Opinião

Roteiro para uma reindustrialização de munições de guerra em Portugal

André Marquet, cofundador da Productized

Neste momento, a Ucrânia estima necessitar de cerca de 600.000 munições, mensalmente, para o teatro de operações. No entanto, a Europa não consegue produzir mais de 50.000 munições calibre NATO de 155mm, e os EUA sensivelmente a mesma quantidade.

A União Europeia tem o objetivo declarado de chegar a um ritmo de produção de 85.000 munições mensalmente. Ainda assim, muito abaixo das necessidades de guerra na Ucrânia – sendo que a Rússia tem também debilidades na sua capacidade de produção. Assim, a maior parte dos stocks de guerra europeus estão seriamente debilitados.

Alguns países da Europa de Leste têm vindo a colmatar estas falhas, sendo que apenas 12 países da UE têm capacidade instalada para a produção deste tipo de munição. Como se poderiam então criar condições para voltarmos a desenvolver munições de guerra em Portugal?

Depois do desmantelamento na década de 1990, das Indústrias Nacionais de Defesa (INDEP), das antigas instalações da Fábrica da Pólvora de Barcarena e da Fundição de Oeiras, Portugal perdeu a capacidade de produção autónoma de munições de guerra. Rever as imagens do funcionamento daquelas instalações nos arquivos da RTP faz-nos lembrar as imagens de uma realidade alternativa, como se estivéssemos numa ficção Dickiana, qual homem no castelo alto.

Felizmente, Portugal conta com uma base industrial suficientemente diversificada para esse efeito, e está perfeitamente à altura de poder assumir um papel relevante neste campo, caso haja capacidade de mobilização de vontades.

Aquilo que se propõe é que, numa primeira instância, seja criada uma task force nacional para estudar esta possibilidade do ponto de vista técnico, industrial e económico financeiro, eventualmente liderada pela idD – Portugal Defense e incluindo, mas não limitando, o convite à AIP- Associação Industrial Portuguesa (inventariação das capacidades industriais), ao ISQ – Instituto de Soldadura e Qualidade, à Academia Militar/ CINAMIL, ao Laboratório de Explosivos da Marinha, e ao INEGI- Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia (responsável pelo dossier industrial do projeto).

Ao contrário de outros setores de atividade económica, as especificidades deste setor implicam que as diversas empresas da cadeia industrial (necessárias para uma iniciativa privada de retoma da produção deste género de equipamento militar) tenham poucos incentivos de mercado para se auto-organizarem em torno de um projeto desta natureza, sem garantias de compra, e sem um “caminho simplificado” de autorizações industriais e ambientais para um projeto com tantas condicionantes e incerteza. No entanto, é de interesse estratégico nacional até porque Portugal tem vindo a alinhar com a NATO e a UE no reforço das capacidades ucranianas.

Portugal pode, por isso, através da idD afeta ao Ministério da Defesa, com uma liderança conjunta civil, académica e militar, organizar a indústria nacional para este efeito específico de criar capacidade industrial de produção de munições militares, e poder até manter-se acionista de referência no projeto, como acontece noutras empresas desta área.

Esta task-force terá, desde logo, de trabalhar na componente de transferência de tecnologia – dado que já há pouco saber-fazer nacional que possa ser aproveitado na sociedade civil, existindo know-how sobretudo junto dos militares das Forças Armadas. Será assim necessário contratar consultores especializados junto de países aliados que estejam dispostos a apoiar esta operação.

De forma simplificada, este tipo de munições é constituído por três componentes principais, 1) o cartucho, que impulsiona o 2) projétil de aço forjado que contém o explosivo tipo TNT, e que é acionado por uma 3) espoleta frontal, por exemplo, ao colidir com o alvo.

Espoleta

O desenvolvimento da espoleta é porventura a parte mais delicada; contudo, não faltam empresas de metalomecânica nacionais com capacidade para aceitar este desafio. Dependendo do tipo, as primeiras gerações serão necessariamente mais simples, sendo que o seu fabrico pode ser adicionado ao “chão de fábrica” de instalações já existentes, com algumas adaptações dada a quantidade de explosivos necessária na sua fabricação. Sem dúvida que esta poderá ser uma das áreas prioritárias de atuação, mesmo antes da colocação ao serviço da componente fabril de projéteis.

Ôbus

O invólucro em aço forjado do projétil pode ser produzido com cilindros de aço fornecidos pela  Siderurgia Nacional, e a cinta de guiamento de rotação (feita de cobre) pode ser comprado à Somincor SA. Quanto aos explosivos, o maior fabricante nacional não fabrica TNT, que é o tipo de explosivo mais comum para os obuses deste tipo, pelo que teria de se estudar a possibilidade de fabrico deste tipo de explosivo, convidando um grande grupo industrial químico, com é o caso da Bondalti SA, do Grupo José de Mello, e uma empresa de celuloses de referência como a Navigator SA.

Industrialização

Existem várias possibilidades relativamente à localização de uma unidade fabril, mas a montagem da linha industrial perto do fornecedor de aço será talvez a mais vantajosa, com algumas câmaras municipais potencialmente mais interessadas neste tipo de projeto. A margem sul de Lisboa poderá oferecer boas condições, por exemplo no parque industrial dos antigos terrenos da Siderurgia Nacional em Paio Pires, por se encontrarem parcialmente disponíveis e já descontaminados, com a proximidade de vários fornecedores de referência e de diversas instalações da Marinha, nomeadamente do Laboratório de Explosivos em Almada, e poderem ser fornecidos por via marítima, e suficientemente longe de populações residentes, em caso de acidente grave.

Um dos grandes desafios não será a montagem da fábrica, uma vez que existem em Portugal várias empresas de engenharia e construção civil mais do que capacitadas para o fazer, mas antes a maquinação da fábrica propriamente dita, dado que muitos dos equipamentos fabris necessários se encontram fora de produção ou em linha de espera para vários clientes internacionais, que também estão a reforçar e modernizar as suas linhas de montagem. Também neste ponto, existem várias empresas nacionais especializadas em fornecer o setor metalomecânico, que podem fazer engenharia indústria 4.0 e que devem ser convidadas a participar no consórcio fundador.

Um investimento desta natureza será seguramente na casa das dezenas de milhões de euros, e pode, em função da natureza da sociedade que venha a ser criada e dos seus acionistas, ser parcialmente financiado por entidades bancárias, ou entidades estrangeiras interessadas, pelo Estado e por fundos de entidades da Agência de Defesa Europeia, entre outros – tomando como contrapartida o assumir por parte de Portugal, da garantia de fornecimento de uma percentagem não despiciente das necessidades já referidas anteriormente.

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André Marquet

André Marquet

André Marquet é formado em Engenharia de Telecomunicações e mestre em informática, pelo ISCTE-Universidade de Lisboa. Iniciou a sua carreira como investigador de redes informáticas no INESC Lisboa. Trabalhou na Tunísia para a EFACEC. Ocupou cargos de consultor na AICEP, e na Nokia. Abraçou a Gestão de Produto na Wit Software e Huawei. Em 2009 trouxe as conferências TEDx para Portugal e cofundou e teve uma função executiva na Beta-i, um hub de start-ups de inovação. Atualmente, atua como líder... Ler Mais..

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