Entrevista/ “Uma empresa sozinha jamais conseguirá fazer com que um produto seja circular”

O Flattie foi desenvolvido por Gabriel Serra e deve chegar ao mercado no próximo ano. Pretende tornar o transporte de um capacete mais fácil e conveniente. Em entrevista ao Link to Leaders, o fundador fala do projeto que acaba de vencer a primeira edição do James Dyson Award em Portugal.
Depois de constatar o elevado número de acidentes com trotinetas e bicicletas elétricas, Gabriel Serra, designer industrial e estudante de doutoramento em Engenharia Mecânica na Universidade de Aveiro, decidiu procurar novas soluções para o problema da proteção de quem recorre a estes meios de deslocação. Assim nasceu o Flattie, um capacete flexível que fica plano quando se retira da cabeça e que se pode guardar numa mochila. Por usar cortiça, aguenta vários impactos e pode inclusive ser reciclado.
O projeto acaba de ser reconhecido na primeira edição nacional do James Dyson Award, tendo recebido um prémio no valor de 5.700 euros que, de acordo com o empreendedor, servirá para continuar a aperfeiçoar o design do produto.
Por ter ganho a competição em Portugal, Gabriel Serra habilita-se ainda anda a entrar na lista dos vinte melhores projetos internacionais do James Dyson Award, que será anunciada a 18 de outubro. Os vencedores serão conhecidos a 15 de novembro.
Como surgiu a ideia de criar a Flattie?
O projeto surgiu com o grande aumento da popularidade da micromobilidade elétrica (trotinetes e bicicletas) nos grandes centros urbanos e o consequente aumento do número de acidentes que envolvem estes veículos. A esmagadora maioria das pessoas não faz uso do capacete e um dos principais motivos é a inconveniência do mesmo – acaba por ser um acessório incómodo devido ao seu volume relativamente grande. Algo que eu próprio, como utilizador de bicicleta, sempre senti.
Por outro lado, percebi que a indústria dos capacetes é pouco sustentável, uma vez que os capacetes são fabricados de modo a que não seja possível separar o casco (feito em polímero rígido) do forro (feito em espuma polimérica, o ‘EPS’) após o descarte do equipamento. Ou seja, não há nenhum reaproveitamento/reciclagem de peças, sem mencionar o facto de todos os componentes serem derivados do petróleo.
Qual o objetivo?
O objetivo é dar resposta a estas duas questões. A primeira conveniência (ou, no caso, a falta dela), através de um design inovador que permite que o capacete se adapte à cabeça no momento da sua utilização e que depois possa ser dobrado, reduzindo o seu volume em 70%. O que torna possível guardá-lo facilmente numa mochila de tamanho médio. E a segunda, sustentabilidade através do uso maioritário de materiais naturais como a cortiça e do próprio design que permite separar as diferentes peças para que possam ser devidamente recicladas/reaproveitadas após o descarte do capacete.
O produto é composto por cortiça (forro), TPU (casca exterior) e um tecido de PET reciclado e, para garantir a sua circularidade, a ideia é que este nos seja devolvido para que possamos fazer a separação das peças e reinserir o material recuperado na economia de maneira apropriada.
“Depois da realização de 19 ensaios de impacto nos laboratórios da Abimota, em Águeda, tivemos a confirmação da eficácia do produto (…)”.
Em que fase está o projeto atualmente?
Neste momento, o projeto encontra-se em fase de aprimoramento e finalização do design e conforto, e no início da criação de um plano de negócio. Até agora o foco estava em garantir a segurança do capacete contra impactos. Depois da realização de 19 ensaios de impacto nos laboratórios da Abimota, em Águeda, tivemos a confirmação da eficácia do produto de acordo com a norma europeia para capacetes de bicicletas.
Quando chegará o Flattie ao mercado.
Apesar de ser algo muito difícil de estimar, recorrendo ao meu otimismo e motivação, diria que o produto poderá estar no mercado no segundo semestre de 2024.
Quais os grandes desafios que se colocam atualmente à economia circular?
São muitos. Uma economia circular funcional é algo bastante complexo, pois envolve diversas entidades que precisam de criar sinergias. Uma empresa sozinha jamais conseguirá fazer com que um produto seja circular. No caso do Flattie, por exemplo, será necessário trabalhar em conjunto com uma empresa de transformação de cortiça para que seja possível tratar e reinserir na economia a cortiça reaproveitada dos capacetes descartados.
