Entrevista/ “A maior estupidez é menosprezar a inteligência e a força dos outros”

Fátima Lopes, criadora de moda/estilista

“Com 20 e tal anos eu tive que virar a empresária criadora, a industrial e tudo mais. Tive de ser tudo porque eu nunca tive ajuda nesse sentido. Sempre fui sozinha a gerir tudo, ou seja, sempre fui a diretora criativa, a diretora financeira, a diretora comercial, a CEO, a presidente…”. A afirmação é de Fátima Lopes, criadora de moda de renome internacional, que no Dia da Mulher, data em que também celebra mais um aniversário, passa em revista os períodos marcantes dos seus 30 anos de carreira, deixando alguns conselhos para quem quer começar no setor da moda.

Inovação, resiliência e perseverança são palavras que sempre fizeram parte do dia a dia da estilista Fátima Lopes ao longo dos seus 30 anos de percurso profissional no mundo da moda nacional e internacional. O projeto de franchising que se está a preparar para iniciar brevemente é mais um exemplo do espírito empreendedor que tem marcado o seu caminho.

Um caminho desafiador agravado pelo facto de ser uma mulher num mundo dominado por homens. Ao Link To Leaders, a mulher que, em 2000, surpreendeu o mundo com um biquíni de diamantes, fala da sua trajetória no mundo da moda e dos seus vários papéis: estilista, empresária e mulher.

Uma das recentes novidades da Fátima Lopes é a aposta no franchising nacional e internacional. O que é que a levou a ir por este caminho?
Isto não é uma ideia de agora. Estava tudo preparado para avançar no início de 2020, quando começou a pandemia. Portanto, abortei tudo. Parou. E dancei consoante a música. Toda a gente teve de se adaptar e, obviamente, eu fiz exatamente o mesmo. Virei-me para o digital, abri a loja online – que já tinha, mas numa escala muito pequenina – e dediquei praticamente as coleções a isso e as apostas e os esforços todos para isso. E foi muito importante, muito importante mesmo. Fez toda a diferença.

A ideia não era ficar a chorar, a ideia era encontrar soluções e, portanto, acabei por, durante 2020 e 2021, nunca ter ficado parada, nunca. Estive 15 dias em casa no início de março, mas sempre a trabalhar. Nunca parei e ao fim de 15 dias vim trabalhar. Tivemos muita gente em teletrabalho, mas outros não porque, por exemplo, a loja online não podia parar e o atelier tinha que trabalhar, a loja trabalhou, o departamento de encomendas teve que trabalhar. Depois também temos a Face Models que também nunca parou.

O franchising era uma aposta que fazia sentido em 2019 e que volta a fazer sentido agora. E daí eu ter aguardado durante dois anos, com o projeto em stand by e agora faz todo o sentido porque acreditamos que vamos todos voltar à normalidade. As lojas físicas voltam a ter o seu papel, o que toda a vida tiveram e que  obviamente acredito que vão voltar a ter. E daí a ideia de o franchising ser lançado agora outra vez.

Em que ponto é que está neste momento esse projeto?
Neste momento temos muitas pessoas interessadas, mas nada de concreto, até porque isto foi lançado agora. Mas há muito interesse, o que é engraçado, não só nacional, mas também lá fora, em alguns países da Europa.

E vão funcionar só em lojas Fátima Lopes ou noutros espaços?
A ideia é lançar as duas possibilidades. Enquanto a pandemia durou, o online funcionou para marcas próprias. Quem tinha multimarcas viu-se muito perdido. Ou seja, as lojas multimarcas de repente praticamente deixaram de funcionar porque as marcas cada uma foi vendendo diretamente o seu produto.

Portanto, as multimarcas nestes últimos dois anos não fizeram sentido nenhum, mas agora voltam outra vez, as chamadas concept stores que toda a vida existiram e que vão continuar outra vez. Há comerciantes que optaram por projetos de multimarcas e aí faz sentido ter um corner dentro de uma concept store, um corner de imagem que será identificado como um corner Fátima Lopes e cada pessoa pode ter a possibilidade de comprar ou a coleção feminina, a coleção masculina ou as duas, ou compra a parte mais sofisticada ou a parte mais casual, mais sportswear que também há. A marca é abrangente, tem muitos produtos e damos a possibilidade das pessoas se virarem mais para um determinado conceito ou para outro.

