Opinião
“Todos os enólogos têm de ser bons gestores”

Cresceu no meio do vinho e da vinha. Deu continuidade ao projeto da família, mantendo um pé na tradição e nos ensinamentos que lhe foram passados, e o outro na inovação e no futuro. É a paixão pelo alvarinho e o respeito pelo território e as origens que o movem. Em entrevista ao Link To Leaders, Luís Cerdeira, gestor e enólogo do Soalheiro, fala da marca, dos desafios e do que tem mantido a casa firme ao longo destes 40 anos.
Luís Cerdeira tinha dois anos quando, em 1974, o pai e o avô plantaram a primeira vinha de alvarinho e deram início a um legado que hoje gere ao lado da irmã e da mãe, o Soalheiro – a primeira marca de alvarinho de Melgaço.
Foi a sua ligação desde criança à viticultura que o levou ao curso de Enologia na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), que concluiu em 1994. Seguiu-se um estágio na Borgonha e o regresso a Melgaço, onde fez a sua primeira vindima como enólogo do Soalheiro.
Durante o seu percurso profissional, Luís Cerdeira foi também responsável de um Laboratório de Enologia e de uma Câmara de Provadores, e professor numa instituição de ensino superior. Conseguiu sempre conciliar estas atividades com a gestão e a enologia do Soalheiro, funções que assume atualmente a tempo inteiro. Por isso, conhece o Soalheiro como ninguém.
A inovação é, para si, um dos pilares do Soalheiro, mas não é o único. A ele juntam-se a tradição e a consistência, que têm mantido a marca ao longo destes 40 anos.
E se tudo começou numa vinha de uma família, hoje existe uma família de famílias que é “a nossa equipa”, como explica o enólogo ao Link To Leaders.
Como começou o seu interesse pela vitivinicultura?
O meu interesse pela área do vinho e da vinha nem sei bem quando é que começou. Porque quando se está numa família onde o vinha e a vinha fazem parte do dia a dia somos envolvidos por essa paixão desde muito cedo. A consciência de que gostava desta área talvez tenha começado mais a sério aos meus 16 anos de idade. Mas é algo continuado. É como um ciclo contínuo!.
“Outro dos fatores muito importantes para este segredo é o nosso Clube de Produtores. São cerca de 150 viticultores que se juntaram à Quinta do Soalheiro, dinamizando a economia local e o território, com um piscar de olhos à exportação para todo o mundo”.
Qual o segredo para liderar uma marca de vinhos de referência como o Soalheiro?
O segredo número um é ter uma equipa fantástica. Na verdade somos uma família de famílias que é a nossa equipa e todos somos líderes da nossa área de conhecimento. E isso é muito importante! Hoje em dia um dos grandes segredos do sucesso do Soalheiro está relacionado com o conhecimento, com as competências que cada uma das pessoas tem e na sua entrega no dia a dia.
Temos algo muito importante que é a motivação de todos que estão cá a trabalhar – eu inclusive. Do ponto de vista da empresa que é uma empresa familiar passa também por transmitir valores que depois, no fundo, ficam entranhados na equipa e ajudam a que a marca tenha esses valores.
Por exemplo, praticamos a sustentabilidade nos seus quatro pontos essenciais – cultural; económico; social e ambiental – e no dia a dia temos sempre a preocupação do negócio justo e que permite que todo este conjunto de famílias esteja empenhada.
Outro dos fatores muito importantes para este segredo é o nosso Clube de Produtores. São cerca de 150 viticultores que se juntaram à Quinta do Soalheiro, dinamizando a economia local e o território, com um piscar de olhos à exportação para todo o mundo.
São cerca de 150 famílias e com as quais temos ligação permanente e que faz toda toda a diferença. Porque no momento em que temos de conseguir a qualidade do vinho, a afirmação junto do mercado vamos conseguir essa consistência devido a este conjunto de pessoas que nos rodeiam.
