Opinião
A irrealidade do real
Numa época de impressionantes avanços tecnológicos, onde a “realidade do real” se vai cada vez mais confundindo com um complexo e muito diversificado “jogo de máscaras”, a questão que preocupa as pessoas (e não a geração “baby boomers”) já não é o “nada ser como dantes”; a questão verdadeiramente inquietante é a de que “já nada é como parece ser”.
Vivemos cada vez mais numa “sociedade de espetáculo” que, de acordo com Lipovetsky (1) consiste “em transformar o real em representação falsa”, criando “uma nova força de engano” que mantém as pessoas em permanente estado de inquietação provocada pela crescente incerteza, pela cada vez maior dificuldade em prever e antecipar seja o que for, e pela crescente erosão da confiança, tanto nas pessoas como nas instituições.
Muitos órgãos de comunicação social, que deveriam ter como principal objetivo cumprir o preceito das sociedades democráticas de informar com objetividade e isenção, têm vindo a dar uma contribuição importante para o acentuar deste clima de inquietação, ao tornarem-se em poderosos nutrientes de fantasias, burilando as notícias através de critérios puramente sensacionalistas e totalmente submetidos ao totalitarismo dos índices de audiências, muitas vezes mistificando os próprios factos para lhes dar aquela pitada de “drama” que, supostamente, mais agrada ao público.
Os factos, em si, confundem-se com a interpretação de quem os relata, sendo notórias as diferenças de pontos de vista, sobre os mesmos temas, entre diferentes órgãos e diferentes comentadores, a tal ponto que vai sendo cada vez mais difícil distinguir o que é “real” daquilo que é uma mera confabulação produzida a partir de “indícios” que, apesar de serem apenas isso mesmo, são imediatamente veiculados para a praça pública com a conotação equívoca de verdades indesmentíveis.
No meio desta imensa “comédia de enganos” que muitas vezes acaba em tragédia, devastando vidas concretas, criando mitos a propósito de pessoas a quem a voragem do sensacionalismo retira a possibilidade de garantir o seu bom nome e defenderem a sua dignidade, ainda haverá espaço para a confiança, essa “coisa preciosa” que constitui “a base de quase tudo o que fazemos como pessoas civilizadas”(2)?
Espaço há, seguramente, num ambiente social e empresarial onde, apesar de tudo, ou talvez por causa disto tudo, a confiança tem vindo a ser considerada como “the one thing that changes everything” (3), aquela coisa, digo eu, “com a qual e sem a qual nós seguramente não ficaremos tal e qual”. O problema é que, apesar da confiança ser uma questão atualmente muito valorizada, a perceção da “Fragilidade” das instituições sociais e da “Não-Linearidade” dos fenómenos que ocorrem praticamente em todos os domínios da atividade social, vão provocando a generalização de um clima de crescente “Ansiedade”, agravado pelo facto de nos confrontarmos com fenómenos que, pelo seu carater atípico e inesperado, parecem cada vez mais “Incompreensíveis” (4).
A consequência é obviamente preocupante: o crescente sentimento de incerteza do que é ou não é realmente credível, leva as pessoas a confiarem cada vez menos e a terem muito mais dificuldade em decidir em quem confiar e em quem não confiar.
No contexto das organizações, onde, apesar de tudo, têm existido notáveis e inspiradores exemplos de práticas e iniciativas que promovem e estimulam ambientes de confiança, a situação atual também apresenta algumas dificuldades relativamente a este tema.
Um artigo recente, publicado na edição de Nov/Dec, 2023, da “Harvard Business Revue”, e num contexto em que se reconhece que os “managers are struggling” devido à “crescente digitalização e às disrupções resultantes da pandemia”, é citado um estudo que assinala que “apenas 50% dos empregados acreditam que os seus responsáveis podem ajudar as equipas a serem bem-sucedidas nos próximos 2 anos” (5).