“Desmistificar aquela ideia que as pessoas têm de que o criador é inatingível, inacessível…Isso não existe”.

Vamos poder ver a marca Fátima Lopes nos centros comerciais?
Não sei. Eu acho que isto nunca será um produto para massificar, nem é essa a minha intenção. A ideia não é massificar a marca. Não é ter em cada centro comercial uma loja. A ideia é tornar abrangente e acessível, e em pontos com a qualidade que nós exigimos. Isto não é um franchising de supermercado para estar em cada esquina, nunca o será. Da mesma maneira que no online já estou no El Corte Inglés, também se abre a possibilidade de outros espaços.

São mercados diferentes, públicos diferentes e o que não choca só complementa. E numa visão global de mercado não faz sentido estar só num nicho, faz sentido ser abrangente. E a ideia é tão simples quanto esta: tornar a marca mais acessível. Desmistificar aquela ideia que as pessoas têm de que o criador é inatingível, inacessível…Isso não existe. Nós somos todos seres humanos normais e todos queremos viver o melhor possível e, por isso, a ideia é mostrar que a marca é para toda a gente. Não há estatutos. É uma questão de poder de compra, mas até em relação ao poder de compra, há coisas mais acessíveis e coisas menos acessíveis.

Há algum mercado internacional onde gostasse de ver a sua marca, nesta ótica do franchising?
A ideia é completamente aberta. Olhe gostava de ver na Ucrânia, com paz e com uma rua maravilhosa. O que assistimos agora é uma coisa completamente impensável, as avenidas destruídas, não dá para imaginar. Eu que sou muito otimista, de repente estou apreensiva.

“(…) quem disser que não precisa de publicidade, não vive neste mundo porque todos nós precisamos de exposição”.

De que forma é que é que pensa fazer parcerias com os empreendedores conhecedores dos mercados locais para conseguir ter mais a marca no nosso país? Tem alguma estratégia delineada?
A marca é conhecida e estou a trabalhar com uma empresa de profissionais de franchising que é a ON. São eles que estão a gerir, porque eu também não tenho tempo para me ocupar disso. Cada vez mais vivemos no mercado global e cada vez mais a exposição, o digital, é a melhor forma de chegar a toda a gente. E obviamente que quem disser que não precisa de publicidade, não vive neste mundo porque todos nós precisamos de exposição. E precisamos, sobretudo, de dizer que estamos aqui, temos produto para apresentar e de dizer vejam o que  temos.

Esta é a nossa realidade. Há 20 anos estávamos demasiado dependentes da chamada publicidade convencional nas revistas, em que as pessoas eram obrigadas a fazer campanhas em tudo quanto era revista internacional. Estávamos dependentes da imprensa, digamos assim, essa era a verdade. E hoje em dia a comunicação está na nossa mão. Compete-nos a nós chegar às massas das formas mais diferenciadas, seja através de líderes de opinião, seja através de influenciadores.

Eu tenho uma agência de modelos, a Face Models, através da qual representamos influenciadores. Portanto, eu estou numa posição, mais ou menos, não vou dizer privilegiada, mas de total noção de mercado, porque eu própria tenho uma agência que promove. Portanto, se promovo os produtos dos outros, também promovemos os meus, como é óbvio. É, por um lado, ter o produto, e, por outro, depois saber comunicá-lo e saber vendê-lo.

Hoje em dia é importante ter um produto com qualidade porque ninguém consegue fazer um negócio se tiver um produto que depois não preste. Ninguém é parvo hoje em dia, estamos na era da comunicação em que tudo sabe, tudo se diz. Estamos numa era em que não deveriam acontecer as fake news, que infelizmente acontecem, mas é tudo uma questão de tempo até serem desmascarados e essa é a verdade – ninguém engana toda a gente durante muito tempo. Vão enganando alguns até serem desmascarados e cada vez mais é isso. Ou seja, cada vez mais temos que ter qualidade e temos que saber vendê-la. E é óbvio que a comunicação é essencial. Não é só ser, é também conseguir mostrar o que se é. O mundo está cheio de talentos e de qualidade que ninguém conhece.

