Opinião
A importância do inútil no combate à estupidez
Nas férias li dois livros muito diferentes um do outro: “A história natural da estupidez”, de Paul Taboori, e “A utilidade do inútil”, de Nuccio Ordine. As suas diferenças parecem evidentes em diversos sentidos.
Os autores são de nacionalidades diferentes, viveram e escreveram as respetivas obras em épocas com distância significativa, e têm estilos e alcances distintos. O ponto em comum que lhes encontro é o facto de cada escritor ter recorrido à História para encontrar os fundamentos e os exemplos que dão corpo à estória das suas ideias.
Um dos aspetos extraordinários que os livros possuem é a possibilidade de neles encontrarmos e criarmos associações e ligações com outros textos, com as nossas experiências e com as vivências que observamos noutros. Tudo isto acontece através das reflexões e das emoções que a leitura nos desperta. Tudo isto parece inútil, não? Talvez, mas quem sabe possa ser interessante ou importante. Estas leituras particulares permitiram-me uma associação que não tinha feito antes; não com esta perspetiva, pelo menos: a estupidez humana está intimamente ligada à dicotomia inutilidade-utilidade. Muita da estupidez mais grandiosa produzida pela humanidade foi criada ao atribuir utilidade àquilo que é absolutamente inútil.
Poder-se-ia começar esta exploração por tantas áreas da acção humana; tanto se conseguiria escrever sobre este assunto. Contudo, para efeitos de brevidade e de pertinência, começarei com uma pequena viagem pela estupidez e a sua ligação à utilidade no mundo do trabalho. Taboori, no seu compêndio, tudo menos estúpido, sobre a estupidez, dedica um dos capítulos à burocracia. Conduzidos pelo desejo do controlo e pelos devaneios e manias de grandeza provocados pelas estruturas hierárquicas, os burocratas criam regras, procedimentos e camadas densas de estupidez que impedem a lucidez e o livre trânsito do bom senso e da fluidez nas relações humanas.
Nas décadas de 40, 50 e 60 do século passado sonhava-se que a semana se resumiria a quinze horas de trabalho. Os avanços na automação, dos computadores e de outras máquinas aproximar-nos-iam do ideal que muitos homens e mulheres buscam desde que se começaram a pensar a si próprios: viver sem a necessidade de trabalhar. Porém, esses que assim idealizavam o nosso presente, não tiveram em conta a abrangência, a criatividade e a intemporalidade da estupidez humana. A resistência à mudança ou, por outra, a necessidade cega de manter o status quo, leva-nos a ocupar de forma idiota o espaço que criamos e o tempo que poupamos. Persiste a ideia que é pelo trabalho que nos libertaremos. E o desejo de liberdade, paradoxalmente, faz-nos construir celas cada vez mais sofisticadas.
Numa outra leitura mais longínqua, lembro-me de tomar contacto com um exemplo perfeito, quase anedótico, da estupidez da burocracia e do mundo do trabalho. O relato era sobre um funcionário de uma empresa que detectara um problema na sua secretária. Como mandavam as regras, contactou o departamento responsável por esse tipo de reparações. O carpinteiro de serviço tardou em aparecer para resolver o assunto. Depois de uma semana de telefonemas diários para o tal departamento, o funcionário recebe uma chamada de uma pessoa recém contratada pela empresa que o informa que o carpinteiro tinha recebido o pedido e que estava atrasado à conta da quantidade de pedidos que recebia regularmente. Ora, esta empresa contratou uma pessoa para gerir a agenda do carpinteiro, que estava muito ocupado. Não faria mais sentido contratar um segundo carpinteiro para poder dar vazão ao volume de pedidos? Pelos vistos, na mente dos responsáveis, não.
Recordo-me também de uma situação que se passou comigo. Numa das minhas primeiras experiências profissionais, fiquei encarregue de passar um conjunto de textos para um formato que fosse inteligível para alguns operadores das lojas da empresa para quem trabalhava. Lembro-me de não ser a tarefa mais estimulante do mundo e de me terem dado uma semana para a concretizar. Perguntei se havia algo mais que eu pudesse fazer ou algum outro assunto em que pudesse ser útil. Responderam-me que não. Ingenuamente, decidi concluir a tal tarefa o mais rápido que conseguisse. Ao livrar-me daquilo poderia dedicar o meu tempo a ler, a conhecer melhor os colegas e a organização ou a não fazer nada. Ao fim de dois dias estava na secretária a ler um artigo, sobre a actividade da empresa para quem trabalhava. Já tinha terminado. Fui abordado pela pessoa que me tinha pedido o trabalho. Não me esquecerei do desapontamento e da indignação que a sua cara me mostrou. Apesar de bem feita, não era suposto ter terminado a tarefa tão cedo. Agora não tinha nada para eu fazer e “era inadmissível que eu estivesse sem fazer nada no seu tempo”. No seu tempo? Foi a primeira vez que senti que ao trabalhar por conta de outrem se instalava a noção de que a “propriedade do tempo” (se é que este conceito faz sentido) é cedida por troca de um salário. De fato, ao terminar cedo, criei um problema: havia que inventar algo com que eu me pudesse ocupar. Rapidamente se chegou à solução, utilizando jargão próprio: “faz exactamente o mesmo mas experimenta com layouts diferentes”. Assim o fiz, deixando-me estupidificar.
No mundo do trabalho idiota, a eficácia não é recompensada. Pelos vistos valorizam-se mais aspectos como a propriedade do tempo de outros e o poder que daí advém. Portanto, um trabalhador esperto e que tenha uma noção mínima de economia do esforço não fará o seu melhor. Fará apenas o suficiente para dar a ideia de que está a fazer algo de útil com o tempo que, afinal, não é seu.
O mundo do trabalho é responsável por uma das formas de estupidez mais difíceis de detectar. Por isso mesmo, é das estupidezes onde nos encontramos mais vezes. Refiro-me a um fenómeno que, acredito, todos os leitores deste texto já terão sentido alguma vez – espero que não o sinta de forma constante, não seria bom sinal, para si. Estar-se a fazer algo que se julga ser útil quando, na verdade, não há qualquer utilidade nisso. O mundo do trabalho de hoje é exímio em criar condições para nos convencer de que o que fazemos é útil. Em muitos casos, não é. É apenas algo que alguém inventou porque acreditava que tínhamos de ter algo para fazer. Por sua vez, essa pessoa também poderá estar sujeita ao mesmo, por alguém mais acima na hierarquia. Estúpido, não?
Como referi noutro artigo, e como nos demonstra Ordine no seu manifesto, adquirir a liberdade e conseguir a capacidade de nos entregarmos ao inútil pode trazer-nos grandes benefícios. Um deles é combatermos a estupidez humana, começando por nós próprios. Contudo, acredito que pouco ou nada ganharemos se não nos questionarmos sobre a utilidade do que fazemos. Para isso, provavelmente, teremos de nos dedicar a reflexões que outros considerarão completamente inúteis. Para isso, como nos diz Taboori nas últimas linhas do seu livro, há que ter vontade de nos curarmos da nossa própria estupidez.