Entrevista/ “Para ter um negócio equilibrado temos de diversificar o risco”

Investir em tecnologia, “porque temos pela frente um problema futuro de mão-de-obra para a produção. Temos de nos tornar atrativos, pagando mais e, se não conseguirmos pagar mais, temos de ser mais eficientes, e se quisermos ser mais eficientes temos de trazer equipamentos e sistemas de produção mais eficientes”, e apostar nas vendas online e na sustentabilidade são os objetivos da Procalçado para 2021, revelou o CEO da empresa em entrevista ao Link To Leaders.
Está há 47 anos a dar corda e sola aos sapatos. E é hoje uma das maiores empresas de calçado nacional. O grupo Procalçado, que se lançou no mercado em 1973 pela mão de José Pinto, com a marca de solas For Ever, cresceu e diversificou o negócio, quer no produto como na marca. Para além das solas, o grupo apostou também na criação de sapatos profissionais com a marca Wock e na moda, sobretudo feminina, com a Lemon Jelly.
Em termos globais, José Pinto admite que “as coisas estão a compor-se”, isto depois dos layoffs parciais que teve de fazer no segmento das solas e na área do design da Lemon Jelly. Na Saúde, a grande procura pelo calçado Wock permitiu trabalhar em contínuo. “O facto de trabalharmos com produtos funcionais e de nicho, e não apenas no segmento da moda, é uma mais-valia”, reconhece.
A grande preocupação agora é 2021: “ O ano em si vai acabar positivo contrariamente ao que esperávamos. Mas não me deixa tranquilo para o próximo. Aquilo que não sofremos este ano, vamos sofrer no próximo. Um dos nossos maiores problemas para o ano vai ser o seguro de crédito. Não nos vão faltar clientes para comprar, faltará clientes a quem eu possa vender. Vai haver muitas pessoas a perder o seguro de crédito”, explica José Pinto.
Como foram os últimos meses para a Procalçado? Quais os grandes desafios que enfrentaram?
Tivemos muitos desafios. Tivemos um ano um pouco atípico, em que pensámos que o desafio era não só gerir a pandemia, mas também a dificuldade de gestão de encomendas, a falta de encomendas, gerir a pouca produção ou pouca faturação, mas aconteceu-nos ao contrário. Por um lado, a pandemia trouxe-nos um problema relacionado com confinamentos, inclusive nos primeiros meses – entre março e abril – fizemos layoffs parciais nunca totais em duas áreas de negócio por questões de cancelamentos, do retalho, devido à complexidade que vinha por aí e da dificuldade de prever os próximos meses. Na área médica não o fizemos, porque foi quando tivemos de produzir ainda mais do que seria esperado. O facto de trabalharmos com produtos funcionais e de nicho, e não apenas no segmento da moda, é uma mais-valia.
A partir de maio, começámos 100% a trabalhar, tendo de recuperar inclusive o atraso de um mês e meio, mas a retoma foi rápida, pois tivemos muitos clientes e pedir-nos para entregar produto, inclusive alguns que tinham cancelado voltaram a repor encomendas, e de setembro para frente tem sido tem sido também um desafio muito grande. Isto porque desde o primeiro confinamento até agora tivemos sempre uma carteira de encomendas bastante forte, contrariamente aquilo que seria de esperar. A grande dificuldade que as nossas empresas enfrentam agora tem sido conseguir gerir este ultimo mês e meio devido à complexidade de ter as pessoas salvaguardadas, de ter a parte da saúde protegida e de continuar a laborar com os teletrabalhos misturados. Isto porque com muitas encomendas temos de continuar a satisfazer o mercado, com alguma consistência, mas com muita incerteza. Todos os dias temos mandado recursos para casa ou por questões de contágio direto ou indireto. Neste último mês tem aumentado drasticamente o número de casos, o que nos está a complicar conseguir manter a produção, fazer uma gestão e manter os clientes minimamente alinhados para que a cadeia de abastecimento não pare. As coisas estão a compor-se!
Considera que as medidas do governo foram suficientes de apoio aos empresários, nomeadamente à indústria do calçado?