Sabemos que a maior parte das pessoas, por muito talento que tenham e por muito boas que sejam naquilo que fazem, em todas as áreas, só algumas se destacam. Ou seja, é preciso reunir tantas condições para se destacar e para conseguir marcar e ficar na história, fazer uma marca, fazer um nome, estar presente… Eu acho que hoje em dia a qualidade é muito, muito, muito importante, mas também o saber apresentar produto e saber destacar-se é fundamental. É quase tão importante.

“Todas as vezes que alguém me disse que não, eu transformei isso num “então vamos ver”. Quase como statement (..)”

De que é feito o caminho do empreendedor, ainda mais sendo uma mulher. Perseverança, teimosia, otimismo?
Isso tudo junto. Eu faço este ano, no final do ano, 30 anos de carreira. Quando comecei ninguém acreditava em mim. Ninguém. Quando comecei era uma outsider, porque vinha de uma ilha pequenina [Madeira] e ousei fazer aquilo que nunca ninguém tinha feito. Isto, por um lado, deu-me visibilidade, mas, por outro, também me trouxe muitos dissabores, porque muito rapidamente se ganham muitos inimigos que nem se percebe de onde é que vêm. E as pessoas ou se encolhem e desaparecem ou então as adversidades tornam-se armas e quase que objetivos de conquista. Todas as vezes que alguém me disse que não, eu transformei isso num “então vamos ver”. Quase como statement: “Ai é!! Não é possível, então vão ver se é possível ou não. Vão ver do que sou capaz de fazer”. E acho que isso é que é preciso.

E quando falo em ser mulher, no mundo da moda, apesar da imagem ser feminina, é um mundo muito masculino. É um mundo muito afeminado, digamos assim, porque é um mundo em que o mundo gay – e não tenho problemas nenhuns em dizer isto, porque esta é uma realidade – manda. Em termos de percentagem de influenciadores mesmo na moda em si, e estou a falar da moda de autor, é um mundo que é muito gay e as mulheres, e claro que há muitas, existem mas em percentagem são mais homens do que mulheres. Essa é uma realidade. Portanto, ou nos impomos e não temos medo e cada vez que nos tentam deitar abaixo, isso transforma-se em força. E acho que a história da minha vida é isso. Todas as vezes que me disseram não, eu disse: “Ok, esperem para ver”.

E de todas as vezes que fiz alguma coisa boa, eu disse sempre, “ok, este correu bem. Next!” O próximo tem que ser muito melhor. E esta é a única forma de estar. Porque senão somos engolidos. Quem tiver medo, quem não se sentir seguro, quem se deixar abater ou se sentir acanhado, não tem lugar neste mundo, não tem. Porque mesmo para quem tem muita força já é difícil, para quem não tem força nem vale a pena. Mais vale então dedicar-se a outra coisa qualquer.

O mundo é dos persistentes…
A verdade é que cada vez mais o mundo é de quem é persistente, de quem não aceita um não só porque alguém decide que é não. E agora quando eu vejo a Ucrânia, que acho que são o povo mais corajoso do mundo neste momento, em que pessoas civis têm a coragem de se pôr à frente de tanques e dizer daqui não passam, vão-se embora. É isto que é preciso. É disto que o mundo precisa, de coragem.

E a coragem mostra-se de várias formas, não tem que ser só em guerra. Até porque cada um de nós trava algumas batalhas ao longo da vida, sejam elas com armas ou com outro tipo de armas, e é preciso ter essa força. E eu acho que quando é difícil, às vezes também é mais aliciante. Toda a vida disse que os desafios me transformaram e me mostraram uma força que não sabia que tinha. E acho que todos nós temos uma força interior que não sabemos que temos. Alguns não têm mesmo e aí baixam braços. Quem não quer baixar os braços vai buscar forças onde nem sabe que tem e todos nós temos muito mais força do que aquela que pensamos.

