Entrevista/ “Sem escala não se resolvem problemas sociais”

João Machado, presidente da Fundação Ageas

A Fundação Ageas celebra 25 anos com uma nova imagem e um novo posicionamento estratégico. Falámos com João Machado, presidente da Fundação, sobre a nova abordagem, a aposta no investimento de impacto e a parceria que irão formalizar com um dos maiores players de investimento de impacto na Europa.

Numa altura em que assinala os seus 25 anos, a Fundação Ageas decidiu inovar na sua abordagem, repensar o foco temático e criar uma política de apoio à escalabilidade de projetos de impacto social.

Depois de fazer uma análise aos problemas atuais da sociedade a que é preciso dar resposta, apresenta agora uma nova estratégia assente na saúde, envelhecimento e exclusão social, e irá atuar em quatro eixos: voluntariado corporativo e cidadania ativa; capacitação de entidades e indivíduos; investimento social e investimento de impacto; explica João Machado, presidente da Fundação Ageas.

O responsável refere ainda que, para além de continuar o “apoio que já foi assumido à maior incubadora de projetos de inovação social em Portugal, a Casa do Impacto”, a Fundação irá nos próximos meses “anunciar uma parceria com um dos maiores players de investimento de impacto na Europa”.

O que levou a Fundação Ageas a apostar num rebranding e numa nova arquitetura de marca nesta altura?
Em 2021 foi decidido que o grupo ia canalizar mais recursos para a Fundação, para que pudesse ter uma intervenção muito mais profunda na comunidade. E na altura fizemos uma revisão estratégica profunda. Decidimos que íamos estar durante algum tempo, estamos a falar de quase dois anos, a operar por baixo do radar para podermos fazer alguns testes com esta nova estratégia, para a irmos afinando até ao ponto em que no dia em que estivesse suficientemente sólida pudéssemos apresentar uma nova marca. E essa é a razão pela qual apresentámos agora a nova imagem da Fundação e não antes. Esta imagem é de alguma forma o topo do iceberg de uma revisão estratégica que fizemos da Fundação.

“Temos em Portugal dezenas de milhares de projetos de inovação social – a sua grande maioria muito pequenos –, que competem uns com os outros e com imensa dificuldade em crescer, quer em impacto, quer em número de beneficiários”.

Qual o propósito da mudança?
A nova imagem tem um foco na adicionalidade e na escalabilidade. O que é que isto significa? Em 2021 quando repensámos a estratégia era claro para nós que havia alguns pressupostos que tínhamos de mudar na nossa abordagem à filantropia. O setor fundacional é um setor ainda com alguns dogmas e era importante perceber onde nós, Fundação Ageas, nos poderíamos concentrar, naquilo que é o nosso know-how específico.

Nós em concreto pertencemos ao universo do Grupo Ageas que tem muito conhecimento em algumas áreas e pouco conhecimento noutras. Tem muito conhecimento na área da saúde, por exemplo, e muito pouco em desperdício alimentar. Portanto, foi pensar quais são as áreas em que temos mais know how e em que podemos ajudar a resolver problemas e usar a Fundação Ageas para canalizar esse conhecimento técnico, operacional, conhecimento de mercado e networking para os projetos de inovação social com os quais trabalhamos.

Por isso, evoluímos de uma Fundação generalista para uma Fundação especializada, e é isto que significa esta adicionalidade, ou seja, o que é que podemos acrescentar. E também definir novos pressupostos, trabalhando com os projetos que já trabalhámos e alguns novos que estamos a decidir. E sempre com o foco na escalabilidade porque sem escala não se resolvem problemas sociais. Temos em Portugal dezenas de milhares de projetos de inovação social – a sua grande maioria muito pequenos –, que competem uns com os outros e com imensa dificuldade em crescer, quer em impacto, quer em número de beneficiários.

Atualmente 22% da população portuguesa tem 65 anos ou mais e prevê-se que, em 2060, esta percentagem chegue aos 36%. Como estamos a tratar a terceira idade?
Não estamos a tratar bem. É um problema para o qual se acordou tarde. É um problema que é consequência de vários fatores. Em primeiro lugar, nascem poucas crianças. Depois é também um país em que muitos jovens acabam por emigrar por não ser muito atrativo do ponto de vista da economia e das condições de vida, e isso descompensa a balança. E na realidade as políticas públicas e a economia social não conseguiram acompanhar a velocidade desta mudança.