Quais os desafios de dar continuidade a um projeto de família?
O meu pai quando teve o primeiro sonho que foi plantar a primeira vinha de Alvarinho em Melgaço e depois conseguiu criar esta marca, o Soalheiro, em 1982, que hoje em dia acarinhámos teve um desafio: conseguir que as pessoas à sua volta vissem este projeto como um projeto de sustentabilidade económica para um território. E a forma como vejo este projeto é muito simples: é um projeto agregador do Alvarinho em Monção e Melgaço que é uma casta fantástica e que precisa de todos os dias de ter esta energia e motivação para que até do ponto de vista internacional sejamos vistos como uma referência.
É defensor das castas portuguesas? Acredita que devemos explorar novas variedades e apostar mais nas castas autóctones como fator de diferenciação do vinho português no mercado internacional?
Eu sou defensor do território e das castas que existem no território. Não somos fundamentalistas, estamos sempre abertos à experimentação, mas acreditamos que podemos ser diferentes ao utilizar as nossas próprias variedades. O exemplo disso é o Alvarinho que representa 90% das variedades que usamos para produzir os vinhos e que é uma casta portuguesa e que tem as suas raízes no Alto Minho, o ponto mais norte de Portugal.
Se pudesse escolher um dos seus vinhos para definir a sua personalidade, qual seria a sua escolha?
Depende do dia! Os vinhos estão como as pessoas. Nem todos os dias estamos exatamente com o mesmo humor. Por isso, num dia de sol, fantástico, à beira-mar escolheria um Soalheiro Clássico. Se tivesse num daqueles dias de chuva, de Inverno ou um dia em que nos apetece estar dentro de casa à lareira, a minha escolha recairia num Reserva.
Durante cerca de um mês produzimos o vinho para todo o ano. Portanto, se não tivermos uma boa capacidade de gestão de expetativas, gestão de incubação (…)… dificilmente conseguiremos estar organizados (…)”.
Como se conjuga a função de enólogo com a de gestor? Qual a que mais o apaixona?
Elas são complementares! Na verdade, todos os enólogos têm de ser bons gestores porque há um segredo na enologia que é muito diferente de outras atividades. Durante cerca de um mês produzimos o vinho para todo o ano. Portanto, se não tivermos uma boa capacidade de gestão de expetativas, gestão de incubação, gestão dos nossos stocks, das nossas quantidades, da nossa qualidade… dificilmente conseguiremos estar organizados para durante um mês criar o vinho para todo o ano. Logo, são funções conciliáveis. O grande desafio que se coloca hoje em dia à gestão de uma empresa prende-se com as expectativas do mercado, da nossa equipa e isso dá-me muito prazer. Porque é construir! E tudo o que implica construir e criar dá sempre muito prazer!
A inovação e expansão têm sido uma constante na aposta do Soalheiro. O que mais marcou estes 40 anos do Soalheiro?
Eu destacava uma só palavra: consistência. Na verdade, o Soalheiro nestes 40 anos conseguiu ter um percurso muito sólido, de saber procurar o espaço, as tendências, sem ser disruptor, mas numa perspetiva de continuidade. Procurou e acompanhou essas tendências para ser consistente. Tendências tanto do ponto de vista da vinha com o Clube de Vitivinicultores, como do ponto de vista da enologia, explorando todas as potencialidades – ou quase todas – que o Alvarinho pode transmitir. E pegando nisso e colocando uma camada muito importante de conhecimento e comunicação sobre a terra, a origem e fazendo com que chegue junto de cada pessoa que gosta do nosso vinho.
Agora quando olhamos para estes 40 anos do ponto de vista da enologia, posso destacar a produção de um vinho sem adição de sulfitos. Porquê? Por ser um vinho que do ponto de vista técnico é desafiante, já que do ponto de vista da sua estabilidade no tempo é muito difícil. Por isso, conseguir um vinho com este perfil é um marco e um desafio de inovação.
