Opinião

A família na liderança

José Crespo de Carvalho, presidente do ISCTE Executive Education

Sei o quão importante é o papel do ensino na liderança. Quer em tenra idade quer, posteriormente, aquando da entrada na idade adulta e na identificação com determinados role models e professores que marcam, positiva ou negativamente, os vários estudantes. De resto, escrevi já sobre isto algumas vezes. Ou seja, sobre a correlação entre ensino, e que modelo de ensino, e a forma de trabalhar lideranças.

Mas e se perguntarmos sobre qual a influência da família e da educação familiar na construção das lideranças? Podemos ter modelos mais rígidos, como de resto aparecem na literatura, por exemplo um modelo clássico “Carlos da Maia” (Eça de Queirós, Os Maias), ou seja, podemos preconizar modelos mais fortes e mais musculados no sentido de, desde cedo, criar força, independência e não aversão ao risco, e, do lado contrário, podemos criar bolhas de proteção e crianças “preservadas” (ou alheadas?) das envolventes. Claro que existe uma miríade de situações intermédias em que de umas vezes se puxa mais para um lado e de outras mais para outro.

Sempre me pareceu importante a consistência, mas talvez seja apenas o meu feeling. Até porque as mães normalmente puxam mais para o lado mais condescendente, tendo ou não a cumplicidade dos pais, e podendo originar modelos onde as crianças aproveitem para explorar as vulnerabilidades de um e outro lado e ganhar alguma coisa com isso. A generalização não deve ser aqui, como noutras circunstâncias, aplicada.

Podemos, concomitantemente, criar modelos espartanos na abundância e modelos hiperabundantes onde, no primeiro, as crianças aprendem – teoricamente – a construir as suas conquistas e, nos segundos, a sentarem-se e esperarem o que os pais lhes vão dando, sobretudo quando e sempre que não tiveram acesso a – normalmente é esse o padrão – tantos bens materiais nas suas juventudes.

Podemos criar mesadas por objetivos. Habituando a que, desde pequenos, possam ser adaptados a cumprir, ou não, as metas traçadas e a receber em conformidade. Não é isso por que pugnamos nas empresas? Podemos, ao contrário, estabelecer mesadas flat fee que, bem ou mal, são sempre ganhas.

Mais, podemos definir que com a mesada se pagam apenas os extras ou com a mesada deve pagar-se literalmente tudo, i.e., desde alimentação fora, roupa comprada, propinas, livros. Tudo. Literalmente tudo. A primeira é um extra para os extras, mas que não ensina necessariamente a gerir. A segunda incorpora já uma noção do dinheiro para que, com ele, se possam fazer escolhas e se possa fazer emergir uma gestão de trade-offs.

Podemos igualmente pensar em várias outras cambiantes que permitam dosear mais ou menos o esforço que cada qual tem de fazer para adquirir e/ou aceder a determinadas condições. Nomeadamente podendo ter dinheiro para as suas despesas e indo até mais além do que isso.

É evidente que todos estes modelos colidem ou intersectam com os traços de personalidade de cada qual. Uma personalidade mais medrosa comporta-se de uma forma muito diferente de uma personalidade mais desafiadora. Assim como uma personalidade mais reservada tem comportamentos bem diferentes dos mais aventureiros.

A questão é que estas personalidades são também, e muito, afetadas por eventos e forjadas em circunstâncias iniciais de vida e em cargas genéticas. Os sonhos e expectativas dos pais para com os filhos condicionam, e muito, a forma como estes se posicionam perante a vida. A socialização a que se expõe uma criança tem igualmente um impacto imenso na formação da sua personalidade. Da mesma forma, as dúvidas e sua resolução, os sentimentos de pertença e seu propósito, o carinho e amor que se passam, a construção do famoso complexo de Édipo (muito freudiano), a imagem que se vai criando de si mesmo, a compreensão que têm da importância familiar, entre tantas outras, são questões que cruzam com a contenda do modelo educativo escolar e com os traços de personalidade. Tal como cruzam com outras, várias, variadíssimas, questões de âmbito mais educacional nos seus contextos familiares.

Tudo isto tem uma influência enorme sobre a construção de lideranças. Sobre a forma como cada qual aprende a conhecer-se, a dar-se, a prestar serviço aos outros, a colocar-se ao serviço dos outros, a dar o exemplo.

No geral, muitas condicionantes contribuem para a formação de líderes. Mas a educação familiar tem um contributo decisivo para isso. Não sou dos que acredita que se nasce líder. Pode haver alguma propensão genética para tal. Sou antes dos que acreditam que se forjam líderes num contexto e com uma envolvente específicas. É manifesto, porém, que uns absorvem melhor que outros determinadas características educacionais e de contexto. Até porque são diferentes entre si.

Agora, pergunto-me muitas vezes se a mensagem do amor e do perdão, se a aprendizagem num contexto onde os outros são importantes, e se devem valorizar, os prepara, de facto – porque este foi muito o meu modelo como pai para com os meus filhos – para o que apanham posteriormente? Onde devia haver solidariedade apanham descomprometimento. Onde devia haver companheirismo apanham individualismo. Onde devia haver entrega apanham egoísmo. Onde devia haver transparência e verdade apanham subterfúgios.

Honra, dignidade, solidariedade, compromisso, amizade são valores que procurei incutir. Sinto, porém, que já depois dos primeiros passos no mercado de trabalho, e andando mais para a frente, esses valores são-lhes úteis. Mas penso muitas vezes se serão os mais importantes? Não os trocaria por outros, como óbvio, porque são os que perfilho. Até porque serão esses os necessários para criar melhores pessoas. Mas serão aqueles que os forjarão como líderes? Esta é, para mim, uma grande questão.

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José Crespo de Carvalho

José Crespo de Carvalho

Licenciado em Engenharia (Instituto Superior Técnico), MBA e PhD em Gestão (ISCTE-IUL), José Crespo de Carvalho tem formação em gestão, complementar, no INSEAD (França), no MIT (USA), na Stanford University (USA), na Cranfield University (UK), na RSM (HOL), na AIF (HOL) e no IE (SP). É professor catedrático do ISCTE-IUL, presidente da Comissão Executiva do ISCTE Executive Education e administrador da NEXPONOR. Foi diretor e administrador da formação de executivos da Nova SBE e professor catedrático da Nova SBE (Operations... Ler Mais..

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