Temos um problema grave que não se vai resolver no curto espaço de tempo. Não há soluções fáceis, mas há boas soluções. No entanto, estas soluções são muito pequenas, não têm escala. E daí, mais uma vez, esta pertinência de uma Fundação querer contribuir para os problemas da sua geração e ter de ir atualizando a sua estratégia.

Combater o isolamento dos mais idosos é um dos grandes desafios da nossa Era?
Absolutamente e em Portugal concretamente. Portugal sofre muito deste problema. Costuma-se dizer que é um mau país para envelhecer, mas depende. Se tivermos um grande poder de compra é um espetacular país para se envelhecer. Mas essa não é a nossa realidade. E isto preocupa-me porque antes de sermos colaboradores do grupo, somos filhos. Temos os nossos pais e os nossos avôs. Este não é um problema que se vá resolver no curto prazo e com injeção de muito capital. Implica mesmo uma mudança sistémica e essas são as mais difíceis de operar.

Porque é que ainda se olha para o envelhecimento como uma fase menos digna do ser humano?
Naturalmente que não é uma fase menos digna, mas é talvez o ciclo de vida das pessoas onde existe menos cuidado com elas. É de facto uma fase da vida para a qual existem poucas intervenções estruturais para as apoiar naquilo que realmente precisam. Isto é muito injusto. Estas pessoas já trabalharam, já serviram o país, descontaram os seus impostos, tiveram os seus filhos e os seus netos e de repente não têm o devido apoio. É para lá de injusto!

“Não nos interessa ser uma Fundação única, pelo contrário quero é que existam 20 Fundações iguais à Ageas no país, porque assim podíamos ter outros pares com quem cofinanciar e cocriar”.

De que forma podem os mais novos ajudar para estarem mais atentos aos problemas sociais?
Desde logo ter um papel ativo a comunicar. Isto era um dos dogmas da filantropia que não se podia comunicar intervenção na comunidade porque podia ser visto como um gesto de vaidade. Mas na realidade, se não comunicarmos, as pessoas não vão saber o que está a acontecer. Portanto, é preciso comunicar mais, comunicar melhor, porque comunica-se mal. É preciso ter uma abordagem pedagógica, mas também é preciso ter uma abordagem que não procure o protagonismo.

Não nos interessa ser uma Fundação única, pelo contrário quero é que existam 20 fundações iguais à Ageas no país, porque assim podíamos ter outros pares com quem cofinanciar e cocriar. Quando os jovens têm contacto com projetos de inovação social através do voluntariado, ou seja, porque fazem um estágio, é difícil a esse jovem voltar atrás e não querer saber mais da sua intervenção comunitária. Por defeito, não há muita gente que ignore um bom projeto de inovação social.

Qual tem sido o contributo da Fundação Ageas para apoiar esta faixa etária da população?
A Fundação Ageas intervém na comunidade por via dos projetos que apoia. Não temos beneficiários finais diretos. Os beneficiários finais sãos os beneficiários finais das organizações com quem trabalhamos. E o nosso trabalho é apoiar projetos de impacto social, uns muito inovadores outros nem tanto, mas que são eficazes, Procuramos capacitá-los para que façam um melhor trabalho, mais eficaz, mas acima de tudo para que possam crescer e servir mais pessoas.

Prefiro que exista uma solução de inovação social direcionada aos seniores que sirva 200 pessoas do que não exista. Mas prefiro antes que esta solução sirva 200 mil pessoas do que sirva só 200. Por isso, esta transição de pequenos projetos para projetos grandes que cheguem a uma parte considerável da população é o nosso foco e é aí que estamos a trabalhar.

Trabalhamos com vários projetos de inovação social, desde a 55+, para estímulo da empregabilidade acima dos 55 anos, até a Pedalar sem idade. Fomos os primeiros investidores sociais na Pedalar sem idade e seremos, em breve, investidores de impacto neste projeto, que visa combater a solidão extrema por via de passeios em Trishaw.

Trabalhamos com a Palhaços d’Opital que oferece performances artísticas a seniores que estão hospitalizados. Este é um exemplo perfeito. Existem vários grupos artísticos que vão levar alegria a crianças hospitalizadas, mas só há um grupo que o faz com seniores. É paradigmático daquilo que acontece. Nós temos muitas soluções para vários segmentos da população, mas só agora estamos a acordar para o problema da faixa senior.

