Opinião

A economia das pequenas mortes

João Sevilhano, Estratégia & Inovação na Way Beyond

Todos os dias morre qualquer coisa em nós. Pequenas abdicações que mal registamos. O entusiasmo por um projecto que se esvai após a terceira reunião inconclusiva. A conversa que não iniciamos com um desconhecido. O livro que continuamos a querer ler até esquecermos porque era importante. A pergunta que engolimos — em reuniões, à mesa, na cama — porque o momento parece errado.

Estas micro-mortes acontecem por todo o lado. Trocamo-las por segurança, aprovação, paz. Por aquela promoção, sim, mas também para evitar conflitos, para nos encaixarmos, para não sermos os difíceis, os “do contra”, nas reuniões de família ou de trabalho. Taxa de câmbio péssima. Aceitamo-la na mesma — todos o fazem.

O mundo corporativo especializou-se nesta economia da abdicação. Transformou-a num sistema sofisticado de transacções onde o capital é a vitalidade e a moeda de troca é a conformidade. Cada “sim” automático, cada iniciativa sem sentido, cada silêncio perante decisões absurdas, cada sorriso forçado em mais uma actividade de equipa infantilizante — são micro-pagamentos num sistema que nos empobrece incrementalmente. As organizações pedem autenticidade, mas premeiam o desempenho. Exigem pensamento crítico, mas punem a divergência.

Há ressurreições também. Alguém ri genuinamente numa reunião tensa. Um desconhecido oferece um sorriso fortuito e generoso. O teu filho adolescente conta-te algo verdadeiro, significativo, com afecto íntimo. O e-mail formal com um emoji inesperado, dos que caem bem. A tua companheira toca-te a mão durante uma discussão, desviando-se do guião o suficiente para te lembrar que “isto” pode ser divertido.

Estas ressurreições não são milagres. São fissuras no sistema, momentos onde a vida insiste em passar através das estruturas que construímos para a conter. Como plantas que crescem através do betão — improváveis, insistentes, necessárias. Revelam que por baixo de toda a conformidade negociada, de toda a morte acumulada, persiste algo que resiste à domesticação completa.

Não deveria haver desejo de evitar estas mortes. É impossível sem nos tornarmos eremitas ou procurarmos a imortalidade (e suspeito que o caro leitor saiba quem anda atrás disso — os mesmos que transformam cada limitação humana num problema a resolver com tecnologia ou optimização). Uma alternativa poderia surgir ao desenvolvermos uma espécie de sistema interno de compostagem. Deixar que o que morre se decomponha. Alimentar o que ainda pode crescer. Transformar a resignação noutra coisa.

Mas atenção: nem toda a decomposição é fértil. Algumas pessoas recusam este processo, mantendo cada entusiasmo intacto, cada idealismo preservado. Vivem numa negação perpétua, numa positividade tóxica que as impede de reconhecer o que já morreu. Queimam-se, inevitavelmente, quando a realidade finalmente se impõe. E outras morreram de forma tão incremental que se tornaram fantasmas funcionais — presentes mas não lá, parceiros eficientes, filhos obedientes, amigos ocos, funcionários-sombra. São as que confundiram sobrevivência com vida, que negociaram tanto que já não sabem o que era negociável e o que era essencial.

A diferença entre uns e outros não está na quantidade de mortes acumuladas, mas na consciência do processo. Os primeiros morrem sem saber que estão a morrer. Os segundos escolhem conscientemente que mortes aceitar e quais recusar.

Há sabedoria em morrer selectivamente. Escolher o que libertar e o que defender. É uma economia complexa onde o lucro vem em momentos de autenticidade roubados a todos os sistemas que navegamos, onde riqueza significa saber distinguir entre as mortes necessárias — aquelas que nos libertam do supérfluo — e as mortes que nos diminuem. Onde o verdadeiro capital não é o que acumulamos mas o que preservamos vivo apesar de tudo.

Esta distinção exige uma vigilância constante. Exige que questionemos cada abdicação: esta morte serve-me ou serve apenas o sistema? Liberta-me de algo que já não preciso ou rouba-me algo essencial? É compostagem ou é erosão?

As organizações, as famílias, as relações — todas as estruturas sociais — dependem de um certo nível de morte individual para funcionarem. O problema não é esse. O problema é quando essas estruturas se tornam necrófagas, alimentando-se exclusivamente do que morre em nós, sem nada oferecer em troca além da promessa de mais morte disfarçada de estabilidade.

Ainda estou a aprender que mortes escolher. Suspeito que a mestria não está em evitar todas as mortes, nem em aceitar todas elas, mas em desenvolver um discernimento fino sobre qual é qual. Em reconhecer que algumas mortes são libertações disfarçadas e algumas sobrevivências são mortes prolongadas. Em perceber que a vitalidade preservada não é um estado, mas uma prática, uma negociação contínua entre o que somos e o que os sistemas exigem que sejamos.

No fim, o objetivo não é saber quantas pequenas mortes podemos evitar, mas quantas ressurreições conseguimos provocar. E se o balanço final nos deixa mais vivos ou mais mortos do que quando começámos.

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João Sevilhano

João Sevilhano

É licenciado em Psicologia Aplicada, área de Psicologia Clínica. Exerceu funções em instituições de saúde na área da Psicologia Clínica. Trabalhou igualmente como técnico de recursos humanos passando por vários departamentos onde se destacam as atividades de criação e implementação de programas formativos, counseling de gestores e equipas e a gestão de R.H (SONAE Distribuição). Desenvolveu a sua atividade na Escola Europeia de Coaching (EEC), agora Way Beyond, onde foi sócio-gerente, director pedagógico, coach e facilitador. Na Way Beyond é... Ler Mais..

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