Entrevista/ “A nossa mente e as nossas salas de estar estão a tornar-se na nova superfície de ataque”

Marco Magnano, cofundador da XR Safety Initative (XRSI)

“Numa era em que as pessoas muitas vezes estão fisicamente presas, as tecnologias imersivas podem ser uma grande oportunidade para todos, mesmo para os mais desfavorecidos”, afirmou Marco Magnano, cofundador da XRSI, organização mundial sem fins lucrativos que promove a privacidade, a segurança e a ética nos ambientes imersivos, em entrevista ao Link To Leaders.

As realidades alternativas há muito que não são ficção científica. São uma tendência cada vez maior na tecnologia e as empresas também já começam a olhar para elas. No entanto, à medida que aumenta a sua utilização e proliferação, surgem também mais preocupações relacionadas com a segurança e a privacidade.  A XRSI, também conhecida como XR Safety Initiative (XRSI), foi criada em 2019, nos EUA, para contribuir para a causa da segurança cibernética.

Marco Maganano, cofundador desta organização sem fins lucrativos, com sede nos EUA, fala ao Link To Leaders deste iniciativa global que pretende ajudar a construir experiências seguras e inclusivas para que todos os envolvidos nas tecnologias XR (Extended Reality) – que englobam todas as tecnologias que se possam considerar como realidade virtual, realidade aumentada e realidade mista – possam tomar decisões seguras, mas acertadas.

Como é que um jornalista se passa a interessar pelo mundo das tecnologias XR (Extended Reality)?
A minha jornada profissional sempre esteve na linha ténue entre o jornalismo e o desenvolvimento ou jornalismo e as tecnologias emergentes. Na verdade, há muito mais em comum do que se possa imaginar: um jornalista é uma pessoa que precisa constantemente de explorar novas linguagens e novas maneiras de contar histórias, relatar o que aconteceu e chegar ao seu público. Então, quando uma pessoa com a minha experiência conhece as tecnologias imersivas, é inevitável que veja imediatamente o potencial para contar histórias, criar consciência e acrescentar algumas dimensões à forma como as pessoas interagem com o que está a acontecer no mundo.

Deixe-me dar um exemplo: digamos que eu queira falar sobre o desperdício de alimentos, que é um fator importante para a crise climática. Posso descrever o problema e produzir belos gráficos para explicar a dimensão do desafio. Mas se eu pudesse simplesmente mostrar a quantidade de comida que, em média, uma pessoa de Lisboa deita fora todos os anos em comparação com os edifícios à sua volta? É aí que o jornalismo e a tecnologias Extended Reality (XR) podem começar a trabalhar rapidamente em conjunto. Ainda não chegamos lá em termos de adoção em massa, mas vivemos tempos emocionantes e cheios de potencial para a experimentação.

Como surgiu a XR Safety Initiative (XRSI)?
Foi criada em 2019 como um esforço internacional, tendo sede na Baía de São Francisco, a XR Safety Initiative (XRSI) é uma Organização de Desenvolvimento de Padrões (SDO) sem fins lucrativos que promove a privacidade, a segurança e a ética em ambientes imersivos – ou realidades mistas. A missão da XRSI é ajudar a construir experiências seguras e inclusivas, capacitando fabricantes, programadores, investidores e partes interessadas de XR a tomar decisões informadas e pragmáticas para o melhor interesse da comunidade.

Como? Descobrindo novos riscos de segurança cibernética, privacidade e éticos e propondo novas soluções em potencial para mitigá-los. A XRSI, sendo o primeiro esforço global deste tipo, está exclusivamente posicionada para disponibilizar informações práticas e imparciais sobre riscos e oportunidades relacionados com as tecnologias XR e computação espacial a indivíduos, empresas, universidades, agências governamentais e outras organizações em todo o mundo.

“Oficialmente, iniciámos as nossas operações na Baía de São Francisco, onde a nossa sede global está localizada, e, no outono de 2021, concluímos a criação da XR Safety Initiative Europe, a nossa primeira filial não americana”.

Onde estão presentes?
Oficialmente, iniciámos as nossas operações na Baía de São Francisco, onde a nossa sede global está localizada, e, no outono de 2021, concluímos a criação da XR Safety Initiative Europe, a nossa primeira filial não americana. Eu disse “oficialmente” porque somos nómadas nativamente digitais e temos assessores do Japão à Califórnia, passando pela Austrália, Índia, Quénia, Emirados, Europa e América do Sul. Numa era em que as pessoas muitas vezes estão fisicamente presas, as tecnologias imersivas podem ser uma grande oportunidade para todos, mesmo para os mais desfavorecidos.

Que tipo de iniciativas têm lançado?
Bem, uma lista abrangente é impossível de fazer, mas deixe-me tentar enumerar algumas atividades: a nossa primeira atividade, durante o verão de 2019, foi um grupo de trabalho público focado na criação de uma linguagem e taxonomia partilhadas para a indústria de XR, que resultou na nossa primeira publicação e no primeiro reconhecimento como Organização de Desenvolvimento de Padrões (SDO).