Somos uma Fundação e uma Fundação sozinha faz muito pouco. A meu ver, uma fundação tem de trabalhar no sentido de apoiar projetos a crescer até um certo ponto e depois esses projetos podem influenciar as políticas públicas. E a forma mais eficaz e rápida de contribuirmos para a resolução de um problema social é influenciar a política pública.

O que é que isso significa? Impressionar para que se criem leis que obriguem à mudança de comportamentos. O que queremos fazer é identificar bons projetos, ajudá-los a crescer e fazer com que influenciem a política pública. No dia em que a política pública mudar e obrigar as autarquias ou as entidades de economia social local a agir de uma determinada forma, isto é muito mais eficaz do que apoiar muitas centenas de projetos em todo o país.

O Estado deve ter um papel mais ativo e interventivo nestas questões?
Eu não culpo o papel do Estado e não acho que exista propriamente falta de capital ou perfil ou intenção por parte do setor público para criar soluções e para implementar novas soluções que contribuam para a redução dos problemas sociais.

No entanto, existem muitos problemas. É importante haver foco e muitos problemas precisam de ser resolvidos – uns a médio prazo, outros a longo prazo. É difícil compreender a prioridade do Estado e entender o plano que existe – quando há –, ou seja, perceber qual o plano que o Governo tem para a resolução daquele problema. E depois fazer com que o Estado tenha mais perfil para trabalhar com outro tipo de stakeholders. Nós enquanto Fundação muitas vezes temos dificuldade em chegar às entidades públicas que tutelam prioridades de política pública nas quais trabalhamos. E isto é um mau princípio porque o Estado não vai resolver tudo sozinho como nós não vamos resolver tudo sozinhos.

“O que eu sinto é que em Portugal ainda existem poucas Fundações corporativas. São Fundações com estratégias pouco claras e que arriscam pouco”.

Como analisa o estado da filantropia em Portugal?
Filantropia é imprescindível à estabilização de uma sociedade civil seja em que país for. Há países que têm um setor filantrópico mais maduro do que outros e Portugal, apesar de ser um país pequeno, tem a sorte de ter, por exemplo, uma Fundação Calouste Gulbenkian que é a oitava maior da Europa no que diz respeito ao orçamento. Seriamos um país muito diferente se não houvesse uma Fundação Calouste Gulbenkian, uma Fundação Champalimaud, uma Fundação Francisco Manuel dos Santos, que faz um trabalho no que diz respeito ao estudo da sociedade portuguesa, se calhar hoje muito mais profundo do que a entidade pública designada para isso – que é o Instituto Nacional de Estatística. Portanto, em alguns pontos estamos muito bem servidos no que diz respeito à pertinência do trabalho de algumas Fundações.

As fundações não se podem colocar todas no mesmo saco – temos fundações corporativas, patrimoniais .. e no nosso caso temos uma fundação corporativa, que tem acesso a um tipo de conhecimento que pode ser canalizado para a economia social.

O que eu sinto é que em Portugal ainda existem poucas fundações corporativas. São fundações com estratégias pouco claras e que arriscam pouco. Acredito numa rede de fundações corporativas mais propensas a trabalhar em rede e a arriscar mais na forma como financiam o crescimento de projetos de inovação social e a fazer com que, ao invés de termos hoje dezenas de pequenos projetos de inovação social, tenhamos menos projetos, mas que cheguem a mais pessoas. Por isso, digo que falta alguma disrupção, algum trabalho em rede entre Fundações, e as corporativas têm um papel a desempenhar relevante que ainda não estão a desempenhar.

Faltam projetos de empreendedorismo social em Portugal que tenham realmente impacto?
Não. Acho que temos feito um trabalho enorme nos últimos anos, com o surgimento de uma rede de incubadoras de impacto social, com o surgimento, por exemplo, da Casa de Impacto, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que tem feito um trabalho notável. Associámo-nos recentemente à Casa do Impacto para cocriar um programa chamado Santa Casa Challenge dedicado ao desenvolvimento de soluções para os seniores. A Portugal Inovação Social também teve um papel fundamental ao financiar várias centenas de projetos de inovação social nos últimos sete anos.

Por isso, não acho que falte talento, bons projetos de empreendedorismo social. O que acho que falta é outro tipo de apoios e outros tipos de capital e de abordagens para se fazerem pequenos projetos e para que esses pequenos projetos deixem de ser pequenos para passarem a ser grandes.

