Entrevista/ “A magia não é a inteligência artificial, mas a forma como lhe damos uso”

Vivienne Ming esteve em Carcavelos, na Nova SBE, para o SingularityU Portugal Summit Cascais. O Link To Leaders sentou-se com a neurocientista, empreendedora e filantropa um dia antes de subir ao palco da universidade plantada à beira-mar para conversar sobre a sua missão de vida, o avanço na inteligência artificial e alguns outros temas.
A neurocientista com uma história de vida pouco comum esteve em Carcavelos a partilhar o seu conhecimento com as centenas de espetadores que assistiram ao evento trazido para Portugal pela Beta-i, a Câmara de Cascais e a Nova SBE. Vivienne é fundadora e presidente executiva da Socos Labs, foi nomeada uma das 10 mulheres mais promissoras em tecnologia pela Inc. Magazine e é conselheira de mais cinco outras empresas.
(Pode assistir à apresentação de Vivienne durante o evento no vídeo no final da entrevista)[1]
No que é que baseia a missão da sua carreira?
Construí uma carreira à volta de inventar coisas para a educação, saúde, recursos humanos e grande parte delas estão diretamente ligadas aos cérebros e machine learning. Apesar de ter sido orientada para o dinheiro, são os resultados que me interessam. A pergunta é como é que podemos maximizar o potencial humano, o que podemos fazer a uma escala massiva que faça realmente diferença na vida das pessoas. [Para atingir este fim,] investiguei, numa variedade de áreas, como é que isto podia ser feito. [Neste caso, a pergunta de partida é] quais são as características no ser humano que são passíveis de ser medidas e que são extremamente preditivas e relacionadas com os resultados monetários e de saúde a longo-prazo? [A resposta é] velocidade de deslocamento a pé aos 65 anos de idade, bem-estar subjetivo, ligação social, educação e, por fim, alguns dados biométricos, como a sensibilidade a insulina e a massa corporal central.
Eu não estou a decidir, de maneira alguma, o que é que torna uma vida boa, mas imaginemos: se uma pessoa viver durante mais tempo, mais feliz e tiver tido um impacto maior no mundo (genericamente medido pelos resultados financeiros), presumiria que tenha tido uma vida melhor. Algumas outras métricas que medem isto são as capacidades cognitivas gerais, competências sociais, inteligência emocional, a habilidade de nos governarmos e a criatividade. Isto são qualidades que não variam entre culturas, géneros ou raças, e, mais importante que tudo, são mutáveis. Algumas delas têm mais elasticidade nos primeiros anos de vida de uma criança, mas outras, como a resiliência, a inteligência emocional e a capacidade de interagir com outras pessoas continuar a ter plasticidade ao longo da vida. Por exemplo, fizemos um estudo com empreendedores em que descobrimos que os indivíduos que receberam treino em resiliência eram bastante mais bem-sucedidos do que aqueles que foram treinados em gestão ou finanças.
Atualmente, seguimos 50 destes fatores [que tornam uma vida “melhor”] num grande número de pessoas, mas estudar isto não nos basta e, portanto, criámos sistemas que tentam mudar estas características nas pessoas. Por exemplo, temos uma app gratuita destinada a crianças, chamada Muse, que os ajuda a desenvolver as capacidades de aprendizagem. A minha missão é introduzir valor na vida das pessoas que apresentam menos capacidades deste género.
“O algoritmo ia-me dizer que as melhores opções seriam homens brancos heterossexuais com um background conservador. Acho que todos conseguimos perceber que isso faz parte do passado e que não são estes os tipos de trabalhadores mais eficazes ou produtivos.”
De que outras maneiras é que a tecnologia pode “desbloquear” todo este potencial escondido na vida das pessoas?
Sou um bocado diferente das outras pessoas da Singularity University. Obviamente que acredito no poder da tecnologia, visto que a utilizo no meu trabalho, mas acho que não passa de uma ferramenta (muito poderosa). A inteligência artificial (IA) é apenas uma ferramenta. Nesse sentido, a IA não pode resolver problemas, nós é que o temos de fazer.
Fui chief scientist de uma das primeiras empresas a utilizar este tipo de tecnologia para o recrutamento e passei os primeiros três meses desse trabalho a ler tudo o que conseguia encontrar sobre as qualidades que giram à volta de um grande colaborador – porque eu nunca tive uma entrevista de emprego na vida. Depois desenvolvemos IA capaz de encontrar essas qualidades. Uma abordagem comum seria pegar numa rede neural e injetar-lhe dados da área, mas com este método o algoritmo ia-me dizer que as melhores opções seriam homens brancos heterossexuais com um background conservador. Acho que todos conseguimos perceber que isso faz parte do passado e que não são estes os tipos de trabalhadores mais eficazes ou produtivos. Depois de identificarmos as características mais importantes, como a resiliência, construímos IA que procure evidências deste tipo de aspetos na vida das pessoas.
Um dos exemplos mais extremos do meu trabalho foi um projeto que desenvolvi na área da bipolaridade. Foi-me pedido que me juntasse aos quadros de uma pequena start-up de Nova Iorque que estava a criar um sistema que moldasse as emoções das pessoas e, por razões de circunstância, pedi-lhes que me passassem todos os dados que tinham disponíveis para construímos um sistema que previa episódios maníacos apenas com o telemóvel.
