Opinião

Reformar: O mito da transformação digital sem liderança transformadora

Rui Ribeiro, professor da Universidade Lusófona e consultor de Transformação Digital

Durante anos ouvimos — e repetimos — que a transformação digital era inevitável. Que ou as organizações se transformam ou desaparecem. Que é preciso investir em tecnologia, automatizar processos, adotar ferramentas cloud, IA, dados. Tudo isso é verdade. Mas é apenas parte da verdade.

Porque nenhuma transformação tecnológica é real se não for acompanhada por uma liderança capaz de a pensar, desafiar e operacionalizar com coerência e ambição. O problema não é a falta de sistemas. É a ausência de líderes verdadeiramente transformadores — e isso aplica-se tanto ao setor privado como à administração pública.

Num momento em que o Governo assume como eixo central da sua governação a Reforma da Administração Pública, torna-se imperativo que se entenda o seguinte: sem lideranças públicas capazes de pensar diferente, assumir riscos e desafiar o “sempre foi assim”, não há digitalização que valha. A reforma exige muito mais do que um novo portal ou uma aplicação móvel. Exige uma nova forma de olhar para o Estado, para os processos e para a entrega de valor ao cidadão e à economia. E isso não se faz com automatismos cegos nem com soluções copiadas — faz-se com lideranças fortes e estrategas digitais de verdade.

É neste contexto que a provocação recente do CEO da Shopify deve ser levada a sério: “Prove que a IA não pode fazer este trabalho antes de pedir para contratar alguém.” Esta afirmação, que à primeira vista pode parecer radical, obriga-nos a refletir com profundidade sobre a real utilidade e valor de cada função dentro de uma organização. Num momento em que se generaliza a ideia de que as ineficiências se explicam com a frase “faltam-nos pessoas”, talvez o que falte mesmo seja visão estratégica, coragem para reformar e foco nos resultados.

Se não mudarmos o modelo de gestão — seja no setor privado ou na administração pública —, a inteligência artificial deixará de ser um apoio operacional e tornar-se-á rapidamente um substituto inevitável. A transformação digital não substitui a liderança, mas obriga-a a evoluir. Exige que se antecipe o impacto da automação, se redesenhem processos que estão obsoletos e se justifique cada contratação com base em valor acrescentado — e não por inércia ou falta de planeamento.

Uma liderança verdadeiramente transformadora não se limita a aprovar orçamentos ou comprar tecnologia. Muda a cultura organizacional. Cria espaço para experimentar, errar e aprender com rapidez. Dá autonomia real às equipas, responsabiliza-as com ambição, desafia o status quo com base em dados e visão, e recusa planos estanques como verdades absolutas. Porque a transformação digital é um processo vivo, que se adapta, evolui e exige capacidade de reação contínua.

Se o Estado — tal como as empresas — quer tornar-se mais ágil, mais simples e mais eficaz, precisa de líderes que combinem visão estratégica com execução transformadora. A verdadeira reforma administrativa não se faz com slogans nem com circulares internas, mas com decisões ousadas e consistentes, pensadas para servir melhor o cidadão. Liderar é antecipar, capacitar, corrigir e decidir. E é neste equilíbrio que se joga o sucesso da transformação.

A liderança não é um adorno no processo de digitalização — é a base sobre a qual tudo o resto se constrói. Porque a tecnologia muda, atualiza-se, substitui-se. Mas uma cultura pública ou empresarial bem liderada, com propósito, resiliência e clareza, é o verdadeiro ativo intangível que garante que o futuro será não apenas possível, mas melhor.

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Rui Ribeiro

Rui Ribeiro

Atualmente é professor da Universidade Lusófona e consultor de Transformação Digital, tendo tido várias atividades profissionais, entre as quais Head of Consulting & Technology na Auren Portugal, diretor-geral da IPTelecom, diretor comercial da Infraestruturas de Portugal S.A., diretor de Sistemas de Informação na EP - Estradas de Portugal S.A. e Professional Services Manager da Sybase Inc. em Portugal. Na academia é diretor executivo da LISS – Lusofona Information Systems School, e docente da ULHT. Rui Ribeiro é doutorado em Gestão... Ler Mais..

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