Para concretizar a sua ação no terreno, a Fundação apresentou quatro eixos: voluntariado corporativo e cidadania ativa; capacitação de entidades e indivíduos; investimento social e uma nova área de investimento de impacto. Qual o que será de maior aposta nos próximos meses?
Somos a primeira Fundação em Portugal a ter uma abordagem de investimento de impacto, mas estamos longe ser a primeira na Europa. Esta área é focada na escalabilidade de projetos. E em relação a todas as áreas, sublinho que vamos, naturalmente, apostar em todas e queremos que umas contaminem as outras. Mas a grande novidade desta estratégia é o investimento de impacto que consiste em apoiar a escalabilidade dos projetos de inovação social que já existem, que já demonstraram o seu valor e que têm impacto numa escala pequena.

O que vamos agora fazer é investir para evoluir de uma lógica de pequenos donativos para uma lógica de investimento de capital paciente, onde vamos aportar muito apoio não financeiro especializado e vamos trabalhar com a equipa daquele projeto para que tenha daqui a cinco anos o quádruplo ou quíntuplo. É uma espécie de aceleração de longo prazo. Fazer crescer um projeto de inovação social é uma história única.

“Em breve, espero que sejam no máximo dois meses, vamos anunciar uma parceria com um dos maiores players de investimento de impacto na Europa”.

Que outros projetos futuros podemos esperar da Fundação?
Podem esperar um apoio que já foi assumido à maior incubadora de projetos de inovação social em Portugal, a Casa do Impacto. Em breve, espero que sejam no máximo dois meses, vamos anunciar uma parceria com um dos maiores players de investimento de impacto na Europa. O foco é poder dar acesso e apoio não financeiro ao mais alto nível aos projetos de investimento de impacto nos quais vamos trabalhar, ou seja, dar acesso aos maiores investidores de impacto, fundraising… aos maiores da Europa. Nos próximos meses vamos continuar fazer um roadshow nas Fundações, a ir de Fundação a Fundação e ver os nossos pontos comuns e depois projeto a projeto o que faz mais sentido.

Como podem as empresas também contribuir para uma maior inclusão dos mais vulneráveis? Há em Portugal bons exemplos ao nível corporativo?
O lado corporativo pode fazer imensas coisas. Na realidade, o impacto social não pode ser um feudo da economia social. A economia social tem um papel necessário, mas limitado. É importante que as empresas trabalhem com projetos de inovação social porque depois esses projetos passam a ter capacidade para influenciar a criação de novos produtos e serviços. Produtos esses que podem ser destinados aos segmentos da população que hoje estão vedados àquele produto. Um primeiro passo pode ser tentar trabalhar com projetos de inovação social e trazê-los para a cadeia de valor.

O que gostaria de fazer à frente da Fundação Ageas e ainda não teve oportunidade?
Gostaria de contribuir para o início de uma nova etapa no setor fundacional em Portugal, onde nós Fundações possamos trabalhar mais em conjunto. E também gostaria de contribuir para influenciar outras Fundações corporativas a correrem mais riscos na hora de apoiar a inovação social.

Há algum projeto que gostasse de trazer para a Fundação?
Gosto muito de um projeto irlandês chamado Freebird Club que é só para pessoas acima dos 65 anos e que é semelhante a um airbnb. Mas apresenta uma diferença: o host não sai do espaço no momento do arrendamento. Por exemplo, um senior que vê os seus filhos a sair de casa porque foram às suas vidas pode arrendar os quartos. Gera rendimento adicional e combate a solidão. Peter Mangan, o seu CEO, começou a pedir às pessoas que usavam a plataforma o número de vezes que iam ao médico um ano antes de se inscreverem e depois de se inscrevem e há uma redução enorme e um maior bem-estar e felicidade entre estas pessoas.

Respostas rápidas:
O maior risco: Foi um risco vir trabalhar para uma Fundação corporativa, sendo eu um crítico do setor fundacional corporativo.
O maior erro: Não ter sido muito interventivo na comunidade nos meus primeiros anos de faculdade.
A maior lição: Que as coisas não são nem tão boas nem tão más como parecem.
A maior conquista: Lançarmos uma estratégia na Fundação Ageas com a qual estamos entusiasmadíssimos e com a qual nos parece que vamos contribuir substancialmente para um melhor trabalho dos nossos projetos.

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