Naturalmente que não. Felizmente que não tivemos de recorrer a tantas medias quantas seriam necessárias. Não esperamos que o Estado nos substitua – infelizmente já não substitui em situações boas quanto mais nas menos boas. É lógico que algumas políticas, como o layoff simplificado que para nós na altura de abril e maio foi estrategicamente essencial, foram essenciais. Primeiro porque se eu não tivesse recorrido a esta medida, alguns postos de trabalho tinham desaparecido automaticamente porque o nível de risco aumentava. O layoff deu-nos um mês e meio de preparação para analisar o mercado e perceber as coisas que estavam a acontecer, sem correr demasiados riscos e protegeu-nos a todos. Nesse sentido, essa medida para nós foi importante. O calçado em si defronta-se com dificuldades, nós dependemos mais da exportação e não tanto do mercado nacional. No entanto, não tempos um problema idêntico ao da restauração ou da hotelaria. Por isso, a nossa problemática é diferente. Não gostaria de estar nessas áreas de negócio neste momento!
“Para além do nosso site, temos grande parte dos nossos clientes, por exemplo, no caso da Lemon Jelly – que é uma marca mais de moda – nas grandes plataformas europeias, onde registámos um grande crescimento”.
Como estão a contornar as exportações do calçado? Com a venda online?
Com um bocadinho de tudo. O nosso modelo sempre foi híbrido, nunca foi concentrado num modelo único, ou seja, só de produção ou só de comércio, não só de uma tipologia ou de segmento de mercado, não concentramos a nossa atividade num mercado específico, o que nos levou a sermos generalistas e não propriamente especialistas numa coisa. Lógico que somos especialistas na área do calçado, mas sempre diversificamos os nossos negócios não porque sabíamos que iria aparecer um coronavírus, mas porque sempre achamos que, para ter um negócio minimamente equilibrado, temos de diversificar o risco. É como a carteira que temos de ter de investimentos – temos de diversificar o risco e não termos tudo concentrado. Portanto, pode correr tudo muito bem como mal.
Diria que este ano tornou-se claro que esta estratégia faz sentido, ou seja, tivemos mercados que caíram mais, outros que caíram menos, tivemos produtos que superaram as expetativas, produtos que não superaram, e depois tivemos o negócio online, que era algo que já estávamos a apostar, que ajudou muito, cresceu muito, cerca de 300%. As pessoas não tendo o produto acessível no espaço físico procuram nas plataformas digitais. Isto se for interessante e importante. Nós temos vindo a investir nos últimos anos nas marcas porque sabemos que é importante, as nossas verdadeiras lojas são as digitais não são as físicas. Para além do nosso site, temos grande parte dos nossos clientes, por exemplo, no caso da Lemon Jelly – que é uma marca mais de moda – nas grandes plataformas europeias, onde registámos um grande crescimento. Foi onde mais crescemos e onde temos mais presença.
O que tem mais representatividade na faturação da empresa: as vendas online ou as vendas em espaços físicos?
Estamos com um bom balanço. Crescemos quer nas vendas online, quer nas físicas muito devido ao desenvolvimento de produto que temos feito e à vantagem de estarmos na Europa. Para dar um exemplo. A Lemon Jelly, sendo uma marca mais pequena, não é um grande player mundial, mas vende a nível europeu. Naturalmente durante esta pandemia muitas grandes marcas compraram menos ou tiveram dificuldade em abastecer-se naqueles que são os canais tradicionais, como a Ásia, e pediram menos stock porque o risco era grande. O que é que isto fez?
Favoreceu marcas como as nossas que têm produção local, abastecimento muito rápido. Nós podemos abastecer desde a ideia, à execução e à produção e controlamos toda esta cadeia. Conseguimos ter um serviço muito mais rápido, ou seja, nas pré-vendas vendemos abaixo 20% do ano anterior, fruto da pandemia. Mas em reorders, ou seja, aquilo que chega à loja, conseguimos duplicar as vendas. Porquê? Porque o produto tem boa saída, o produto certo no momento certo é um produto útil, necessário, mas também estivemos a capacidade de reagir muito rápido aos pedidos dos clientes. Não perdemos vendas, crescemos em vendas.
Em termos de matérias-primas são autosuficientes?
Em termos de produção do produto somos totalmente autosuficientes. Em matérias-primas para a produção de alguns produtos, naturalmente que dependemos. Por exemplo, a borracha é da Ásia. Se a Ásia não produzir, a Europa para. Como a procura diminuiu em termos globais a partir da pandemia, as grandes indústrias, inclusive as que consomem borracha como a indústria automóvel fruto da quebra de encomendas, registaram uma queda. Tivemos alguma dificuldade no primeiro encerramento, março e abril, porque dependemos de alguns materiais de Itália – um importante fornecedor para Portugal na área do calçado-, pelo que a cadeia de abastecimento falhou. Entretanto, como grande parte do produto que fazemos depende de nós, estávamos dependentes de nós próprios, por isso tivemos alguma autonomia de gestão.
