Opinião
O Propósito que nos mata

No geral o homo sapiens atual fabricou uma sociedade, à falta de melhor termo, onde se empenha por ter como pináculo o seu propósito. E um propósito permanente. Nada contra. E também nada contra a palavra, mas é preciso acautelar que ela não é mais que uma derivada de meta ou grande objetivo – já muito batidas – ou até de finalidade ou sentido de vida.
O propósito tornou-se moda, mas como todos sabem também houve muitas modas nos últimos anos que entraram no léxico mas, de tanto serem ditas e repetidas, depressa passaram a ser old fashion quando, na realidade, não o são e são sempre pertinentes. Todas as que disse acima me parecem pertinentes e atuais. Não são tão pomposas aos dias que correm. E pode-se dizer que não estão dentro deste léxico humano mais “novo rico”. Seja. Aceito e continuo. E se for preciso usar, pois lá terá que ser: uso o termo propósito e pronto.
Claro está que o problema não está na palavra, mas, antes, no que ela trouxe consigo. O pior desta loucura transversal do propósito parecem ser as implicações que tem a cada segundo – ou milissegundo – das nossas vidas e das nossas realizações e naquilo que muitos gostam de designar por nossa felicidade. Uma vida sem propósito é uma vida infeliz e uma vida não realizada. Portanto, todos temos de tratar de arranjar um propósito permanente, que pode ser mutável mas onde não há interrupções. Portanto, quando largamos um passamos para outro de imediato (garantindo uma certa parte de continuidade, se possível). Ai de algum de nós que não tenha propósito por uns segundos. É um triste infeliz e um triste irrealizado. Ponto.
A forma de criar um propósito é quase como a forma como se cria uma lista de supermercado. Ginásio todos os dias das 7.30 às 8.30. Das 9h às 10h leitura de um livro técnico. Das 10h às 13h ser hiper produtivo no trabalho. Das 14h às 18h idem. Das 19h às 20h correr com uns amigos às segundas, quartas e sextas e às terças e quintas jogar padel. Depois jantar. Depois ver uma série na Netflix ou no HBO. Depois dormir. E depois repetir tudo dia após dia. E depois mudar de trabalho se não me sentir realizado e feliz neste para repetir, a preceito, o ser produtivo e aprender muito no próximo com o que me vou sentir – tenho a certeza – muito bem.
No fim de semana programo-me para sair com amigos às sextas-feiras e beber uns copos. Os sábados são para a namorada e temos de sair de manhã e vamos os dois de prancha de surf e à tarde lá vamos repetir o programa de ir conhecer isto ou aquilo. E o domingo, como não sei o que fazer, pois meto-lhe mais uns exercícios físicos, mais uma pitada de séries da HBO ou de Netflix, mais um café ou outro com um amigo ou amiga e está feito. Depois cama e tudo recomeça.
Perguntas: onde está o propósito nesta loucura desenfreada? Onde há um momento para a descontração? Onde há um momento para o ócio, sim, para o ócio? Quando falo com os meus amigos o assunto é apenas a piada pela piada, o jantar pelo jantar, para conhecer novo restaurante, ou há também uma troca de ideias sobre a situação da Ucrânia, sobre as questões energéticas, sobre o mercado de capitais, sobre como me preparo para crescer ao investir num programa que gostaria muito de fazer? Há espaço para partilhar problemas a sério, para me abrir com os meus amigos, para apenas descansar e olhar o teto do quarto? Há tempo para a liberdade? Há tempo para mim? Há tempo para o “Ai que prazer/Não cumprir um dever/Ter um livro para ler/E não o fazer!” de Fernando Pessoa? Há tempo para pensar um bocadinho nos problemas dos outros e procurar efetivamente ajudá-los? Os outros têm um tempo para mim e para me ouvirem de forma que eu possa partilhar instantes e momentos da minha vida?
Esta coisa do propósito às vezes é tão completa e tão arrebatadora que não me deixa ser eu. O propósito é tão obrigatório, tão castrador que me retira a liberdade para ser eu e para ser e estar para os outros. Não tenho espaço para quando não vou ao ginásio dizer “que se lixe”. Para quando bebo um copo até mais tarde me dar o prazer de descontrair e dizer que amanhã vou só ficar a dormir. Ou para me deitar na praia e apenas olhar as nuvens a passar.
Nem em todos os momentos tenho de estar ocupado. Mas há uma geração, que já não é a minha, em que um momento desocupado é um mau momento. Parece um vazio. Um momento comigo mesmo é um momento terrível porque começo a pensar em coisas que nem sabiam que existiam dentro de mim. Tenho medo da solidão e uma tarde ou uma noite sem um programa, sem mais um, é de uma violência atroz porque não sei o que fazer. E lá volta a obrigatoriedade de o preencher. Se isto não correlaciona fortemente com a minha incapacidade para ser feliz (seja lá isso o que for), para relaxar, para brindar ao ócio depois do muito trabalho, para pensar, para criar, para ser livre, então correlaciona com quê?
Sim, precisamos de descansar. E de literalmente nada fazer. Ou de nos oferecermos a nós e aos outros como pessoas – humanos – que somos. Caso contrário, aí sim, teremos de novo o espectro do mau propósito. “Olha o propósito”. “E o propósito tem horários”. E eu vejo muita gente, muito mais do que gostaria, confundir propósito com ter que fazer alguma coisa por mais idiota que seja. E é pena. Hiperatividade, apenas. Porque estamos, também, a arruinar o sermos humanos e o estarmos bem mentalmente. E isso importa. Talvez mais do que o propósito que nos mata.