Opinião

A escola subordinada à ditadura do currículo

Teresa Damásio, administradora do Grupo Ensinus

Num mercado de trabalho cada vez mais exigente e dinâmico, as alunas e os alunos são hoje confrontados com a necessidade de desenvolver competências que ultrapassam largamente os domínios técnicos e científicos.

As chamadas soft skills e hard skills deixaram de ser meros termos das conversas informais para assumirem uma centralidade incontornável nas exigências do século XXI. Este novo paradigma levanta, inevitavelmente, uma questão essencial: de que forma podem as escolas, desde os primeiros anos de escolaridade, preparar os alunos – os adultos de amanhã – para este novo mundo de competências transversais e integradas?

A forma de organização escolar é uma invenção socialmente construída que se dá no início da modernidade e que criou a separação entre o aprender e o fazer, como acontecia na época industrial, nas fábricas. A escola dá origem a uma nova forma de socialização e de criação de capital humano. Alguns autores defendem que a conceptualização da escola como a conhecemos hoje foi assumindo ao longo de anos um “carácter inelutável” (Canário, 2005, p.62) contribuindo para a estabilidade da escola e do seu currículo. Mas, o mesmo autor, que vos apresento, defende que esta criação de escola e da forma como está pensada e organizada pode condicionar a ação da comunidade educativa tirando as ferramentas e a devida autonomia de que necessita para trabalhar as competências individuais das alunas e dos alunos.

A verdade é que o ensino básico e secundário tem de estar, primeiramente, ligado ao ensino superior para que haja uma continuidade de estudos das alunas e dos alunos e, em segundo lugar, continua fortemente condicionado por um quadro legal e burocrático que limita a tão necessária flexibilidade curricular. Este entrave compromete a capacidade das escolas de se adaptarem às reais necessidades dos seus alunos, em função de uma sociedade em permanente mutação. Contudo, é importante sublinhar que flexibilização não deve ser encarada como sinónimo de menor exigência. Pelo contrário, a educação deve procurar um equilíbrio entre a exigência e a adaptabilidade, tal como procuramos na gestão equilibrada da vida pessoal e profissional, que hoje tanto falamos e sabemos o quão importante é para o nosso futuro. A escola, em todos os seus ciclos, deve também refletir esse mesmo equilíbrio.

Neste contexto, iniciativas como o Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular (PAFC) (1) representaram um marco relevante na modernização da educação portuguesa. Através da possibilidade de gestão de 25% da carga horária, com a criação de Domínios de Autonomia Curricular (DAC) ou novas disciplinas, as escolas passaram a dispor de instrumentos para se tornarem mais inclusivas, inovadoras e verdadeiramente centradas no aluno. Este é o caminho que urge continuar a seguir-se, colocar o aluno no centro do Projeto Educativo. São as escolas que devem adaptar-se ao perfil dos seus alunos, e não o inverso. É imperativo que as instituições de ensino conheçam, acompanhem e definam com clareza o tipo de formação e o perfil de saída que cada aluno deve alcançar ao concluir o seu percurso naquela escola. Mas para que isso aconteça é necessário dar-lhes a flexibilização de que aqui vos falo.

Mais recentemente, o Projeto-Piloto de Inovação Pedagógica (PPIP) (2) veio reforçar esta visão. Direcionado para os cursos científicos-humanísticos e profissionais, este projeto confere uma maior autonomia curricular às escolas, focando-se nas Aprendizagens Essenciais – AE – e na criação de projetos educativos alinhados com as necessidades locais e com os recursos efetivamente disponíveis. Como refere a Direção-Geral da Educação, o objetivo passa por contribuir para uma escola mais “inclusiva, flexível, inovadora e diferenciadora”, que responda com eficácia aos desafios do mundo atual e às expectativas da comunidade educativa.

Estes projetos permitem às escolas construir uma verdadeira identidade institucional, ganhando um caráter diferenciador e pessoal. São também oportunidades para promover o desenvolvimento de competências que não se encontram suficientemente representadas nas disciplinas tradicionais, como a criatividade, a literacia digital, as competências culturais, sociais e artísticas. Através de uma abordagem mais holística, as escolas têm a oportunidade de preparar as suas alunas e alunos de forma mais completa e integrada, promovendo soluções curriculares mais diversas, inclusivas e ajustadas à realidade da sociedade do conhecimento.

Neste ponto, importa refletir sobre o que considero ser a “ditadura do currículo” — a rigidez imposta por um modelo educativo que, ao longo de décadas, tem dificultado a articulação entre disciplinas e negligenciado o desenvolvimento das competências transversais hoje tão valorizadas. Esta rigidez representa uma limitação estrutural que inibe a inovação pedagógica e compromete a preparação dos jovens para os reais desafios que enfrentamos, não conseguindo criar jovens preparados e adaptados a um futuro que está em permanente mudança.

A comunidade educativa, os docentes e os decisores políticos devem reconhecer que o que era valorizado há cinco anos já não corresponde, necessariamente, às exigências de hoje. Tal como as empresas e a sociedade evoluem, também os currículos, as metodologias e a cultura escolar têm de acompanhar essa evolução. Só assim conseguiremos garantir que as escolas deixem de ser estruturas estáticas e se tornem espaços vivos de criação de Capital Humano, fundamentais ao desenvolvimento socioeconómico do país.

É, pois, urgente libertar a escola da rigidez curricular e permitir-lhe respirar com a flexibilidade que a realidade exige passando de um paradigma de ensinar para o de aprender.

1) https://www.dge.mec.pt/autonomia-e-flexibilidade-curricular
2) https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/despacho/9128-2024-876110755 

 

Bibliografia:
Canário, R. (2005). O que é a Escola? Um “olhar” sociológico. Porto Editora.
Canário, R. (2006). A escola tem futuro? Das promessas às incertezas. Artmed.
Gala, M. (2024, agosto, 14). Projetos-piloto de inovação pedagógica. Secundário com nova disciplina “Literacias” a partir do próximo ano letivo. Diário de Notícias.

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Teresa Damásio

Teresa Damásio

Teresa Damásio é Administradora do Grupo Ensinus desde julho de 2016, que faz parte do Grupo Lusófona, o maior grupo de ensino de língua portuguesa no mundo. É também Administradora do Real Colégio de Portugal e do Grupo ISLA. Presidente do Conselho de Administração da Universidade Lusófona da Guiné-Bissau e Membro do Conselho de Administração do ISUPE Ekuikui II, em Angola. Presentemente, integra a Direcção da AEEP. Foi fundadora da Internacionalização do Grupo Lusófona, passou pela Assembleia da República como... Ler Mais..

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