“Cada vez que olharam para mim e pensaram “esta é tontina, é fácil. Eu deixo. E depois mostro que não!”

Alguma vez se sentiu discriminada por ser mulher neste mundo da moda?
Nunca permiti. Nunca. Mas já tentaram, como é óbvio. Mas quem é que pode dizer que nunca foi vítima ou que nunca ninguém tentou? Mas às vezes isso também ficava a meu favor. Eu tive várias situações de estar em reuniões com grupos de homens e eu a ver nos olhos deles a pensarem “deves achar que sou tontinha, não é? E às vezes até me fazia de tontinha. Até porque não sou aquela mulher que tem um ar masculino, agressivo, que meta medo e muitas vezes isso até jogou a meu favor. Porque a maior estupidez é menosprezar a inteligência e a força dos outros. Cada vez que olharam para mim e pensaram “esta é tontina, é fácil. Eu deixo. E depois mostro que não!”

Eu tive uma mãe que era uma mulher com muita força, apesar de ter sido uma senhora que nunca trabalhou na vida. O trabalho dela foi cuidar de filhos, e cuidou de cinco filhos, foi um trabalho muito grande. Mas a minha mãe tinha uma inteligência prática da vida, a experiência de vida. Dizia sempre que os estalos dão-se de pelica, de luvas brancas e com muita calma. Nunca se deve responder a quente, porque perdemos a razão. E quando eu era miúda não entendia isso, mas dei por mim ao longo da vida, e cada vez mais, a repetir as frases de pessoas muito mais velhas que tiveram outras experiências, outra sabedoria de vida, outros tempos.

Porquê?
Houve uma altura da vida em que eu fervia em água fria e a vida ensinou-me que não se deve fazer isso. Portanto, há muitos anos que quando me apetece dar uma resposta – e às vezes há pessoas que merecem uma resposta torta e na hora – eu penso “ok, respira fundo, não digas nada, fica caladinha”. E depois com muita calma, vou dar a resposta, mas é com luvas de pelica.

Agora falando das mulheres e das tentativas de nos menosprezarem, esquecem-se que, do outro lado, podem ter uma pessoa mais esperta do que eles. E que se pode fazer de tolinha, o que às vezes dá muito jeito. Eu acho que isso nunca corre bem para o outro lado. No final fico eu a rir e este é um conselho para todas as mulheres.

Mas é preciso ter alguma idade para poder dizer isto. Se falasse comigo há 20 anos eu não dizia, obviamente isto. Quando se vive muitos anos, temos muita experiência, já passámos por tudo, já fomos muito enganados. Eu fui muito enganada ao longo da minha vida. Não vou dizer que nunca mais vou ser porque há pessoas dissimuladas e com várias formas diferentes. E nós, ok, já temos experiência de alguns, mas depois há outros de outras formas.

Ninguém pode dizer que “Eu sou burra porque fui enganada”. Não, não sou burra porque fui enganada, mas ingénua porque não penso com a cabeça maliciosa dessas pessoas. E depois temos duas hipóteses, ou vamos desconfiar de tudo e de todos e não vivemos. Ou então vamos ser enganados. Agora se nos deixarmos enganar segunda e terceira vez da mesma maneira aí já somos burros. O ser enganado não faz de nós pessoas pouco inteligentes, faz é de nós pessoas ingénuas e de boa fé. Acho que para sermos felizes mais vale sermos ingénuos. Eu gosto muito de viver de uma forma pacífica, de viver bem, gosto de sorrir, de acordar todos os dias com um sorriso na cara e de chegar aqui [ao escritório] e ter uma equipa de trabalho simpática e toda bem-disposta. E depois de vez em quando lá nos dececionamos, mas pronto é assim.

“Mas há 20 anos eu não tinha nenhuma noção de negócio. Nunca vivi em função de dinheiro (…)”.

