Opinião
Quando a confiança se sobrepõe à competência

Governar um país é, a meu ver, uma das funções mais nobres, mas também mais complexas, difíceis e desgastantes que alguém pode desempenhar. Atrair mais pessoas competentes, sofisticadas, com “mundo” e experiência diferenciada parece-me fundamental para o seu sucesso.
Governar um país é, a meu ver, uma das funções mais nobres, mas também mais complexas, difíceis e desgastantes que alguém pode desempenhar. Digo-o por mera perceção pessoal e sem conhecimento de causa, não tendo eu qualquer experiência de natureza política ou governativa.
Aos elementos, controláveis ou não, que a gestão na esfera privada está normalmente sujeita, acrescem alguns outros que me parecem mais aplicáveis ao exercício de uma função governativa, como sejam:
(i) A multiplicidade de dossiers e a correspondente complexidade e dimensão administrativa e organizacional (horizontal e vertical) sob gestão;
(ii) Uma maior burocracia processual, em benefício (na teoria, pelo menos) da rigorosa gestão pública, mas com prejuízo da agilidade e da rapidez de execução;
(iii) Uma menor amplitude para a implementação de medidas e incentivos que permitam a (tão importante) defesa e valorização da meritocracia;
(iv) Uma maior dificuldade na execução de iniciativas ou projetos impopulares, seja pela saudável (quando construtiva) oposição política, ou pela resistência ou aversão à mudança de um povo que me parece marcadamente conservador;
(v) O constante escrutínio público, desejável e compreensível, mas nem sempre com o nível de tolerância que deveria existir;
(vi) O elevado mediatismo, por vezes demasiado intrusivo na esfera pessoal;
(Vii) O desgaste físico e emocional associado a uma função que exige uma disponibilidade quase permanente, em prejuízo da vida pessoal e familiar;
e, por último, quiçá o elemento mais importante, porventura resultante do cúmulo dos pontos anteriores,
(vii) A evidente dificuldade em atrair mais gente competente, sofisticada, com “mundo” e experiência diferenciada, para o que também contribui, além dos pontos acima elencados, uma remuneração manifestamente desequilibrada face à complexidade e responsabilidade inerentes à função 1.
Em suma, gerir múltiplos dossiers (i), trabalhar num contexto burocrático ou que não valoriza a meritocracia (ii e iii), enfrentar dificuldades na execução de projetos (iv), ser continuamente escrutinado (accountable) (v), ter exposição mediática (vi), ou sofrer com o desgaste profissional (vii), será algo a que os gestores na esfera privada estarão habituados e não necessariamente nefasto para as respetivas organizações, talvez excetuando os pontos (iii) e (vii).
Por outro lado, tentar gerir uma organização com escassez de gente capaz e à altura das responsabilidades que lhe estão confiadas (viii) é meio-caminho andado para o desastre.
Além dos vários pontos acima listados, existe um outro que, a meu ver, contribui igualmente para limitar a atração de mais gente capaz para a nobre causa pública.
Quando uma grande empresa privada contrata alguém até então desconhecido para o seu executivo, acredita que uma diligência prévia adequada, aliada ao perfil e experiência do executivo serão suficientes para este ser bem-sucedido na respetiva função, com isso contribuindo para o sucesso da empresa.
A referida diligência visa minimizar, na medida do possível, os riscos de incompatibilidade entre a empresa, considerando as suas características (setor de atividade, abrangência geográfica, cultura organizacional, estágio financeiro, etc.) e variáveis exógenas a que está sujeita (contexto de mercado, condicionantes económicas, etc.), e o novo executivo, tendo em conta o respetivo perfil e aptidões técnicas e comportamentais.
Regra geral, a maior ou menor eficácia nesta diligência, neutralizando aspetos não controláveis, acabará por determinar o grau de sucesso na relação entre as partes.
Mas qual será, afinal, o nível de confiança intrínseca que a empresa tem nesse seu novo executivo, desconhecido até então, quando o acolhe nos seus quadros?
Diria que bastante limitada – com efeito, a confiança entre o novo executivo e os seus pares, chefias, subordinados e a empresa em geral far-se-á de forma progressiva e ao longo do tempo.
Claro que a empresa tem ao seu dispor um conjunto de ferramentas e incentivos no sentido de promover um adequado alinhamento de interesses entre as partes, fazendo com que o fator confiança, ainda que evidentemente imprescindível, não o seja tanto numa fase inicial.
Por outras palavras, quem conduz os destinos da empresa entende que a competência, a capacidade e a experiência do novo executivo, aliada a objetivos funcionais claros e bem definidos, se sobrepõem ao fator confiança, não que este não seja crucial, aceitando-se que o mesmo será natural e progressivamente fortalecido ao longo do tempo.
Ora, esta abordagem contrasta com a muitas vezes adotada na escolha de pessoas para o exercício de funções governativas, em que a confiança política (assente num alinhamento ideológico comum ou numa lealdade partidária), tende a assumir uma primazia quase absoluta, em detrimento (em alguns casos) da competência e da experiência verdadeiramente diferenciada que outras pessoas poderiam seguramente oferecer.
Talvez a mudança que muitos ambicionam para o nosso país possa, também, começar por aqui. Assim haja gente disposta a sujeitar-se aos elementos e circunstâncias inicialmente elencados.
P.S. – Este texto é politicamente apartidário e resulta de uma perceção pessoal, preocupante a meu ver, de uma progressiva dificuldade em atrair pessoas capazes e com experiência diferenciada para funções governativas (ou para a por vezes muito complexa gestão pública). Este fenómeno também se verifica na esfera privada, mas aí o problema é de quem o pratica.
- Mesmo admitindo, como me parece justo reconhecer, que o fator remuneratório não estará no topo das preocupações ou exigências de quem aceita exercer funções governativas.