Imediatamente depois disso, a XRSI iniciou outro grupo de trabalho público, com o objetivo ambicioso de classificar os dados rastreados, armazenados, transmitidos e inferidos por dispositivos XR. Então, percebemos que precisávamos de duas coisas antes de chegar lá: a primeira eram mais dados de fabricantes de hardware e programadores de software e a segunda era um entendimento mais profundo dos campos nos quais a XR pode ser usada. E a partir daqui, começámos a trabalhar na primeira versão do XRSI Privacy Framework para o domínio XR e computação espacial, que foi bem recebida e tem sido um ponto de discussão entre os interessados ​​em XR em todo o mundo. Atualmente, estamos a desenvolver a versão 2.0 desta pesquisa e a disponibilizar documentos específicos de subdomínios, como o MedicalXR Framework e o Higher Education Framework.

No final de 2020, após o lançamento de nossa plataforma de media, Ready Hacker One, e o podcast de RV Singularity Watch, decidimos que estava na altura de envolver a comunidade num evento chamado XR Safety Week, que aconteceu em dezembro, e que vai ter a sua 2ª edição em dezembro de 2021.

Uma vez que a indústria das tecnologias emergentes é feita por pessoas, também promovemos a criação de um grupo internacional de pessoas e organizações denominado CyberXR Coalition, com o objetivo de combater as desigualdades e as barreiras de acesso de minorias, indivíduos sub-representados. Desde 2020, também começámos a colaborar com o Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra, mais precisamente com a Health Education England, que é o seu braço ligado à educação e formação, com o eSafety Commissioner da Austrália e com uma série de representantes e senadores dos EUA, a fim de aconselhar sobre diferentes regulamentações, principalmente nas áreas Médica e de Segurança Infantil.

Quais as preocupações crescentes que a XRSI tem com a cibersegurança? 
A segurança da informação está prestes a experimentar um ajuste de contas e a confrontar as novas realidades dos mundos virtuais, onde os ataques não se limitam mais aos nós, servidores ou à rede, mas podem ser conduzidos nas nossas mentes e corpos. A nossa mente e as nossas salas de estar estão a tornar-se na nova superfície de ataque. Este problema toma outras proporções devido às grandes quantidades de dados que mudam constantemente de mãos entre organizações e terceiros.

“Só através da criação de aplicações seguras de forma proativa e antecipando atores mal-intencionados podemos manter-nos à frente das ameaças emergentes”.

O que podem as empresas fazer para mitigar os riscos?
Eu gostava de ver o setor de segurança cibernética mudar do modo de “proteção” para o modo de “prevenção”. Só através da criação de aplicações seguras de forma proativa e antecipando atores mal-intencionados podemos fazer frente às ameaças emergentes. Muitas vezes, os profissionais de segurança cibernética estão tão ocupados a lutar contra incêndios que a criação de códigos seguros recebe pouca atenção. Esse paradoxo deve ser resolvido e isso é ainda mais importante agora que as nossas infraestruturas críticas e o nosso futuro dependem do código.

Vivemos numa época em que usamos o software como material de construção para criar novas realidades e mundos nos quais podemos mergulhar totalmente. É imperativo que deixemos a noção de “corrigir e atualizar” e consigamos que uma menor quantidade de vulnerabilidades seja introduzida em primeiro lugar. Chamemos a isto de “Mudança para a esquerda” ou consciência de segurança ou simplesmente segurança proativa, precisamos de mudar  a nossa mentalidade coletiva em relação ao tema.

Tal como acontece com a transformação digital, onde a pandemia da Covid-19 é vista como um grande acelerador, na tecnologia imersiva isso também acontece?
Bem, posso certamente dizer que o Covid-19 trouxe profundas transformações na forma como consideramos os espaços virtuais e as interações não físicas. Até 2019, as chamadas remotas eram vistas como secundárias em comparação com as interações presenciais. Muitos observadores pensaram que 2020 poderia ter sido o ano em que se daria um passo significativo na adoção em massa das tecnologias imersivas, mas existem alguns elementos que constituíram um obstáculo: em primeiro lugar, quando os bloqueios atingiram a Europa e os EUA, as cadeias de produção chinesas ainda estavam interrompidas, e, como muitos dos dispositivos são fabricados na China, era quase impossível responder à procura global.

Então, a pandemia também criou uma enorme crise económica, pelo que não havia tantas pessoas disponíveis para comprar headphones, pois estavam concentradas em economizar dinheiro para o futuro. Outro aspeto é que a tecnologia ainda não está 100% madura, portanto a experiência ainda é um tanto incómoda para algumas pessoas. Mesmo assim, 2021 marcou alguns passos importantes na adoção destas tecnologias. Vejo os próximos cinco anos como uma aceleração constante dos investimentos e das implementações na área, principalmente no ambiente de negócios.

O que é preciso para que as tecnologias XR se tornen numa prática cada vez mais comum e segura?
Acho que o número de desafios que enfrentamos é enorme, mas há um que pode ser continuo no curto prazo: precisamos de transparência dos maiores atores do domínio, como o Facebook Reality Labs, para garantir que as pessoas saibam o que acontece quando mergulham nas experiências de XR: que tipo de dados são rastreados, armazenados, transmitidos e processados? Como as pessoas podem possuir os seus dados em vez de centralizar tudo nas mãos de alguns atores?