Como caracteriza a Fátima Lopes estilista, e a Fátima Lopes, mulher de negócio? O que é que as une e as separa?
Há 20 anos era muito diferente. Quando comecei a moda que eu fazia sempre foi muito genuína, e continua a ser, ou seja, o ADN é o meu, sempre será. Mas há 20 anos eu não tinha nenhuma noção de negócio. Nunca vivi em função de dinheiro, ou seja, nunca fui aquela pessoa que pensou “quero ser rica”. Eu não quero ter dinheiro escondido debaixo do colchão. Não quero ter milhões para um dia, quando morrer, ser a mais rica do cemitério. Nunca foi esse o objetivo de vida, nunca mesmo.

E durante estes anos todos – e tenho 21 anos de Fashion Week de Paris, a gastar muito dinheiro – sempre tive como objetivo fazer uma marca. E fazer uma marca demora muitos anos e muito dinheiro. Não é possível fazer uma marca sem investir muito, sem investir tudo e eu vivi estes quase 30 anos em que, pelo menos, os primeiros 20 foram de dedicação total. Pelo caminho ficaram três casamentos, porque o meu objetivo de vida nunca foi a vida pessoal e afetiva. Mas eu nunca enganei ninguém. O que estou a dizer agora sempre disse ao longo da vida toda. O meu sonho nunca foi casar e ter filhos. Nunca foi. O meu objetivo de vida, o meu sonho, sempre foi a moda e eu acho que consegui fazer. Não me arrependo de ter dedicado a vida toda a moda.

E agora?
Se me pergunta se neste momento a mulher pensa assim, não, já não pensa. Neste momento, tenho como objetivo de vida ser feliz. E ser feliz implica também continuar a fazer aquilo que gosto, porque enquanto eu tiver saúde vou trabalhar na moda, porque é o que me dá prazer e me faz feliz. Mas às vezes é preciso vir uma pandemia para nos abrir os olhos e nos mostrar que a vida não é só trabalho. E não é.

Durante estes anos todos achei que fazer parte da Fashion Week de Paris era a coisa mais importante do mundo. Nunca, nem por um segundo, ponderei parar, nunca. Vivia quase com aquela obsessão, os meses de dezembro, janeiro e fevereiro era para a coleção e os meses de julho, agosto e setembro para outra coleção. Não tinha tempo para férias e não tinha tempo para ninguém. E de repente vem a pandemia  e eu comecei a pensar, “E agora? E agora não há Paris? E eu vou morrer? Não!” E o mundo acabou? Não”. Então, Paris não é assim tão importante.

Foi muito importante durante estes 21 anos, porque me fez a mim como criadora e fez uma marca internacional, mas neste momento já não é. E de repente a marca não parou porque não fez Paris. A marca continuou porque através do digital está no mundo inteiro. E de repente percebi que posso desfilar em Portugal, que posso apresentar o meu trabalho na mesma. Ou seja, o centro da minha vida já não tem que ser Paris. Não vou nunca descurar, nem menosprezar a importância. Mas para mim já não tem essa importância.

Apesar da pandemia, estive 15 dias no meu Porto Santo, em agosto, coisa que não fazia há 20 e tal anos porque não tinha tempo para isso. E 10 dias no Natal … e de repente tenho tempo para a minha família, para os meus amigos, para sair…

A Fátima Lopes mulher é também a criadora, mas a visão é que já é outra. Já ponho numa balança, paralelamente, a vida pessoal e a profissional, sendo que a minha felicidade é o mais importante. A minha felicidade implica estas duas coisas, mas é preciso chegar aos quase 57 anos, e passar por uma pandemia para pensar assim. De repente, temos que parar e vamos morrer por causa disso? Não, podemos morrer é se apanharmos Covid. A minha mãe faleceu com Covid, portanto, isso para mim mudou-me completamente, fez-me ver a vida de outra forma.