” Tivemos outro período, a partir de 2000, que, para mim, foi dos momentos mais difíceis em que se falava que esta indústria iria desaparecer na Europa devido à movimentação de produção para a Ásia, deslocalização por preço, etc. Essa fase foi ainda mais angustiante do que esta”.
Entre janeiro e agosto deste ano, as exportações de Portugal – terceiro maior produtor de calçados da Europa depois da Itália e da Espanha – caíram cerca de 17% em relação ao mesmo período de 2019. A indústria portuguesa do calçado está a viver um dos períodos mais difíceis da sua história?
Um período igual a este não existe. Isto no mínimo é um filme surrealista e possivelmente de terror. A este nível diria que não há comparação. No entanto, na indústria nós temos tido ciclos muito maus. De 2008 até 2010, houve ali um período no início desta última década que tivemos algumas dificuldades e depois recuperámos bem. Tivemos outro período, a partir de 2000, que, para mim, foi dos momentos mais difíceis em que se falava que esta indústria iria desaparecer na Europa devido à movimentação de produção para a Ásia, deslocalização por preço, etc. Essa fase foi ainda mais angustiante do que esta.
Esta fase considero passageira com algumas consequências permanentes, enquanto a outra poderia ter sido definitiva, já que existia a ideia de que a indústria em si ia-se desmontar e que as grandes empresas iriam produzir na Ásia e que na Europa desaparecia esta indústria. Isto ocorreu na Inglaterra, na França, na Holanda e noutros países, ficando a Alemanha e Espanha com alguma coisa e Portugal com quase tudo.
Por isso, se queremos ser sociedades fortes temos de fazer como a Alemanha que protegeu a indústria e a tecnologia para garantir que eram autossuficientes em algumas áreas e que não dependeriam no dia seguinte totalmente do mercado, ou da vontade ou do que quer que fosse. Os americanos sofrem neste momento deste problema. Eles podem reclamar da China, mas dependem grande parte – se falarmos do calçado – da China. Por isso, eu acredito que este é um momento interessante para a Europa, para países como o nosso que conseguiu manter alguma indústria, que ainda tem uma mão-de-obra económica, o que é bom e mau. Temos armas para usar no pós-Covid.
Teme que a economia mundial volte a parar e seja necessário implementar um novo confinamento? O que o mantém otimista?
O que me mantém otimista é que isto tenha um fim, o fim da doença e uma solução. Pode não ser uma solução perfeita, mas a vacina seguramente vai resolver uma parte. Não consigo imaginar que isto vai demorar mais do que um ano, um ano para mim já é uma eternidade. Portanto, isto vai ter um fim. Se olharmos bem para a Ásia e para a forma como conseguiu contornar o problema, temos de também acreditar. É um processo doloroso que vai trazer consequências, mas também oportunidades e mudanças que estavam a ser adiadas.
Falo, por exemplo, do modelo de negócio das marcas. Como é que elas se comercializam, se posicionavam, os canais tradicionais em que apostavam, o conjunto de estruturas que montaram há 30 anos para dizer como é que se deve vender um sapato, uma roupa. Tudo mudou, com as novas gerações, com novas ferramentas, novos modelos de negócios e conseguiam ultrapassar modelos clássicos rapidamente. E este processo acelerou todo este mundo da digitalização, o que significa que as empresas como as das nossas dimensões terão bastantes oportunidades. Por isso, eu vejo primeiro o fim à doença em termos de cura e a partir daí vejo uma janela de oportunidades. Que vamos sofrer, vamos. Que nem todos conseguiram ultrapassar isto, não tenho dúvidas. No final, como seres humanos vamos todos ultrapassar esta fase.
Quanto prevê faturar este ano?
Não gosto falar de números. Vamos ter crescimento este ano. 2019 não foi um dos melhores anos para nós. Tivemos muitos investimentos. Este ano a parte médica está a crescer a dois dígitos e com valores muitos altos, a Lemon Jelly vai crescer, contrariamente ao que eu esperava, 5 a 10% (eu esperava uma quebra de 5%), o que não é mau, e a Procalçado acima dos dois dígitos. O ano em si vai acabar positivo contrariamente ao que esperávamos. Mas não me deixa tranquilo para o próximo. Aquilo que não sofremos este ano, vamos sofrer no próximo. Um dos nossos maiores problemas para o ano vai ser o seguro de crédito. Não nos vão faltar clientes para comprar, faltará clientes a quem eu possa vender. Vai haver muitas pessoas a perder o seguro de crédito.
“Vamos fazer alguns investimentos em áreas cruciais, sobretudo na tecnologia, ou seja, equipamentos mais eficientes, porque temos pela frente um problema futuro de mão-de-obra para a produção”.
Como se estão a preparar para 2021?
Neste momento preparámos mais do que um cenário em termos de orçamento para estarmos preparados para os embates que possam surgir. Vamos fazer alguns investimentos em áreas cruciais, sobretudo na tecnologia, ou seja, equipamentos mais eficientes, porque temos pela frente um problema futuro de mão-de-obra para a produção. Temos de nos tornar atrativos, pagando mais e, se não conseguirmos pagar mais, temos de ser mais eficientes, e se quisermos ser mais eficientes temos de trazer equipamentos e sistemas de produção mais eficientes. Por isso, vamos investir, por um lado, em recursos para trazer outras práticas para dentro. Ao nível das marcas, vamos apostar mais nas nossas vendas online, ou seja, no projeto digital. Fizemos já uma aposta forte na parte conceção e desenvolvimento de produto ao nível da digitalização. Começámos em março a fazer um teste piloto. Por exemplo, na Lemon Jelly a coleção de Inverno que normalmente vamos preparando de julho até novembro/dezembro costuma ser num timing muito longo, altura em que fazemos muitos protótipos, fisicamente produzimos muitas amostras, ou seja, há um desperdício brutal e custos gigantes.
As vossas coleções passarão a ser apenas digitais?
Agora e aproveitando esta nova fase em que estamos cada vez menos presentes fisicamente, mas que as coleções têm de ser desenvolvidas, não temos feiras para fazer apresentações, temos de as fazer digitalmente, até porque os meus agentes que vinham cá presencialmente estão todos em casa. Então, o que decidimos – e que já tínhamos pensado – começar a fazer as coleções digitalmente. A coleção da Lemon Jelly é a primeira coleção digital, desde prototipagem, a softwares de 3D e de apresentação de produto. Basicamente hoje tenho a coleção praticamente pronta, sem ter um desenvolvimento físico feito.
E só vou começar a fazer os desenvolvimentos físicos quando tiver as amostras definitivas validadas depois de as apresentar. Isto, além de promover a sustentabilidade, traz benefícios económicos. Eram milhares de euros, de energia gasta, de pares que iam para o lixo. Assim ao invés de fazermos uma coleção ou duas por época, vamos desenvolver várias vezes por ano para dar muitos mais motivos para as pessoas terem constantemente produtos frescos, sem que para isto estejam a aumentar o nível de stock. Outra área de aposta é desenvolver coleções tendo em conta a sustentabilidade: utilização de materiais mais amigos do ambiente, redução de muitos consumos de desperdícios, reutilização de tudo o que podermos no desenvolvimento dos produtos, pensar que os produtos que desenvolvemos têm que de ter um fim de vida, resolver o problema de fim de vida, arranjando soluções de reutilização, evitar que o desperdício seja levado para fora empresa. Há muita coisa em que estamos a trabalhar”
Conselhos para os jovens empreendedores que querem apostar na indústria do calçado?
Primeiro, têm de ter noção do que querem fazer, da escolha do produto e do caminho. Tem de ser um caminho único. Eu tenho encontrado muitos exemplos ao longo da minha carreira que querem fazer muitas coisas. Devem conhecer a indústria que têm, os recursos que têm disponíveis porque se não perceberem isto não vale a pena estarem a pensar fazer coisas. Muitos dos jovens que entram nesta indústria olham para os exemplos que acontecem no mundo e dizem eu vou fazer uma coisa igual. Mas não conhecem a indústria que têm por trás para poder servir. Se não tiver uma cadeia de abastecimento bem sustentada, todos os projetos colapsam. Ou seja, a escolha de um produto diferenciador. E se possível, antes de fazer um projeto que passe por uma experiência nesta área.