A Google é bastante capaz de mapear a sua casa – tenho quase a certeza que a Apple também, mas eles nunca admitem nada – com base no tempo que passa nas diversas divisões.
Como é que faziam este tipo de previsões?
Não ouvíamos as chamadas, as mensagens ou nada de pessoal. Utilizávamos apenas os sensores e, muito rapidamente, descobrimos que o movimento é o fator mais importante a ter em consideração. Por exemplo, a Google é bastante capaz de mapear a sua casa – tenho quase a certeza que a Apple também, mas eles nunca admitem nada – com base no tempo que passa nas diversas divisões. Sabem onde é a casa de banho porque entra, fica um bocado parado e depois sai, sabem onde é a cozinha pelos movimentos e sabem também onde é o quarto porque passa entre seis a oito horas parado naquele sítio.
Nós construímos um modelo semelhante e conhecíamos uma pessoa que sofria deste problema e testámos o produto. Descobrimos que a forma como a pessoa se movimenta pela casa e pela cidade, neste caso Manhattan, era extremamente importante para prever este tipo de episódios – semanas antes destes acontecerem. E com isto enviávamos uma mensagem automática à pessoa e a alguém próximo [especificado pelo indivíduo que sofre de bipolaridade] sobre a possibilidade de haver um ataque bipolar e para a pessoa visitar um médico. Portanto, a magia não é a inteligência artificial, mas a forma como lhe damos uso.
E como esta start-up não era virada para a saúde mental, mas para o marketing, tínhamos acesso a uma grande quantidade de dados. Com eles, éramos capazes de olhar para o metro de Nova Iorque – utilizando a app deles – e dizer que há umas centenas de pessoas que vão ter um episódio maníaco, mesmo que em grande parte delas ainda não lhes tivesse sido diagnosticado este distúrbio.
“A empresa em si desapareceu, mas o bem que fez ao mundo vai durar para sempre.”
E conseguiram introduzir este produto no mercado?
O que eu costumo fazer é ajudar estas empresas a criar o produto que elas quiserem em troca de desenvolver algo que possa ajudar as pessoas – gratuitamente. Claro que conseguiria fazer muito mais dinheiro a patentear este tipo de tecnologias desenvolvidas, mas a minha vida é melhor porque a vida das outras pessoas também é. No caso desta start-up eles acabaram por nunca conseguir desenvolver um modelo de negócio rentável, mas o maior impacto que eles alguma vez terão foi o facto de terem desenvolvido e dado de graça este sistema que ajuda os bipolares. A empresa em si desapareceu, mas o bem que fez ao mundo vai durar para sempre.
Como é que as áreas de neurociência, empreendedorismo e tecnologia se combinam atualmente?
Cada vez mais, como sabemos, há grandes empreendedores a desenvolverem os seus projetos na área das neurociências. Elon Musk tem a Neuralink, Bryan Johnson desenvolveu a Braintree – que foi adquirida pelo PayPal – e eu própria tenho três projetos nesta área. Um dos grupos com que trabalho, chamado Cognition, está a resolver o problema dos pacientes com síndrome de encarceramento, que são pessoas que parece que estão em morte cerebral, mas estão acordadas e conscientes do que as rodeia, só que não conseguem comunicar ou mover-se. Com isto em mente, estamos a desenvolver um sistema que faz com que estas pessoas sejam capazes de comunicar com o mundo exterior. Atualmente, as três áreas estão bastante ligadas.
“Enquanto os humanos detetaram 88% dos erros, os robots foram capazes de identificar 95%.”
Que conselhos daria aos empreendedores portugueses que estão a trabalhar em inteligência artificial, neurociência, machine learning?
Há certas bases que têm de existir em todos os empreendedores, como a importante capacidade de resolver um problema real. Há muitos projetos que simplesmente vendem IA e que não resolvem qualquer tipo de problema. Não consigo perceber a abordagem destas pessoas. A IA é uma ferramenta e estes projetos querem ser vendidos a empresas maiores que têm problemas para resolver. Claro que pode ser super cool ser a próxima start-up a ser adquirida pela Google, mas tenham em consideração que até esta gigante ainda está à procura de formas de fazer dinheiro com este tipo de tecnologia.
Do ponto de vista do negócio, uma das dicas que posso dar aos empreendedores que trabalham nestas áreas é que identifiquem algo que as pessoas já estão dispostas a pagar e vender-lhes mais barato. Por exemplo, advogados. Este tipo de mão-de-obra é bastante cara e passam grande parte do tempo com trabalho monótono: a ler e a rever contratos, por exemplo. Neste contexto, houve uma competição recente na universidade de Columbia em que os advogados competiram com IA para descobrirem erros nos contratos. Enquanto que os humanos detetaram 88% dos erros, os robots foram capazes de identificar 95%. Mais: enquanto os advogados demoraram 90 minutos a ler os contratos, a IA demorou 22 segundos. Ou seja, isto é mão-de-obra extremamente mais barata e não há humano que consiga competir com isto.
Parte-me o coração dizer isto, mas encontrem uma tarefa que esteja a ser feita por humanos pagos a peso de ouro e automatizem-na. É garantido que as pessoas vão comprar o produto ou serviço.
[1] A apresentação de Vivienne começa cerca de três minutos depois da primeira hora de vídeo (1:03:30).