E agora vou sair com os meus amigos, não ando aí discotecas, já não tenho idade nem paciência para isso, mas gosto muito de jantar nas casas dos meus amigos. Os madeirenses gostam muito de andar de casa em casa, entre família e amigos mais do que propriamente na rua e em loucuras de festas. Há dois anos que não faço uma viagem para fora de Portugal, mas todas as oportunidades servem para ir para a Madeira. Fiquei muito mais próxima da família e mudei muito.

O que é que mais destaca nestes 30 anos de carreira? Quais foram os momentos marcantes?
São tantos. Estou-me a preparar para fazer um grande evento, em setembro, para assinalar os 30 anos e tenho estado a pensar nisso. Os momentos mais marcantes são realmente muitos, mas posso destacar assim por alto, quando cheguei cá e lancei a marca em 1990. Estamos a falar de uma época em que não havia nada. Era tudo muito difícil para produzir moda, a indústria não acreditava nos criadores portugueses, éramos vistos como uns miúdos lunáticos que não tinham visão de mercado e não éramos sequer respeitados.

Eu tive que abrir uma fábrica própria. E acho que fui o único criador português que teve uma fábrica, que foi a única coisa que fechei em termos de moda na vida, porque os criadores não foram feitos para ter fábricas. Nunca mais quero fábricas. Mas a verdade é que fui obrigada a abrir uma porque senão não conseguiria fazer a minha moda. Ninguém queria fazer. Eles queriam fazer coisas básicas aos milhares de peças lá para fora. A indústria portuguesa nunca teve visão de moda.

Estou à vontade porque disse isto tantas vezes publicamente. No dia em que os industriais, a indústria portuguesa perceber o que a moda representa para a economia do mundo, uma grande percentagem do PIB de cada país, no dia que eles perceberem isso, se calhar vamos ter um país, uma capital de moda.

“Eu tive que, com 20 e tal anos, virar a empresária criadora, a industrial e tudo mais (…)”.

Isso ainda não acontece?
Ainda é muito difícil. Se nós percebermos que o homem mais rico de França é o dono do grupo LVMH, o mais rico de Espanha é o dono do grupo da Zara. Estamos a falar de moda cara e de moda a cara, mas tanto uma como outra funcionam. Mas Portugal não tem essa visão. Os industriais portugueses contentam-se em ganhar um eurozito em cada peça que fazem e vendem milhões e ganham milhões e podem ter Ferraris à porta, e, portanto, é essa a mentalidade de que eu tenho muita pena.

Mas recapitulando, quando comecei em 1992 tive de remar contra a maré num país que não sabia nada de moda, que não tinha nenhuma visão de moda. O público em geral queria, mas a indústria não acompanhava. Talvez essas dificuldades todas me tenham feito a pessoa que eu sou hoje e me tenham obrigado a fazer a minha própria estrutura. Eu tive que, com 20 e tal anos, virar a empresária criadora, a industrial e tudo mais. Tive de ser tudo porque eu nunca tive ajuda nesse sentido. Sempre fui sozinha a gerir tudo, ou seja, eu sempre fui a diretora criativa, a diretora financeira, a diretora comercial, a CEO, a presidente…toda a vida fui isso, o pau para toda a colher.

Depois foi o começar a perceber que era diferente. Em 1992 em 1994 comecei logo a fazer feiras comerciais e a primeira vez que fiz uma feira comercial em Paris puseram-me no setor da indústria. Ou seja, estava no segundo piso da do salão do Prêt-à-Porter. Era um extraterrestre no meio da indústria e a organização da Feira, nunca me vou esquecer disso, veio ter comigo a pedir desculpa e dizer que eu não devia estar ali. E seis meses depois, na edição seguinte, passei da indústria para o Avant Garde. De repente eu tinha um mercado, tinha uma identidade, porque era diferente, era jovem, era moderna, era diferente de tudo. Como era portuguesa, deveria ser indústria porque era a primeira vez que um português de moda ia para Paris.

Nessa altura, havia a Ana Salazar que tinha uma loja em Paris. Mas a Ana, na verdade, nunca fez a Fashion Week. Rapidamente percebi que havia posicionamento para mim em Paris. E depois abri uma loja lá. Na altura que fui para Paris, a Ana [Salazar] saiu.