Se estivesse a começar hoje a sua atividade como enólogo, o que faria de diferente?
Se calhar começava a apostar na inovação há mais tempo. Mas como enólogo não mudava os desafios que tive de ultrapassar. O conseguir ver o reconhecimento das pessoas que provam o vinho e de um perfil que também me diz muito, ou seja, conseguir que as pessoas gostem de vinhos que nós gostamos é muito gratificante. Na verdade, não fazemos vinhos para pessoas, fazemos vinhos que transmitem o local onde estamos. E isso foi conseguido no Soalheiro e é a nossa grande mais-valia: conseguir fazer algo que é continuar sem sair do lugar.
Qual o contributo que pretende deixar para a cultura do vinho portuguesa, pelo que gostava que seu trabalho fosse lembrado?
Em termos de inovação, é conseguir criar valor numa família de vinhos, que são os vinhos verdes, onde esse trabalho nem sempre é fácil e criar uma marca que seja inspiradora para o futuro, para os vinhos portugueses e também conseguirmos inspirarmo-nos a nós próprios para continuar com este trabalho.
“Estamos neste momento em 40 países e o ADN que temos em termos de valores é o mesmo que temos em Portugal”.
Em que ponto está neste momento a estratégia de internacionalização e expansão da marca?
A estratégia está muito “madura”. Estamos com parceiros sólidos, que têm notoriedade no mercado. Temos parceiros no mercado nacional já com esta notoriedade e o que procurámos fazer na exportação foi o mesmo trabalho. E está a ser conseguido. Estamos neste momento em 40 países e o ADN que temos em termos de valores é o mesmo que temos em Portugal.
Qual o país que mais pesa na faturação?
Temos um top 10 de países internacionais com os de norte da Europa a liderar o ranking, como Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia. São países que têm um peso crescente talvez devido à cultura e à alimentação das pessoas. Normalmente os vinhos brancos têm uma grande procura nestes locais.
Algum mercado que gostariam de estar presentes e ainda não estão?
A nossa aspiração é grande. Somos uma marca muito ligada à hotelaria e restauração, onde o trabalho de gastronomia e vinho tem a sua expressão máxima. E é onde queremos estar! Gostaria de estar num restaurante no Pólo Norte, ou seja, em locais longínquos com uma gastronomia totalmente diferente da nossa.
Quanto faturaram no ano passado e quais as previsões para este ano?
Este ano estimamos ter um crescimento de cerca de 20%. No ano passado faturámos cerca de 5,5 milhões de euros. Este ano vamos terminar acima dos 6 milhões de euros seguramente.
Qual sugestão que daria aos novos profissionais da enologia?
Valorizar muito o conhecimento, valorizar muito a inovação porque a única fonte de valorização dos nossos produtos passa por criar produtos que sejam diferentes e só isso traz valor acrescentado. Inovar, inovar, inovar é a palavra de ordem.
“Por um lado, esperem de nós irreverência e, por outro lado, esperem que sejamos clássicos”.
O podemos esperar da Quinta de Soalheiro no futuro?
Podem esperar a nossa inquietude, a nossa procura por descobrir sempre algo novo e esperar os clássicos de sempre. Quando se fala de inovação também se fala de consistência e de contribuir para uma melhoria contínua dos nossos clássicos. Por isso, por um lado, esperem de nós irreverência e, por outro lado, esperem que sejamos clássicos.
Estamos a focarmo-nos na sustentabilidade das vinhas velhas no território. É algo que não se fala muito e é importante essa valorização. É importante também a valorização das vinhas de montanha, das vinhas de altitude. As mudanças climáticas vieram alertar-nos que é importante olharmos para estes dois estilos: as vinhas velhas mais resilientes e resistentes às mudanças climáticas em comparação com as vinhas de altitude. Queremos também valorizar o Clube de Vitivinicultores, dando-lhes a dimensão que eles também precisam para a sua sustentabilidade económica.