Opinião

Que economia queremos para Portugal?

David Cruz e Silva, fundador da Hack & Hustle

Foram as oito badaladas serenas, mas determinadas, do relógio da minha bisavó Joaquina que interromperam aquele estado mental de imersão total e de envolvimento nos meus objetivos e tarefas diárias. Passou mais um dia. Mais um dia com um ligeiro sentimento de culpa. A culpa de passar o dia em casa sem estar em casa. A culpa de trabalhar de casa, mas não viver a casa.

Apresso-me a desligar o interruptor trabalho e precipito-me a descer as escadas. Cada degrau passado, maior a antecipação por, finalmente, estar na casa, viver a casa. A cada lanço, maior a antecipação de estar com a família. De os escutar, observar e aproveitar.

Gosto de me apresentar como empreendedor. Um inovador. Um nómada digital e um pioneiro. Mas na verdade, ao fim do dia, sou apenas mais um português. Um português com valores familiares fortes, que lembra aqueles que já partiram com saudade e que aproveita os que cá estão, e que desenrasca tudo e mais alguma coisa pelos seus. Neste ritual de fim de dia, entre velhos e novos, os poucos que se preparavam para confinar, pouco me distrai. Não fosse este novo confinamento, o ritual não seria interrompido.

Com alguma tristeza, mas sem grande surpresa, lá fomos ouvindo as especulações, dúvidas e eventualmente medidas para prevenir contágios. Lá fomos acatando o confinamento. Lá nos fomos conformando com o pesar da responsabilidade.

Diariamente, era o mesmo corso carnavalesco de sempre. Os mesmos porta vozes. Os mesmos representantes. Digamos, lá vinham os suspeitos do costume a exigir apoios a fundo perdido e eternizando a dita expressão: “quem não chora, não mama”. Lá vinham eles exigindo ajudas imediatas e sem critério, argumentando que a sua indústria, o seu setor, lidou eximiamente com esta pandemia. Argumentando que o coronavírus, esse, não se propagou nem propaga devido aos seus associados ou à sua atividade empresarial. Cada um a zelar pela sua “quinta”.

Não sou anticapitalista ou contra a iniciativa privada. Bem pelo contrário, acredito que os privados, que as empresas, que a indústria, podem e devem ser exemplo. Mas sejamos sérios. Se as coisas estão negras hoje é culpa de todos os portugueses. Privados e públicos. E não são representantes setoriais, empresariais ou similares que nos vêm dar lições de epidemiologia. O seu trabalho é outro. O seu mandato é representar os interesses dos seus associados. É defender os interesses, muitas vezes apenas comerciais, dessas empresas.

É no meio deste entusiasmo, quase revolta, que penso nos jovens, por vezes bem mais jovens que eu, com quem trabalho.

Penso no Diogo, um jovem cientista, doutorado, casado e pai de um filho, que no início de 2019 iniciou a sua aventura de empreendedor. Penso nele porque tem um negócio com o potencial de ajudar meio milhão de pessoas com problemas de saúde.

Penso no Paulo, um amigo do tempo de universidade, engenheiro, expatriado, que em plena pandemia decidiu ser parte da solução. Penso nele porque conseguiu, durante estes tempos, juntar uma equipa para tentar reescrever a saúde com um modelo de negócio altamente escalável.

Penso no Tomás, um jovem médico, que, para além do serviço público que já presta profissionalmente, começou em 2018 uma jornada com a sua empresa. Penso nele porque se dedicou a contribuir para a educação dos seus colegas médicos.

Penso nestes jovens. De imediato nestes pois são empreendedores da área da saúde. Mas penso em muitos outros e de muitas outras áreas. Penso nos vários que tenho a oportunidade e sorte de conhecer diariamente. Penso no futuro de Portugal. Penso nos nossos empreendedores.

O Fórum Económico Mundial apresentou recentemente o “O Grande Recomeço” (adaptado do Inglês “The Great Reset”). Este recomeço do capitalismo reconhece a possibilidade de uma recessão económica global, mas, embora o considere provável, salienta que ele não é inevitável. Para tal, temos de renovar (vulgo para reformar) as nossas sociedades e economias, desde a educação aos contratos sociais e mundo do trabalho, e transversalmente a todas as indústrias. É sob esta égide que “O Grande Recomeço” apresenta três grandes vetores:

  1. O mercado deve estar orientado para a concretização de resultados mais justos, seja através de nova regulação para a propriedade intelectual, comércio ou concorrência, da mudança de impostos, ou da retirada dos subsídios aos combustíveis fósseis, entre outros;
  2. Garantir que os investimentos contribuem para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável;
  3. Potenciar as inovações da Quarta Revolução Industrial para responder aos desafios sociais e de saúde.