Como começou na Fashion Week?
Percebi que havia lugar para mim na Fashion Week. Nunca tinha havido um português, mas também nunca ninguém tinha tentado. Na verdade, eu tenho uma história engraçada, porque nem fui eu que decidi “Vou começar a Fashion Week”. Um dia estava na moda Lisboa a apresentar a minha coleção, e já tinha loja em Paris, quando um francês que estava a assistir à Moda Lisboa veio ter comigo e disse-me “Olá, eu sou o Mark Rozier, sou assessor de imprensa e quero ser o teu assessor. Vim cá para te conhecer”. Conhecia a loja de Paris, adorava a roupa e que achava que eu tinha de começar a desfilar em Paris.

Deixou-me a pensar nisso, e na altura falei com várias pessoas e toda a gente dizia “estás maluca, isso é impossível”. O ponto seguinte foi em 1999 com o primeiro desfile em Paris. E a partir daí nunca mais parou. Portanto, foi mais uma vez a teimosia, o não aceitar um não.

“O biquíni de diamantes foi uma jogada de marketing óbvia e que fez com que o mundo falasse em mim e estou no Guinness no ano 2000”.

E como correu?
Uma vez que era portuguesa, não havia histórico nenhum de portugueses em Paris, marcamos o desfile para a véspera da Fashion Week começar. E eu não sabia se tinha uma pessoa a assistir ou se não tinha ninguém. E tivemos 500 e tal jornalistas a assistir ao desfile. E a partir daí, na edição seguinte, entrei logo no calendário da Federation Couture em off e depois passei do off para in. Cheguei a abrir Fashion Week oficiais.

Em 2000 foi o biquini de diamantes. Pensei, ok entro em Paris, mas com que armas? Muito diferentes das maiores multinacionais do mundo. Eu era uma portuguesa com uma empresa pequenina a lutar com os gigantes. Tinha que ser muito mais criativa, tinha que fazer coleções maravilhosas, tinha que ser diferente. O biquíni de diamantes foi uma jogada de marketing óbvia e que fez com que o mundo falasse em mim e estou no Guinness no ano 2000.

Foi realmente um marco e marcará a Fátima Lopes eternamente. Abriu portas. Uma multinacional de diamantes belga patrocinou o biquíni, ganhei eu, ganharam eles porque tiveram uma visibilidade mundial e foram meus patrocinadores durante muitos anos. E a partir daí nasceu uma coleção de alta joalharia Fátima Lopes, que começou por ser feita na Bélgica, e depois passou para Portugal com uma parceria com o Pedro Rosas.

Depois o desfile no cimo da Torre Eiffel também foi um marco porque também foi a primeira vez que alguém ousou desfilar na Torre Eiffel. Nós perguntámos, eles disseram logo que sim e a imprensa estrangeira perguntava-nos como conseguimos. Foi uma questão financeira? Não, foi uma questão de ousadia, mais uma vez de ideias. Ser o primeiro. A logística é que foi difícil, levar as pessoas lá para cima e, portanto, foi difícil, mas espetacular.

Que outros momentos assinala?
Em 2006 foi muito importante para mim a Comenda do Presidente da República. E também comecei a vestir a Seleção Nacional de Futebol durante sete anos seguidos.

E comecei a diversificar produto. De repente a marca Fátima Lopes estava em tudo, em roupa, em têxteis, porcelanas, cristais, cutelarias, tapeçarias, canetas, joalharia… A marca expandiu-se, da mesma forma que eu estou a querer fazer agora com os franchisings. A marca Fátima Lopes tem muita coisa, não é só uma marca de moda. Ao longo dos anos fui diversificando, fazendo novos produtos, parcerias com a indústria, e fiz muitas parcerias com a indústria, parcerias de muito sucesso.