Este é um primeiro passo fundamental, não apenas pelas suas consequências imediatas, mas também porque promoveria uma mudança de paradigma em direção a uma consciência generalizada sobre a importância da descentralização e propriedade. Isto não é pensado apenas para as tecnologias imersivas.

“O ecossistema português de XR parece estar vivo agora, com mais de 100 empresas a lidar com XR e a aplicar tecnologias imersivas a uma vasta gama de setores – não apenas aos desenvolvimento de conteúdos e software, mas também ao retalho, turismo ou mesmo a jogos para a saúde mental”.

Como olha para o cenário das tecnologias imersivas em Portugal?
O ecossistema português de XR parece estar vivo agora, com mais de 100 empresas a lidar com XR e a aplicar tecnologias imersivas a uma vasta gama de setores – não apenas aos desenvolvimento de conteúdos e software, mas também ao retalho, turismo ou mesmo a jogos para a saúde mental.

Embora o 5G ainda não esteja disponível, grandes empresas estão a estabelecer a sua pesquisa e desenvolvimento de XR no país para alavancar talentos locais e nómadas em XR. O Websummit provavelmente contribuirá para esse efeito.

O que podemos esperar de 2022 a nível tecnológico?
Não é fácil dizer porque a maior parte está focada no que a Apple vai lançar para o setor de XR. Existem muitos rumores sobre headphones AR / VR esperados para 2022, mas ninguém pode prever precisamente o que, como e quando será. Muitas vezes, o hype tem sido bastante perigoso para o domínio imersivo e devemos impedi-lo, pelo menos no que diz respeito ao hardware.

Em vez disso, acho que devemos definitivamente olhar para o chamado metaverso [um mundo online onde os utilizadores podem comunicar, jogar e trabalhar em ambiente virtual. Este novo conceito de mundo virtual combina aspetos de várias tecnologias digitais, como videoconferência, criptomoedas, e-mail, realidade virtual, redes sociais e streaming ao vivo.], a ideia de ir além da XR como uma experiência individual, mas, em vez disso, transformá-la numa experiência social e coletiva. Esta é uma das tendências mais significativas no domínio XR.

O que podemos esperar da XRSI no próximo ano?
A XRSI deseja continuar o trabalho de pesquisa de segurança cibernética e XR e de construção de padrões para o domínio imersivo. A XRSI está exclusivamente posicionada para ser o “cão de guarda” da confiança no mundo digital envolvente. Acho que estamos a caminhar nesse sentido, ao liderarmos com integridade e ética. Queremos continuar a oferecer orientação gratuita a indivíduos, académicos, legisladores, criadores, programadores e a grandes organizações de tecnologia sobre como construir segurança e inclusão, evitando danos nos humanos durante a inovação. Pretendemos estabelecer métricas de referência em torno de “inovação e pesquisa responsáveis” no domínio envolvente e incentivar os programadores e criadores a construir produtos éticos que minimizem a recolha de dados e respondam aos interesses da humanidade e das nossas crianças.

No próximo ano, como já referi, vamos lançar a versão 2.0 da Estrutura de Privacidade e Segurança XRSI, que marca um passo significativo em termos de uma compreensão mais profunda de como podemos construir experiências privadas mais seguras e imersivas.

Paralelamente, 2022 será o ano em que iremos ganhar mais estrutura na Europa, principalmente ao trabalhar com órgãos reguladores e legisladores para evitar os mesmos erros que cometemos com outras tecnologias quando permitimos uma grande concentração de poder em poucas mãos e todos os regulamentos são reativos em vez de proativos.

Por último, mas não menos importante, especialmente por causa da minha formação, no próximo ano vamos expandir a nossa pesquisa no jornalismo imersivo e intensificaremos os nossos projetos para dar aos jovens a oportunidade de serem a primeira geração de jornalistas imersivos.

Respostas rápidas:
O maior risco:
temos dois principais riscos. Por um lado, o fim de outro ciclo hype antes que qualquer passo para a adoção em massa seja feito. Por outro outro lado, o que honestamente me assusta mais, é um escândalo do tipo Cambridge Analytica antes de termos bons regulamentos. Isso pode representar o fim da confiança para uma grande área da indústria.
O maior erro: ignorar a privacidade e o risco de segurança, pensando que a adoção em massa está tão distante que não precisamos de estar prontos. A superfície de ataque e os riscos para os indivíduos são maiores agora..
A maior lição: considerar o domínio XR como um todo, não apenas como uma soma de tecnologias, e colocar os humanos no centro de tudo.
A maior conquista: globalmente, a nossa principal conquista, por enquanto, é ter contribuído para colocar a privacidade e a segurança no centro do palco quando se trata de XR. Para o futuro, espero que a nossa estrutura contribua para a criação de melhores leis e para a promoção de boas práticas em todo o setor.

Comentários

Artigos Relacionados