de papel de relevo). É a combinação de ambos que se advoga. E bem, a meu ver.

Skills sem conhecimento são ferramentas sem propósito. A economia digital exige muito mais: literacia científica, matemática, filosófica, literária, pensamento crítico, lógico, capacidade de formular problemas antes de os resolver.. etc..

A I.A. não nos pede velocidade, pede sobretudo horizontalidade, amplitude, interdisciplinaridade, pensamento sistémico.

Para além disso, não somos Diretores nem Gestores, mas vamos sendo. É uma jornada. Um gerúndio. A psicóloga Herminia Ibarra em Working Identity refere isso mesmo, que as nossas identidades profissionais muitas das vezes nem sequer as escolhemos, vão ocorrendo e construindo-se: “vamos sendo”.

As nossas carreiras profissionais muitas das vezes vão-se descobrindo pela experimentação e não por decisões definitivas prévias.

Continuaremos a ter alguns hiper-especialistas. Mas eu talvez sugerisse apostar mais na combinação improvável e multifacetada como um caminho para um desempenho acima da média, e flexibilidade para pivotar a jornada profissional, do que ultra-especializar. Ou voltando ao supra-citado Peter Drucker: o caminho são os “portefólios de conhecimento”.

O perigo (e ele existe!) está depois naquilo que Byung-Chul Han refere no seu livro The Burnout Society (2010): “A sociedade do desempenho transforma-nos em projetos eternamente inacabados.” Este “sempre mais” coloca o foco não na conclusão de tarefas mas na maximização contínua do potencial. O que pode levar a uma mentalidade de projeto interminável, onde nunca alcançamos um estado final de satisfação ou “obra concluída”. Estamos sempre a fazer networking, a aprender uma nova competência, a otimizar a saúde ou a melhorar a imagem…

Será assim?

Ou será isso pior?

Dependerá do ajuste que cada um faça para si.

No final, esta revolução não nos empurra para a irrelevância, mas para uma nova liberdade: deixar de ser apenas algo para ser capaz de várias coisas. A alguns fará sentido ser o ultra-especialista nos 0.01% que assim conseguiu, determinado, perdurar nesse rumo finito.

Para os demais, não precisamos de uma única carreira para definir quem somos e poderemos colocar a profissão como um anexo, nunca morto, mas secundário. Seremos mais o ser humano que aprende, desaprende e se transforma.

A Joana-gestora-disto-ou-daquilo, ou o João-diretor-de-não sei-o-quê, poderão finalmente dar lugar à Joana e ao João que mais sabem resolver problemas, ou lançar ideias, ou gerir equipas, ou vender, ou motivar os outros, ou pensar à frente.

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Ricardo Tomé

Ricardo Tomé

Ricardo Tomé é Diretor-Coordenador da Media Capital Digital, empresa do grupo que gere a estratégia e operação interativa para as várias marcas – TVI, TVI24, IOL, MaisFutebol, AutoPortal, etc. – com foco especial na área mobile (Rising Star, MasterChef, SecretStory) e Over-The-Top (TVI Player), bem como ativação de conteúdos multiscreen em todas as plataformas e realizando igualmente a ponte com o grupo PRISA nas várias parcerias: Google & YouTube, Facebook, Twitter, Endemol, Shine, entre outras. Foi, até 2013, coordenador da... Ler Mais..

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