Nos último oito anos, comecei a fazer uma coisa que também me dá muito gozo, e um negócio muito interessante, que são os fardamentos. Criar coleções de moda para hotelaria. Comecei com o Conrad Algarve, depois fiz o Hilton, agora tudo tenho toda a cadeia Savoy na Madeira, e estou a trabalhar com mais outra cadeia em Portugal continental… portanto, nunca parei e acho que é isso que se pode dizer em relação à marca Fátima Lopes, é estar sempre a dizer o que é que vem a seguir. O parar neste mundo não pode acontecer.

Alguma coisa que se pudesse teria feito diferente ao longo destes 30 anos?
Se soubesse o que sei soubesse teria feito muita coisa diferente, obviamente. Não teria acreditado, não teria confiado, em algumas pessoas. Teria tido estratégias diferentes. Óbvio, ninguém pode dizer que faria tudo igual, porque está a mentir, ou então é a pessoa mais sortuda do mundo.

Na vida nós temos sempre altos e baixos. Há sempre coisas que correm melhor do que outras. Acho que arrepender, não posso dizer que me arrependa. Se pudesse voltar atrás, sabendo o que sei hoje, faria muita coisa diferente.

Acha que há espaço em Portugal para novos projetos na moda?
Claro que sim, claro que há. Tenho pena que a indústria não abra os olhos e não perceba que precisa de criativos, que precisa de uma identidade, que precisa de marca. A marca é uma mais-valia e quando estão a ganhar, se calhar um euro para os estrangeiros e a pôr uma etiqueta que é de marca Internacional, se pusessem marca portuguesa, com identidade portuguesa e se apostassem na marca, não iam ganhar um euro por peça. Iam ganhar muito. E eu gostava muito que a indústria tivesse essa noção para perceber que a moda de autor é importante no mundo inteiro. Abram os olhos e percebam onde é que está o negócio, onde está a mais-valia. E nós temos tudo, temos criadores, temos a indústria, temos qualidade, só precisa esta união.

Recentemente, eu e os meus colegas criadores de moda, criámos uma associação que se chama Uma Voz e já temos feito algumas coisas em conjunto e a intenção é exatamente podermos, todos juntos, ser uma voz. Somos muitos e temos todos muita vontade de fazer coisas em conjunto porque a união faz a força e quem não vê isso está muito cego.

Que conselhos daria a quem está agora a começar nesta área?
Em primeiro lugar ter a noção se realmente têm talento e capacidade de trabalho. Se não têm nem uma coisa nem outra, mais vale desistir já. Porque esta é uma profissão que exige muitas horas de trabalho por dia e não são sequer oito horas. São muitas horas de trabalho por dia, são sete dias por semana na maior parte das vezes e são uma dedicação quase total. Portanto, se não têm esta capacidade de trabalho, vontade e talento – porque sem isso não vale a pena –  desistam já. Se têm esta capacidade, esta vontade e o grande sonho e estão dispostos a dedicar a vida a isso, então nunca deixem que lhes digam não. Este é o meu conselho. Foi isso que eu fiz, e não me arrependo de o ter feito.

Obviamente, agora, nesta fase da minha vida, já penso um bocadinho diferente, mas acho que foi importante ter dedicado a vida estes anos todos à moda. Não me arrependo nada.

O que falta fazer à Fátima Lopes estilista e à Fátima Lopes mulher?
Continuar. Fui realizando os meus sonhos ao longo da vida e sempre sonhando novos. Na moda nunca temos tudo. Porque de seis em seis meses volta tudo.  A acho que é a profissão criativa talvez mais difícil, porque é aquela que é só para seis meses. Um cantor faz uma música e pode viver de royalties durante muitos anos. A moda não é assim. Nós trabalhamos para seis meses e, portanto, é uma profissão muito difícil. Por isso, nunca temos nada.

Temos que ter essa noção, não há direitos adquiridos, estamos sempre a trabalhar. Portanto, falta sempre tudo, falta continuar e falta continuar e ser feliz. É isso que acho que me falta. Nunca vou dizer que já tenho tudo, nunca vou dizer que já fiz tudo porque seria um disparate. Enquanto for viva e tiver saúde vou fazer o que me faz feliz. O desafio é permanente, não há direitos adquiridos. Na moda isso não existe.

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