Enquanto isto, em Portugal, vê-se esta procissão de diferentes associações empresariais, ordens profissionais, confederações, federações, enfim, as caras que vimos a conhecer, infelizmente, cada vez melhor, a exigir sem grande vergonha. São tempos difíceis, sem dúvida alguma. Mas é nesta altura, de recomeço, que temos de fazer perguntas ainda mais difíceis.

Queremos continuar a ser um país que vive da beneficência de turistas (se é que o Turismo voltará alguma vez a ser o que era)?
Queremos continuar a servir os ricos que nos vêm visitar, que, afinal de contas, nos países deles, são classe média?
Queremos uma economia focada em indústrias de baixo valor acrescentado, de baixos salários e oferta de serviços barata?
Mais importante, queremos continuar a dar ouvidos a estes porta vozes que exigem apoios e ajudas imediatas?

Para mim a resposta é simples. Não. É verdade que são tempos difíceis e que é preciso ajudar, de alguma forma, a economia a resistir. Vejamos o que nos diz o Fórum Económico Mundial: é tempo de “potenciar as inovações da Quarta Revolução Industrial”. Em Portugal vemos os mesmos apoios, os mesmos fundos perdidos, a irem sempre para as mesmas indústrias e o mesmo tipo de empresa. As empresas que, sem esses apoios, não seriam capazes de sobreviver. Pergunto. Onde está a sustentabilidade? Não são essas as piores empresas no país? Em Portugal, o Governo abriu os cordões à bolsa, mas só para as empresas que perderam volume de negócio! Então e a empresa que se reinventou, a custo, e lá conseguiu manter, mais ou menos, o volume de negócio? Então e a empresa que acabou de ser criada sem saber que vinha aí este desastre de saúde pública? Então e a empresa que é tão inovadora e robusta que lidou com isto tudo de forma exímia? Talvez esteja a ser injusto. Talvez esteja, até, a ser prepotente.

Mas não seria melhor ajudar as empresas mais sustentáveis a manter crescimento (ou até crescer mais)? Não seria melhor focar os recursos nas empresas mais robustas e que irão, mais provavelmente, aguentar este período? Não seria melhor investir nas empresas que, sem apoios, sem fundos perdidos, conseguiriam manter-se em funcionamento?

Não seria melhor investir no Diogo, no Paulo e no Tomás? Não seria melhor ajudar as start-ups com potencial? Não seria melhor investir em tecnologia? Há, naturalmente, risco. Há, naturalmente, probabilidade de estas empresas não darem em nada. Mas ao menos, não há o risco de os suspeitos do costume encherem os bolsos mais uma vez. Mas ao menos, os poucos com sucesso terão criado valor acrescentado e com isso margem elevada, que pode ser capturada pela economia portuguesa. Ao menos esses, ainda que poucos, permitem transformar a economia.

Poderíamos reforçar estas empresas para termos mais emprego, melhores salários, trabalhadores mais qualificados e, no futuro, mais exportações. Poderíamos estar a construir o futuro. Poderíamos…

Veio a badalada, novamente serena, mas determinada, das oito e meia. Desliguei a televisão. Esqueci estes pensamentos inquietos e voltei a focar-me na família; na certeza de que amanhã, com ou sem o apoio a fundo perdido, lá estarei outra vez. Lá estarei a trabalhar com pessoas incríveis, em negócios sustentáveis e com potencial de crescimento. Amanhã, lá estarei a tentar construir o futuro.

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David Cruz e Silva é luso-americano e o fundador da Hack & Hustle, uma empresa focada na criação e desenvolvimento sistemático de novas empresas e em consultoria de inovação. Especializado em ferramentas de inovação, empreendedorismo e capital de risco, David Cruz e Silva tem experiência a trabalhar com start-ups e no desenvolvimento de projetos de inovação para PMEs, multinacionais e governos a nível europeu. É um Global Shaper (iniciativa do Fórum Económico Mundial) e foi o representante mais jovem de Portugal na 73.ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque (a convite da Organização Mundial de Saúde, para a qual foi consultor).

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