É essencial que durante a fase de conceção e desenvolvimento de um produto a equipa de designers e engenheiros tenha estes aspetos em mente: criar produtos desmontáveis, de fácil reparação/substituição de peças, que utilizem materiais recicláveis e/ou reaproveitáveis, entre muitas outras características. Todos estes detalhes acabam também por encarecer o produto, o que cria mais um obstáculo: a viabilidade económica. Os desafios são enormes, mas estamos a caminhar na direção certa!
“O crescimento populacional nas grandes cidades tem levado a um aumento dos congestionamentos, sobrelotação dos transportes públicos e falta de espaço para estacionamento”.
E como antevê o futuro da mobilidade urbana?
O crescimento populacional nas grandes cidades tem levado a um aumento dos congestionamentos, sobrelotação dos transportes públicos e falta de espaço para estacionamento. A este problema acresce também o aumento do preço dos combustíveis e dos próprios meios de transporte que abriram uma oportunidade de mercado para o desenvolvimento de trotinetes e bicicletas elétricas cada vez com mais autonomia e economicamente mais acessíveis.
Estes meios de transportes são cada vez mais procurados pela população, no entanto, a velocidade com que esta mudança irá ocorrer vai depender muito do centro urbano em questão, das suas condições de infraestrutura e da existência ou não de políticas locais de desincentivo ao uso automóvel – como já têm vindo a ser aplicadas em diversas cidades europeias com a restrição do uso de carros nas zonas centrais – e dos incentivos dados aos tipos de mobilidade alternativa.
O que o levou a concorrer à primeira edição do James Dyson Award em Portugal?
Como designer industrial já conhecia o prémio por ser um dos mais prestigiados, a nível mundial, para estudantes. Contudo, por este ser o primeiro ano do prémio em Portugal, nunca tinha tido a oportunidade de participar. Foi uma feliz coincidência estar a desenvolver um projeto pertinente, que se enquadra no contexto do prémio, justamente quando vi anunciada a abertura do concurso para estudantes portugueses. Não tive dúvidas que teria que participar!
De que forma o prémio agora recebido irá ajudar o Flattie?
É, sem dúvida, uma enorme mais-valia! O prémio irá possibilitar a compra de mais material para melhorar o design, a produção de uma pequena quantidade de capacetes com vista a realizar os primeiros testes com utilizadores e a realização dos testes finais de segurança.
“Vejo o Flattie como um produto que simboliza a praticidade da micromobilidade (…)”.
Como vê o Flattie daqui a cinco anos?
Vejo o Flattie como um produto que simboliza a praticidade da micromobilidade e que será, junto das muitas bicicletas produzidas por cá (afinal de contas somos o maior produtor europeu), mais uma marca registada de Portugal.
É fácil ser-se um jovem empreendedor? Quais foram os maiores desafios que enfrentou?
Na minha opinião, ser um empreendedor não é fácil, principalmente para os mais jovens. Não é por acaso que a maioria das start-ups falham logo ao início e os empreendedores de sucesso geralmente são os que insistiram para além da primeira ideia de negócio. Os desafios são grandes a partir do momento em que temos que sair da nossa área de conforto, no meu caso o design/engenharia, e passamos a ter que perceber um pouco de todas as outras dimensões de um negócio: finanças, vendas e marketing, distribuição, gestão, financiamento, e outros mais. O importante é, se possível, rodearmo-nos de uma boa equipa e fazer uma correta gestão das expectativas.
Nem sempre o que idealizamos no início é o que se vai realizar. Portanto, para um principiante, é um caminho de muitas descobertas, aprendizagens e, sem dúvida, muitas pedras no caminho.
Que conselhos daria a um jovem empreendedor que quer lançar um negócio?
Não sei se me encontro em posição para dar conselhos, mas tendo por experiência o curto caminho que percorri até ao momento, diria para ser curioso e procurar, desde o início, aprender sobre todas as dimensões que envolvem um negócio, formar uma equipa o mais multidisciplinar possível e procurar ajuda e aconselhamento de pessoas com experiência no mundo dos negócios. Isto não evitará dificuldades, mas certamente fará com que a caminhada seja mais suave.
“A ideia é tentar estabelecer uma ligação entre mercado e academia fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade competitiva”.
Outros planos para o futuro…
Os planos de momento são fazer com que o Flattie chegue ao mercado e terminar o doutoramento, aproveitando os desafios e aprendizagens que virão pelo caminho. A ideia é tentar estabelecer uma ligação entre mercado e academia fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade competitiva.
Respostas rápidas:
Maior risco: Não chegar onde pretendo com o projeto.
Maior erro: Muito planeamento e pouca execução no início.
Maior lição: O produto que se pensa ser o final, não será.
Maior conquista: O reconhecimento obtido pelo projeto.