Se considerarmos que um dos “core drivers” da confiança, em contexto organizacional, é o facto de os colaboradores acreditarem que os seus managers e líderes estão profunda e autenticamente empenhados em “criar condições para que as suas pessoas exerçam plenamente as suas capacidades e poder” (6), a situação reportada no estudo não deixa de nos colocar algumas interrogações em relação às causas dos défices de confiança nos líderes e às suas possíveis consequências muito negativas no clima social das organizações.
Ambiente social instável e imprevisível e ambiente organizacional inseguro e incerto, eis os condimentos de uma nova ordem social em que habitamos e onde todas previsões apontam para que assim continue e venha até a agravar-se.
Se é verdade que todas as épocas históricas anteriores passaram evidentemente por momentos de imprevisibilidade e de instabilidade, sobretudo em períodos onde ocorreram mudanças mais profundas, aquilo que diferencia a nossa época atual, e que nunca aconteceu antes, é o facto de passarmos a viver num ambiente onde se torna cada vez mais difícil distinguir o que é “realmente real” do que é uma “aparência do real”.
Em quê acreditar? Em quem acreditar? O que estou a ver é real, ou é apenas uma visibilidade confabulada a partir da construção de sofisticados efeitos tecnológicos e da manipulação em massa?
Talvez não seja possível dar respostas objetivas a estas perguntas; ou talvez estas mesmas perguntas deixem de fazer sentido numa época em que os filósofos pós-modernistas anunciam o “fim da verdade objetiva” e a emergência da subjetividade das “ficções úteis”; a época da “sociedade pós-moderna, sociedade aberta , plural”, caracterizada pela “vida sem imperativo categórico, a vida kit modulada em função das motivações individuais, a vida flexível da época das combinações, das opções, das fórmulas independentes tornadas possíveis por uma oferta infinita” (7).
Mas é justamente esta a época anunciada pelo famoso acrónimo “BANI” (FANI, na versão em português) já citado atrás, que é tantas vezes apresentado como a tipificação do contexto social e organizacional no qual vamos ter de viver e para o qual temos de nos preparar.
Mas será que estaremos mesmo preparados para viver nesta nova (des) ordem social?
A adaptabilidade a estas novas condições não passa, não pode passar, apenas por desenvolver “novas competências”, mas sim por “competências de tipo novo” que se traduzam não só em comportamentos diferentes, mas também no desenvolvimento de novas “arquiteturas mentais” que nos permitam singrar neste novo “caos”, bem diferente daquele que foi há muitos anos brilhantemente caracterizado no famoso livro de Tom Peters, “Thriving on Chaos” (1989).
Apesar das dificuldades, gostamos de acreditar que acreditamos que estamos no bom caminho nesta viagem para a “hipercomplexidade”.
E, já agora, e como estamos em plena época festiva, deixo os meus votos para que o este ano seja, para todos, um ano de sucessos continuados na navegação dessa viagem.
Referências
- LIPOVETSKY, G. (1983). A Era do Vazio. Lisboa: Relógio D’Água
- FREI, F. & Morris, A. “Begin With Trust”, in The Best of HBR, Winter 2023
- COVEY, Stephen M.R. (2006). The Speed of Trust: The One Thing That Changes Everything. New York: FREE PRESS, a division of Simon & Schuster, Inc.
- Referência ao acrónimo BANI (FANI na versão em Português)
- CHRO Guide: Managers Are Cracking and More Training Won’t Help, by Gartner (white paper, 2023).
- FREI, F. & Morris, A. “Begin With Trust”, in The Best of HBR, Winter 2023
- LIPOVETSKY, G. (1983). A Era do Vazio. Lisboa: Relógio D’Água
*Docente convidado do ISCTE/Executive Education; Coordenador das Pós-Graduação em “Desenvolvimento Emocional e Coaching” do ISCTE/Executive Education; Presidente da Mesa da Assembleia Geral da APG -Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas.