Entrevista/ “O transporte rodoviário ainda funciona de maneira completamente offline”

“É a única tecnologia que foi publicada em patente e que é capaz de identificar ineficiências ao nível mais granular (cada viagem), prevê-las e ajudar os motoristas a mudar o seu comportamento, ao milissegundo”. É assim que Luís Mendes, CEO da Meight, fala ao Link To Leaders da plataforma que desenvolveram para, entre outras funções, otimizar o consumo de energia dos veículos.
As emissões de gases com efeito de estufa na União Europeia caíram 3,8% em 2019, segundo a Agência Europeia do Ambiente, ficando 24% abaixo dos níveis observados em 1990. No entanto, a UE pretende uma redução de 55% até 2030 (em comparação com 1990), com o objetivo de atingir zero emissões líquidas até 2050. Um longo caminho a percorrer, pelo menos no setor dos transportes, onde as emissões continuam a aumentar. Só as viagens rodoviárias representam cerca de 70% das emissões totais de gases com efeito de estufa provenientes dos transportes.
Fundada em 2018, a Meight criou uma plataforma de inteligência artificial que é capaz de prever, monitorizar e gerir as operações de terreno do transporte de mercadorias, nomeadamente a gestão de consumo de combustível e de todas as tarefas de trabalho.
Com a sua tecnologia, é possível, por exemplo, recolher dados sobre a condução, em todos os percursos a nível mundial, que permitirão criar padrões ideais de condução para aquele veículo, percurso e condutor, comunicando-os ao condutor em tempo real, com a antecedência necessária para que este efetue as manobras sugeridas, revelou Luís Mendes, CEO da start-up.
A empresa tem já dados de 20 milhões de quilómetros feitos por motoristas e a sua plataforma é compatível com 75% das marcas de camiões na Europa. E acaba de angariar capital para acelerar a sua estratégia de expansão, especialmente para o mercado alemão, e contratar trabalhadores.
Como surgiu a Meight?
A Meight surgiu com uma questão simples: seria possível transformar uma indústria antiga, como a dos transportes terrestres, através dos dados que ela própria produz? Percebemos que havia uma oportunidade enorme e criamos a Meight para aumentar o nosso conhecimento sobre a eficiência do transporte terrestre, particularmente sobre o impacto do consumo energético e das emissões de CO2 na indústria e no ambiente. À data, ainda não se conseguiu digitalizar o que se passa na estrada ao nível mais granular e, por consequência, perceber o impacto que esta falta de transparência tem nas pessoas, nos negócios e na sociedade. Ainda mais importante, não se sabe qual o impacto da ineficiência do transporte terrestre no comércio mundial e nas relações entre as várias partes que nele participam.
Quem é a equipa por detrás da Meight?
A Meight foi fundada em 2018 por mim (fui fundador da Unono e Google For Entrepreneurs Alumni) e pelo António Reis (CTO), ex-Motogp KTM Factory Team. A empresa, com sede em Évora, conta com 11 colaboradores, na sua maioria na equipa de desenvolvimento. A equipa trabalha remotamente desde que foi implementada uma política de Work From Anywhere (trabalha a partir de qualquer sítio) e também por força da pandemia.
“Durante este ano vamos iniciar uma estratégia de vendas para novos segmentos de clientes e regiões, e tornar o produto mais completo e direcionado a outras áreas”.
O que é que o financiamento que acabam de receber vos vai permitir alcançar? Quais são agora as vossas apostas?
Esta ronda de financiamento é mais um ponto de inflexão para o, ainda curto, trajeto da Meight. Por um lado, é o culminar de três anos de desenvolvimento de tecnologia e do sucesso de vários projetos, como o IDT Portugal 2020 e Climate KIC, que são duas referências a nível nacional e europeu, respetivamente, em termos de investigação e desenvolvimento tecnológico. Por outro lado, é um selo da qualidade do nosso trabalho junto dos clientes.
Esta ronda Seed vai permitir-nos levar esta tecnologia para o mercado, com foco em Portugal e no centro da Europa. Temos um produto muito robusto, com 20 milhões de quilómetros “percorridos”, através dos nossos pilotos e atuais clientes. Durante este ano vamos iniciar uma estratégia de vendas para novos segmentos de clientes e regiões, e tornar o produto mais completo e direcionado a outras áreas. Queremos provar que existe um mercado enorme à espera da nossa solução e que estamos muito bem posicionados para liderar este setor, ajudando os transportes terrestres a entrar no “mundo online”.
Estamos também à procura de engenheiros de software e a criar uma equipa comercial para trabalhar na região de Portugal e centro da Europa. Somos bastante competitivos em termos de compensação salarial e queremos ir mais além do que simplesmente contratar um/a colaborador/a. Queremos que as pessoas se sintam parte do projeto e por isso todo/as participam das stock options da Meight para crescerem connosco.
Quem são os principais investidores e como culminou esta ronda de investimento?
O financiamento foi liderado pela sociedade de capital de risco portuguesa Faber e contou ainda com a participação do Grupo Lusiaves SGPS, da sociedade de capital de risco alemã Superlyst, do European Institute of Innovation and Technology (EIT Urban Mobility) e de um sindicato estratégico de business angels, como Ryan Petersen (CEO da Flexport), os fundadores da Unbabel e a sociedade de capital de risco Dispatch Ventures.
Fazendo uma retrospetiva, estamos muito satisfeitos com o resultado desta ronda. Foi um processo longo, mas que nos permitiu chegar a bom porto. Além do total do capital a ser investido, que acabou por ser superior ao inicialmente planeado, tínhamos três objetivos: ter um lead investor de referência e com experiência nesta fase Seed para Série A; ter um fundo alemão, numa ótica de expansão de mercado é importante ter apoio de pessoas que estejam com “skin in the game”, e criar um sindicato de Business Angels empreendedores e com experiência no setor. Conseguimos cumprir estes três objetivos.
“O transporte terrestre gera uma faturação total anual de 5 biliões de dólares (ou 5 trillion dollars), movimenta 16 mil milhões de toneladas-km de mercadorias, valor que triplicará nos próximos 30 anos”.
O que é que a Meight pode fazer pelo transporte rodoviário de mercadorias?
Os transportes são um mundo fascinante pela sua dimensão e importância na nossa sociedade. Todos os dias, toneladas de carga são entregues por via rodoviária, aérea e marítima. O transporte terrestre gera uma faturação total anual de 5 biliões de dólares [ cerca de 4,43 mil milhões de euros], movimenta 16 mil milhões de toneladas-km de mercadorias, valor que triplicará nos próximos 30 anos. São 100 milhões de camiões para atender às necessidades e sonhos da humanidade.
No entanto, o transporte rodoviário ainda funciona de maneira completamente offline – apenas 35% dos veículos estão conectados. Os sistemas atuais são opacos e encontram-se em silos, resultando num custo e desgovernação acrescido, que podia ser evitado. A Meight desenvolveu uma tecnologia capaz de prever, monitorizar e gerir o consumo de energia dos veículos. É a única tecnologia que foi publicada em patente e é capaz de identificar ineficiências ao nível mais granular (cada viagem), prevê-las e ajudar os motoristas a mudar o seu comportamento, ao milissegundo.
Para além de uma melhoria na eficiência operacional, a tecnologia desenvolvida permite reduzir substancialmente os consumos e melhorar a pegada ecológica das frotas. Vai, assim, ao encontro das exigências de sustentabilidade ecológica dos consumidores e das empresas.
“Os motoristas profissionais não vão desaparecer, a condução autónoma não é a resposta para uma indústria complexa (…)”.
Quem são os vossos clientes?
Empresas de transportes terrestre ou de logística integrada, com base em Portugal e no centro da Europa. Temos vindo a trabalhar com vários segmentos de clientes, desde pequenas empresas familiares, a PME e grandes conglomerados, com serviços de grupagem e carga completa, para transporte nacional e internacional. Cada cliente é um novo desafio.
Todos os dias levantamo-nos para cumprir a nossa missão, de digitalizar o mundo dos transportes para que, em cada viagem, transportadoras e motoristas possam gastar menos e consumir menos recursos. A Meight traz tecnologia inovadora para uma indústria antiga, onde há necessidade de recursos e know-how para entrar na nova era digital. Os motoristas profissionais não vão desaparecer, a condução autónoma não é a resposta para uma indústria complexa, pelo que precisamos de encontrar alternativas para impulsionar uma das atividades mais fascinantes e com maior impacto no comércio mundial.
Como é que a vossa solução se diferencia das propostas existentes no mercado?
Embora a nossa tecnologia exija quantidades substanciais de dados para ser desenvolvida, ela pode ser usada em qualquer smartphone. Portanto, sem necessitar de nenhuma instalação ou retrofit [processo de modernização de equipamento já considerado ultrapassado] do veículo, o que representa uma poupança substancial para as transportadoras, quando comparando com as soluções do mercado.
Por outro lado, os dados recolhidos, que são primeiramente anonimizados, servem para desenvolver a primeira plataforma de predição de consumo energético e emissões do mundo. Esta plataforma é desenhada de maneira a ser integrável com toda a supply chain, para possibilitar a partilha de informação em tempo real. No futuro, haverá uma nova geração de serviços, criados sob esta plataforma, por todas as empresas e comunidades que quiserem usar as nossas ferramentas de análise e predição de consumo e de emissões.
Por falar em novos serviços, o que podemos esperar da Meight nos próximos meses?
Durante os próximos tempos vamos trabalhar em duas frentes. Por um lado, continuar o desenvolvimento da app para os motoristas, digitalizando o seu dia de trabalho para permitir aos transportadores estarem conectados à supply chain. Por outro, tornar a nossa infraestrutura de dados acessível a todos os transportadores e prestadores de serviços de transporte terrestre, permitindo-lhes desenvolver integrações sem a necessidade dos tradicionais longos processos de implementação e sem receio de ficarem aprisionados a um único fornecedor. O nosso produto líder deste ano será a app para o motorista, que encapsula toda a experiência deste numa única app, desenvolvida de acordo com as suas necessidades.
“Os motoristas, principal força de trabalho das transportadoras, não possuem tecnologia para ajudá-los no seu dia a dia, apesar de terem o potencial para mudar drasticamente a eficiência operacional”.
Quais os desafios que enfrentam os transportadores?
Os transportadores enfrentam sérios desafios para adotar novas tecnologias, com implementações longas e onerosas devido à complexidade inerente das operações e à ausência de integrações entre os provedores de serviços de software. Os motoristas, principal força de trabalho das transportadoras, não possuem tecnologia para ajudá-los no seu dia a dia, apesar de terem o potencial para mudar drasticamente a eficiência operacional.
A Driver App permite que os motoristas se conectem à supply chain, enquanto estão no terreno e longe da sua base. A Driver App digitaliza todas as suas viagens e melhora drasticamente a sua eficiência operacional. Os motoristas são treinados através dela para melhorar sua eficiência de condução enquanto a viagem é partilhada em tempo real com a supply chain. Esta é uma solução que as transportadoras podem implementar sem esforço, que ajuda os motoristas no seu trabalho diário e torna as empresas mais competitivas.
Estão também a desenvolver uma infraestrutura de dados aberta para as transportadoras…
O transporte terrestre passou por mudanças rápidas e tem agora uma complexidade que extravasava a capacidade da mente humana, resultando em novos requisitos de transportadoras que não estão a ser resolvidos. A prática comum é desenvolver soluções à medida e dashboards para cada problema, consequentemente, acabam-se por produzir aplicações de software muito pobres, e com alta manutenção, que estão offline e, portanto, não são escaláveis.
A infraestrutura de dados aberta da Meight é a porta de entrada da transportadora para o “mundo online”, onde todos os serviços, internos e externos, podem coexistir e crescer de forma sustentável. Em vez de lançar mais uma solução de tecnologia para a operadora, a nossa plataforma cria abstrações claras dos recursos e ações das operadoras, permitindo que todos os provedores de serviços interajam com elas.
Ao alavancar a experiência de cada sistema, as transportadoras podem integrar os seus serviços ao seu ritmo, sem a necessidade de processos de implementação longos e caros e sem receio de ficarem aprisionados a um único fornecedor – isto é um dos propósitos de desenvolver sob uma plataforma aberta.